quinta-feira, 12 de abril de 2018

Histórias incómodas bem contadas



Duas magníficas análises de Teresa de Sousa sobre as já velhas questões da crise da corrupção brasileira liderada por um ex construtor de maior justiça social no seu país, (que afinal se desequilibrou pela avidez própria), e da crise dos novos nacionalismos europeus, que sobretudo os países do leste europeu protagonizam, comendo do prato democrático unionista que lhes permite uma evolução positiva, mas defendendo egoisticamente os seus próprios valores, avessos às políticas de abertura solidária europeia, na ferocidade racista dos seus nacionalismos.
Um prazer de leitura, com a retoma serena e explícita de dados da História que estamos vivendo, até que novos dados se instalem, talvez ainda mais ameaçadores, e que por ora se avizinham ou esbatem segundo os caprichos e arrebatamentos dos poderosos da Terra, temas que Teresa de Sousa não deixará de explicitar, com o seu traço marcante de competência e ponderação. Entretanto, o episódio sobre as tentativas separatistas de um catalão, talvez sem importância de maior, na história tão sobrecarregada dos novos tempos, de grande e progressiva potencialidade destrutiva…

OPINIÃO
A tragédia de Lula e a comédia de Puigdemont
A tragédia de Lula, que é a tragédia do Brasil, não se pode resumir a uma frase: deixem a Justiça funcionar.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO; 8 de Abril de 2018
1. O Brasil vive hoje uma crise democrática de dimensões gigantescas. Já viveu outras, desde que reconquistou a democracia nos anos 80, mas talvez nenhuma como esta. As circunstâncias são diferentes da crise que vivem hoje as democracias europeias. O drama a que assistimos, da polarização política extrema, tem a ver com um nível de corrupção em larga escala, que envolveu um partido que prometeu restituir a ética à política e acabou afogado num nível de corrupção difícil de imaginar. Mas ver Lula condenado a 12 anos de prisão, na iminência de ir para a cadeia, não tem nada a ver com ser de esquerda ou de direita, como algumas mentes bem-pensantes acreditam. Tem apenas a ver com o que significou a sua ascensão ao poder, a forma como o mundo democrático o saudou, a esperança de que o Brasil começasse, apenas começasse, a combater uma desigualdade social das maiores do mundo e a assumir maior responsabilidade internacional ao lado das democracias ocidentais.
2. O Lula que chegou ao Planalto, é bom lembrar, não tinha as características ideológicas próprias do partido a que pertencia. Não era contra a globalização. Não era contra a América. Para quem já não se lembre, manteve sempre uma boa relação com Bush. Não era contra a economia de mercado. Deve-se, em boa medida, ao seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, o facto de ter sido eleito Presidente. FHC deu uma nova oportunidade à política e à economia brasileira, com o seu Plano Real, acabando com o imposto que mais castiga os pobres: a hiperinflação. Um dos maiores erros do PT foi ter diabolizado a sua política, dita “neoliberal”, tentando ficar com os louros de um crescimento económico sustentado, que marcou os anos de Lula, mas que resultou em primeiro lugar da estabilidade financeira que herdou e da entrada em força da China nos mercados das commodities, das quais o Brasil é um dos principais produtores mundiais. Lula era um moderado. Governou como um moderado. Teve sonhos demasiado grandes para o papel do seu país no mundo. Acreditou que chegara, finalmente, a vez do Sul disputar ao Norte um lugar à mesa das grandes instituições multilaterais onde o Ocidente dominava. Mas foi recebido em Davos como um herói e por Obama, no G20 de 2009, como um sinal de esperança. Não. Não andavam todos enganados. Lula começou por ser assim e, por isso, foi alvo da admiração das democrcias.
