sábado, 7 de abril de 2018

Tão diferente


Pátrias perdidas, chefes perdidos, povos perdidos. Ou talvez não. A Itália, nação sempre assolada por lutas e divisionismos, mas forte e poderosa e gloriosa, tão criadora de beleza, tão extraordinária nas suas gentes, tão defensora da alegria de viver! Foi nela que começou, já na Meia Idade, o Renascimento com os seus ideais humanistas vivificados, que os outros povos adaptaram aos seus escritos e artes. Não, a Itália, solo de tantas Repúblicas, hoje um país uno, ou mesmo que o não seja, saberá seguir em frente, como sempre seguiu, na força das suas gentes. Afinal, foi um seu compositor que escreveu a ópera de que se extrai o “Canto dos Escravos Hebreus”, o “Va pensiero”, coro de saudade do solo natal, em tempo de repressão - caso da ocupação austríaca do Norte da Itália, no tempo em que Verdi a escreveu, sobre o cativeiro de Babilónia dos Judeus, no tempo de Nabucodonosor. É dele que se serve Rui Tavares, para comentar as eleições italianas actuais, que se revelaram tão indecisas, nos seus nacionalismos descrentes e nas suas dúvidas sobre chefes com autenticidade, - além das liberdades democráticas com dispensa generalizada de ideologias – trazendo cada vez mais confusão e indefinição nessas chefias - eleições de resultados, pois, catastróficos para uma coesão governativa pretendida.
Por cá, temos o chefe recente de um partido – Rui Rio – que não tem oferecido urgência nas respostas às exigências dos seus apoiantes, ele próprio também, talvez, dispensando as ideologias. David Dinis, na sua Editorial, usa uma espécie de estribilho sobre o tempo vazio de produção, de Rui Rio, desde que foi eleito e tomou posse, que, talvez como lamento, talvez como ironia, faz lembrar também o tal Coro, que, por isso, reproduzo, e que se escuta sempre com gosto e emoção. Por ser tão belo, é certo. Tão diferente da nossa míngua.

OPINIÃO Da pátria tão bela e perdida
Se o governo italiano for construído pelo Movimento 5 Estrelas com um apoio tácito de uma parte da esquerda pode ser que daqui a uns tempos se escrevam sobre a Itália os artigos a que agora nos habituámos sobre a geringonça portuguesa.
RUI TAVARES                         PÚBLICO, 9 de Março de 2018
Florença, Itália. — O Nabucco de Verdi estreou há 176 anos, na noite de 9 de março do ano de 1842, no Teatro alla Scala de Milão. Reza a lenda que quando ouviram então os versos do seu coro mais conhecido — o Va Pensiero, em que os judeus cantam as suas saudades da pátria no período do exílio babilónico —, os italianos puderam imediatamente tomar essas palavras como expressão do seu próprio anseio de unidade em época de dominação austríaca. Reza a lenda, digo eu, porque é bem possível que apenas retrospectivamente se tenha inventado esta explicação.
O que é certo é que menos de vinte anos depois a Itália era declarada oficialmente unificada pela mesma geração que ouvira o Nabucco. Desde então se falou muito de fazer do Va, Pensiero o hino do país — apenas mais uma das tantas coisas que os políticos italianos foram deixando para mais tarde, e que acabaram por não decidir.
Ora, uma das razões para que o Va, Pensiero não tenha sido escolhido como hino de Itália é que o seu poema parece derrotista. É nos seus versos que se fala de uma “minha pátria, tão bela e perdida” cujo único pecado é definir demasiado bem a Itália nos dias em que os italianos se sentem melancólicos.
Quase dois séculos depois, pouco se falou por aqui do aniversário do Va, Pensiero. Mas os italianos estão ocupados a discutir algo que os contemporâneos de Verdi imaginariam que viesse rapidamente a ser assunto encerrado, a saber: como é possível que das eleições de passado domingo tenha resultado um país partido ao meio?
Quem olhou para o mapa eleitoral de Itália viu uma mancha tricolor. Ao Norte, a cor azul da aliança de direita que esconde na verdade o verde escuro da Liga, partido que já foi separatista e então se chamava a “Liga Norte para a Independência da Padânia” (hino oficial: para suprema ironia e insulto, o Va, Pensiero de Verdi). Ao Sul, a paisagem eleitoral é dominada pelo amarelo do Movimento 5 Estrelas, que foi o partido mais votado do país.
É esta divisão geográfica e ideológica que levou os observadores externos a declarar o país partilhado entre dois populismos — o da Liga e o das 5 Estrelas — e a tomá-los por equivalentes. Daqui partiram as leituras apressadas que identificaram o anti-europeísmo e a xenofobia da Liga como se fosse transferível para as 5 Estrelas. O populismo é dominante em Itália, é verdade. Mas não seria verdade já antes? Não era Berlusconi populista? Não o era Renzi também, quando foi para um referendo proclamando que ou era ele ou era o caos? A questão que os observadores externos não se colocam mas que vai ocupar a mente dos italianos daqui para a frente é se todos estes populismos são iguais, ou seja, se isto significa que todos os gatos são pardos da mesma maneira.
E é aí que o voto no Sul vem dar algumas pistas para o futuro. O voto no Movimento 5 Estrelas é, sim, o voto de uma parte do país que se sente abandonada. Mas é, mais decisivamente ainda, um voto que vem da esquerda, e muitas vezes em políticos que vêm da esquerda.
É também o voto de uma região que tem um entendimento muito diferente do que deve ser a solidariedade na Itália e na Europa (críticos da Europa mais por falta dela do que por excesso dela, por muito que isso desagrade aos comentadores eurofóbicos). É verdade que, no tempo de Beppe Grillo, o Movimento 5 Estrelas se aliou no Parlamento Europeu ao grupo eurocético de Nigel Farage; mas também é verdade que muitos dos seus deputados queriam fazer parte dos Verdes europeus, e que o próprio Grillo tentou depois mudar para o grupo Liberal assumidamente eurofederalista. Os comentadores tentam recriar um ambiente de conflito na zona euro após as eleições italianas. Mas o anunciado ministro das finanças do movimento — que só pronunciou uma frase em inglês na noite eleitoral, para dizer que a Itália não sairia do euro - é um keynesiano heterodoxo que, se lá chegar, virá a ser no eurogrupo um bom aliado de Mário Centeno.
Na sua cegueira, parece que a presidência da Comissão Europeia preferia que Berlusconi tivesse ganho as eleições em Itália - isto quando o fim político de Berlusconi foi das poucas boas notícias que a Itália e a Europa tiveram no domingo. Mas se forem menos cegas, e menos surdas, pode ser que as instituições europeias ainda venham a encontrar razões para entender que o voto italiano tem aspectos mais construtivos do que aquilo que até agora se pensava. Muita água vai correr debaixo das pontes, mas se o governo italiano for construído pelo Movimento 5 Estrelas com um apoio tácito de uma parte da esquerda pode ser que daqui a uns tempos se escrevam sobre a Itália os artigos a que agora nos habituámos sobre a geringonça portuguesa. Vai uma aposta?
Regressemos a Verdi. O patriotismo italiano do seu tempo já era um patriotismo inclusivo e europeísta. Não é por acaso que um dos seus maiores cultores, o político Giuseppe Mazzini, inseriu o seu movimento de unificação italiana numa das primeiras associações políticas internacionais, a que chamou “Jovem Europa”. Esta tinha por objetivo a libertação de todos os europeus que viviam sob regimes absolutistas, ou seja, fazer da Europa (como da Itália) uma pátria menos “bela e perdida”. Eis um espírito no qual faríamos bem em procurar hoje alguma inspiração.