3. O problema foi que o PT não levou muito tempo a mostrar a sua verdadeira natureza. O caso “Mensalão” decapitou as lideranças que o levaram ao poder. A Justiça actuou, como prova a condenação à prisão de alguns dos seus nomes mais sonantes (a começar por Dirceu). Lula conseguiu passar pelos pingos da chuva. Ninguém queria (ainda) derrubar o ícone. Conseguiu o seu segundo mandato, mesmo que só na segunda volta. Rapidamente, começaram a vir ao de cima os tiques da velha esquerda latino-americana, que ainda se vê com o direito divino de governar porque o faz em nome dos “pobres”. Dilma era muito mais ideológica do que o seu criador. Muitas vezes Lula lhe chamou a atenção para algum radicalismo económico que não levaria a parte nenhuma. Tinha uma virtude: ninguém a conseguiu acusar de corrupção. Começou bem, demitindo ministros em série, perante a mera suspeita de mau comportamento ético. Ainda estava para chegar a operação Lava Jato. Já foi ela que teve de enfrentar a onda de reivindicações que a nova classe média que Lula tinha conseguido retirar da pobreza, começava a exigir. Não era apenas o frigorífico e a casa. Era o direito à saúde e à educação condignas, a troco dos seus impostos. Era já um outro Brasil que emergia, não o Brasil que elegera Lula, que lhe prometera o mínimo a que tinha direito: três refeições por dia. A segunda vitória de Dilma, em 2014, foi justa mas por uma margem mínima. Acabou por revelar-se uma maldição, ao dar mais quatro anos a um partido que já estava no poder há 13 e que estava prestes a mergulhar no maior escândalo de corrupção da história da democracia brasileira. A alternância faz bem às democracias, quando é feita nas urnas. A sua destituição foi uma manobra política absolutamente imprópria de uma democracia madura. A “destituição” política do PT acabou por ser conferida aos juízes, atribuindo-lhes a tarefa levar a cabo aquilo que os políticos não foram capazes de fazer. Goste-se ou não, essa “transferência” acabou por politizar a Justiça. Podemos acreditar que as suas decisões foram em conformidade com a lei, que deve ser igual para todos. Mas isso não significa que funcionem, como às vezes se pretende, fechadas numa bolha na qual a política não entra. Dizem os puristas que Lula cometeu actos de corrupção e, como ninguém está acima da lei, deve ser preso. É verdade mas não é toda a verdade.
A prisão de Lula não deixa de ser uma tragédia para aquela parte do mundo constituída por “ homens de boa vontade”, como dizia Pierre Hassner, que acredita na democracia e na importância dos líderes que se mostram capazes de conduzi-la para o bem comum. Lula começou por ser isso. Acabou por ser ele próprio, já o escrevi, a matar o ícone. A responsabilidade também é sua. O poder, muitas vezes, embriaga, sobretudo quando é exercido por demasiado tempo. E Lula (como o PT) não conseguiu perceber até que ponto o Brasil tinha mudado.
4. Ouvimos dizer insistentemente nestes últimos dias que a prisão de Lula visa eliminar a sua candidatura, que é a que neste momento recolhe maior apoio popular: 30 por cento. Não é bem assim. Lula saiu do Planalto em 2010 com 80 por cento de apoio popular. O número prova à saciedade que ele não era apenas o candidato dos pobres e dos que começavam a ter uma vida melhor. Perante isso, os 30 por cento com que conta hoje não são nada ou muito pouco, mesmo sendo o mais bem colocado. O PSDB ainda não fez a sua escolha e o partido de Temer, que costumava fazer e desfazer candidaturas (dos outros), ainda não disse ao que vinha.
5. Mas mais vale a tragédia de Lula, que traiu, é verdade, as esperanças que tanta gente, fora e dentro do Brasil, depositou nele, do que a triste comédia catalã. De comum têm apenas a judicialização da política, uma opção tomada pelo Governo de Madrid para enfrentar a crise catalã, em lugar de fazer o que lhe competia: encontrar uma solução política. O movimento independentista já perdeu o elã. Os radicais da esquerda republicana, que tão bem manobraram a vasta frente independentista contra Madrid, já perderam a batalha. As hostes estão divididas. O dramatismo passou. A solução política continua à espera de melhores dias. Resta Carles Puigdemont, que consegue fazer quase todos os dias uma triste figura, apresentando-se como exilado político (não deve ter a menor ideia do que isso seja), não tendo nada para dizer além disso, destituído de um pingo de carisma, enquanto vai atravessando fronteiras europeias à espera de dar nas vistas. A justiça alemã acabou por ter a sentença mais acertada: o homem não é um “rebelde”, nem quer uma “rebelião”. Basta olhar para ele. O nacionalismo é um perigo que não é apenas de direita. Como se viu na Catalunha, pode vir da extrema-esquerda, infectando a sociedade para além daquilo que é racional. É a mesma tentação identitária, que alimenta os populismos e os nacionalismos em crescendo nas democracias europeias, abrindo as portas a fenómenos tão perigosos como o regresso do anti-semitismo, que críamos enterrado sob os escombros do Holocausto, mas que levanta a cabeça na França ou no Reino Unido. Como se vê na Catalunha, é também uma arma da esquerda radical ou de uma esquerda bem-pensante, que não tem mais nada a que se agarrar e que não é nem libertadora nem progressista. É pura e simplesmente nacionalista. Por mais incompetente que seja Mariano Rajoy e por mais escrupulosos que sejam os juízes. A Justiça não funciona numa campânula de vidro quimicamente purificada. Isso não existe. Os juízes são pessoas como as outras. A sua independência não quer dizer que não estejam sujeitos à crítica e, muito menos, à influência externa. Funcionam numa sociedade constituída por gente livre, também para emitir as suas opiniões sobre o que faz ou não faz. Pode acertar mas pode também errar. A tragédia de Lula, que é a tragédia do Brasil, não se pode resumir a uma frase: deixem a Justiça funcionar.

ANÁLISE
Céu mais nublado na Europa
A União Europeia já foi um poderoso exportador de democracia e de estabilidade, porque funcionava como o clube a que toda a gente queria pertencer. Hoje, é um importador de instabilidade. Precisa de redefinir rapidamente aquilo que quer ser no futuro.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 9 de Abril de 2018
1. Não. As luzes não se apagaram na Europa. As luzes da democracia, da paz e da tolerância continuam a iluminar o velho continente, que foi reconstruído depois da II Guerra para impedir o regresso do nacionalismo e das suas grandes tragédias. A diferença está em que a Europa está a ver despontar os sinais de que a batalha nunca está ganha. A Hungria acaba de o demonstrar, não permitindo qualquer interpretação mais optimista. Viktor Orbán ganhou folgadamente o seu terceiro mandato. A sua política nacionalista e a sua “guerra de usura” com a União Europeia continuam a dar frutos. O seu apelo à defesa da cristandade contra o Islão, algo impensável há meia dúzia de anos, continua a dar votos. O anti-semitismo, esse mal que se acreditava erradicado para sempre, nem sequer se esconde. George Soros foi o alvo central da campanha, enquanto símbolo da reconstrução do mito do judeu milionário, usurário e liberal, que mina os valores da pátria. Os cartazes com o seu rosto de nariz adunco e os seus braços longos sobre os ombros dos líderes da oposição falam por si. A Europa, pura e simplesmente, não pode ficar indiferente.
2. O Fidesz de Orbán, um opositor ao regime comunista e um grande admirador de Thatcher, começou por ser saudado como um partido liberal, que colocava o “regresso à Europa” como objectivo número um. Havia, nesses anos iniciais, um fortíssimo incentivo para prosseguir uma transição democrática suficientemente credível para permitir a integração na União Europeia. Ao lado da Polónia, da Republica Checa, da Eslováquia, da Eslovénia e dos Bálticos, o “grande alargamento” a Leste acabou por concretizar-se em 2004. A transição para uma economia de mercado foi dura. Construir um Estado de Direito sobre os escombros de um regime totalitário que durou mais de 40 anos, não era tarefa fácil. A consolidação democrática revelou-se mais difícil do que a transição. A crise existencial que abalou a Europa a partir de 2009, com as suas ondas de choque políticas, tornou o caminho mais fácil para a emergência do nacionalismo. Na Hungria e na Polónia, como na França ou na Alemanha. A diferença é que a resistência das democracias liberais a um fenómeno que não tem poupado quase ninguém, é muito maior. A Leste, o risco passou a ser a consolidação de regimes autoritários, incompatíveis com os fundamentos da União Europeia.