EDITORIAL               Quanto tempo tem Rui Rio?
Se Rui Rio parte da certeza que tem o lugar seguro até às legislativas, talvez seja bom lembrar-se do que aconteceu ao único líder partidário que tinha Seguro no nome.
DAVID DINIS           PÚBLICO, 9 de Março de 2018
Rui Rio foi eleito líder do PSD há 55 dias. E foi entronizado como presidente do partido há 19 dias. Neste entretanto, passou pela residência oficial do primeiro-ministro, e também pela sede do CDS. Ontem foi, finalmente, falar ao seu grupo parlamentar. Tirando o circuito oficial, recebeu um líder partidário de São Tomé e Príncipe e o embaixador alemão no seu gabinete. E saiu dele uma só vez, numa visita guiada à Bolsa de Turismo de Lisboa.Rui Rio foi eleito há 55 dias, entronizado há 19. E abriu negociações com o Governo sobre dois temas, ambos propostos pelo Governo, em que o PSD tinha já posições definidas sobre o assunto — sem que se conheça qualquer variante.
Rui Rio foi eleito há 55 dias, entronizado há 19. E já anunciou que terá um “Governo-sombra” — a que não quer chamar “Governo-sombra”, mas sim “porta-vozes” do partido. Só não terão ainda muito para dizer, porque para Rui Rio apresentar propostas é precipitado (“depressa e bem, não há muito quem”, disse-nos ele em Belém).
Rui Rio foi eleito há 55 dias, entronizado há 19. Mas, das directas para cá, não pôs um tema na agenda política. Neste tempo, disse-nos que “há vida e país para lá da economia”, mas o primeiro debate que pediu na Assembleia foi sobre... economia e desemprego. 
Rui Rio foi eleito há 55 dias, entronizado há 19, e deixou o palco ao Governo, ao CDS e à sua oposição interna, por quem mostra a indiferença que só alimenta a divergência.
Eleito há 55 dias, entronizado há 19, Rui Rio passou todo este tempo a “arrumar a casa”, confiando que a opinião pública verá nele o pacificador construtivo que faltava ao país. E não deve tardar muito a ter a sua primeira sondagem, que será o primeiro teste à estratégia do capacete azul silencioso.
Ontem, já passados 54 dias da liderança de Rui Rio, 18 da entronização, até Marcelo deixou o alerta: as primeiras eleições são já daqui a um ano e será necessária “uma área de governo muito forte e uma área de oposição muito forte”, para evitar brechas por onde entrem “demagogos, populistas”.
Cinquenta e cinco dias, ou 19, se preferir, não serão suficientes para Rui Rio se impor como líder, mas podem ser suficientes para se criar a ideia de que o seu silêncio não é prudência, é impreparação. E se Rui Rio parte da certeza de que tem o lugar seguro até às legislativas, talvez seja bom lembrar-se do que aconteceu ao único líder partidário que tinha Seguro no nome.
Rui Rio foi eleito há 55 dias, entronizado há 19. Mas quanto tempo tem Rui Rio para nos deixar a primeira ideia? Quanto tempo terá Rui Rio?
VA PENSIERO

Va', pensiero, sull'ali dorate
Va', ti posa sui clivi, sui colli
Ove olezzano tepide e molli
L'aure dolci del suolo natal!

Del Giordano le rive saluta
Di Sïonne le torri atterrate
Oh mia patria sì bella e perduta!
Oh membranza sì cara e fatal!

Arpa d'or dei fatidici vati
Perché muta dal salice pendi?
Le memorie nel petto raccendi
Ci favella del tempo che fu!

O simìle di Sòlima ai fati
Traggi un suono di crudo lamento
Oh! T'ispiri il signore un concento
Che ne infonda al patire virtù!
Che ne infonda al patir
Al patire virtù
Che ne infonda al patir
Al patire virtù    
     Al patire virtù!

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