3. Há também responsabilidades europeias. Durante demasiado tempo, Bruxelas, Berlim ou Paris ignoraram os problemas específicos dos recém-chegados de Leste. Não resistiram, por vezes, à tentação de tratá-los como membros de segunda. Durante a guerra do Iraque, quando em Praga, Budapeste ou Varsóvia era claro o apoio aos Estados Unidos (incluindo figuras como Havel), porque era aos Estados Unidos que atribuíam a sua libertação, Jacques Chirac dizia-lhes que “faziam melhor em estar calados”. Quando alguns deles, sobretudo os Bálticos e a Polónia, chamaram a atenção para o perigo de uma Rússia regressada à reconquista da sua esfera de influência, os seus pares ocidentais reagiram ao alerta como um incómodo. Hoje, não é preciso dizer que tinham bastante razão. O antieuropeísmo também se foi alimentando destes casos. E, como sabemos, na Europa a História continua sempre à mão para justificar o nacionalismo, apontando o dedo aos outros.
4. A vaga de refugiados que desaguou em território europeu a partir de 2015, na sequência da guerra na Síria, transformou-se rapidamente no argumento que faltava para dar força à deriva nacionalista e xenófoba, em sociedades que viveram durante mais de 40 anos fechadas sobre si próprias, onde a homogeneidade étnica se manteve e onde os “outros” não existiam. Mas, mais uma vez, o fenómeno é comum a quase todo o espaço europeu, onde os migrantes de origem islâmica são hoje o alvo principal dos partidos populistas e nacionalistas. Angela Merkel já teve de mandar calar várias vezes o seu novo ministro do Interior e da Pátria, o líder da CSU da Baviera, que fala dos imigrantes com as mesmas palavras de Orbán. A diferença, mais uma vez, é fundamental. O Governo húngaro tenta destruir as bases do Estado de Direito, silenciando a imprensa e controlado os tribunais (o mesmo modelo posto em prática na Polónia). Na Alemanha, nada disso aconteceu ou acontecerá.
5. Em Budapeste ou Varsóvia, os governos autoritários não põem em causa a pertença à União Europeia ou à NATO. Precisam de ambas para financiar o seu desenvolvimento (a enxurrada de fundos permite a Orbán manter satisfeitos os empresários que se portarem bem) e garantir-lhes a segurança num mundo em crescente turbulência. O seu jogo é ser, ao mesmo tempo, europeu e antieuropeu, receber o máximo e contribuir com o mínimo. A crise europeia apenas tornou este jogo mais fácil. A União já foi um poderoso exportador de democracia e de estabilidade, porque funcionava como o clube a que toda a gente queria pertencer. Hoje, é um importador de instabilidade. Precisa de redefinir rapidamente aquilo que quer ser no futuro. A primeira coisa a fazer será recordar quais são os fundamentos em que assenta a integração europeia e exigir que sejam cumpridos. Desta vez, não vai poder contar com a ajuda da América e terá, ao mesmo tempo, de enfrentar a Rússia de Putin. O Presidente americano é o melhor aliado que novos regimes poderiam ter. “A questão fundamental do nosso tempo é se o Ocidente tem a vontade para sobreviver”, disse Trump em Varsóvia. “Temos o respeito suficiente pelos nossos cidadãos para garantir a protecção das nossas fronteiras?” Orbán não diria melhor. Hoje, o céu europeu está um pouco mais nublado. Ainda estamos longe do nevoeiro cerrado. Mas é prudente não olhar para o lado.



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