Sim, a vida humana deixou de
fazer sentido, apurados os meios para a destruir, e até o espectáculo mediático
que tantas vezes proporciona, seduzindo, provavelmente, esses tais que se dizem
compassivos dos seres que sofrem, desfeita a esperança de esses tais seres
viverem “com dignidade”, isto é, sem dor e sem recuperação de saúde. Bagão Félix pronuncia-se sobre o tema “eutanásia”,
com a qualidade da sua decência cultural e humana, facilmente ironizável nas
puerilidades ostentadoras de leituras amenas de antigas e célebres escritoras,
defensoras, em seu tempo, do feminismo igualitário, como a Jane Austen,
criadora de figuras femininas de rebeldia provocatória das convenções, e a que
a comentadora Jeine Ósten da
Covilhã
pretende equiparar-se, em liberdade reprodutora de novos chavões de
sensibilidade e pseudo humanismo.
Não vou alargar-me. BAGÃO
FÉLIX se pronuncia com a qualidade devida, e bem assim um dos seus comentadores,
JOÃO LOPES. Que os outros aplicam os chavões trocistas contra os
católicos, como se só estes fossem contra a tal eutanásia, que a
esquerda delirante quer erguer em lei, e talvez consiga, num país minúsculo e
indefeso.
Não,
não vejo presunção de amor, na eutanásia, mas impaciência, egoísmo, desejo de
libertação, quantas vezes o desejo de antecipar a herança que se vai receber, embora
haja casos de sabotagem, já o Padre Manuel Bernardes contava a história da
velhinha que, para ser bem tratada pelo filho e pela nora, fazia tilintar
aparentes moedas, no seu quarto solitário, que se revelaram apenas desprezíveis
cacos, quando morreu, história que já reproduzi em “A Velhinha de Bernardes”,
e de que transcrevo a parte final (in “Prosas Alegres e Não”, 1973): «Quando
morreu, após mais uns anos em que viveu novamente acarinhada, em vez do dinheiro
com que contavam, filho e nora descobriram cacos e um papel com significativos
dizeres de prevenção contra a tolice de se desfazerem dos bens a favor dos
filhos, antes de morrerem.»
Sei
bem que não se trata apenas de velhos, nestes casos de “boa morte”, de
libertação da dor impotente, mas não comparo com o meu “Fox”, que, por amor, não
permiti que sofresse mais, chamando a veterinária que o sossegou, finalmente, e
não assisti, fugindo, literalmente, a viver de longe os seus últimos momentos,
de velho cão meigo e resistente. Mas eu não abandonaria a pessoa que eu amasse,
não passaria a ninguém a responsabilidade da sua morte, sofreria com ela até ao
fim, não por masoquismo, não por sadismo, mas por apego ao ser amado, por
horror ao crime de matar. Tentaria, sim, diminuir-lhe as dores, com os anestesiantes
receitados, que, afinal, lhe abreviariam a vida, mas acompanhá-lo-ia,
certamente, com o sofrimento e o horror próprios.
Mas
terminemos mais na desportiva, com um artigo de JOÃO MIGUEL TAVARES,
para espairecermos… antes da machadada da aprovação da lei criminosa.
I TEXTO: OPINIÃO
A) No princípio (do fim) é a eutanásia... E depois?
Temos a figura do “testamento vital” ainda a dar os primeiros passos e
quer acelerar-se tudo isto em nome de quê?
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 27 de Abril de 2018
O recente livro Reanimar?, da autoria de António Maia
Gonçalves, especialista em Medicina Interna e em Cuidados
Intensivos, é uma obra escrita com profundo humanismo e baseada numa rica
experiência de situações concretas, envolvendo questões deontológicas e
bioéticas perante a iminência da morte. Um notável livro de uma pessoa que se
confessa “apaixonada pelo milagre da vida”
e que me ajudou a reflectir sobre a eticidade da relação necessariamente
assimétrica entre o médico e o doente, entendida como um modo de serviço e não
de poder.
Vem isto a propósito da
eutanásia, sobre a qual o autor também discorre, baseado no fundamento
hipocrático de há 25 séculos e – cito – no “princípio
da autonomia e respeito pela vontade do doente, que fazem parte da boa prática
clínica, mas que não é uma autonomia que desresponsabiliza os médicos e que
anula a relação de confiança com os seus doentes”.
O médico é, por
essência, um mediador, cuja acção deve radicar na primazia do doente e na troca
permanente de confiança, de humanidade, de competência, de generosidade, de
disponibilidade. Em suma, de responsabilidade.
A eutanásia é um tema
divisor, onde os absolutismos não são aconselháveis. Estamos diante do bem
soberano que é a vida (não referendável) e da sua relação com a medicina, a
bioética, a filosofia, a ciência, o direito, a religião.
O que mais confrange em
alguns debates ou opiniões é o simplismo de pseudo truísmos, a
superficialidade, a trivialização, a generalização abusiva. É necessário termos
a humildade de perceber quão cómodo é discutir o sofrimento e a morte em
abstracto face ao seu dramático enfrentamento em concreto. E nisso o livro
citado é bem elucidativo.
Na moral cristã que é a
minha, a vida é um dom de Deus. Somos usufrutuários, não donos do nosso corpo.
A vida é para a pessoa, mas não pertence à pessoa. E, como disse Jean Guitton,
“a maneira de preparar a morte é verdadeiramente uma virtude ou o
seu contrário”.
Não se trata, todavia,
de um assunto que se esgote ou que se deva impor apenas no plano religioso, a
não ser na opção de cada um.
A eutanásia tem sido
definida como “uma intervenção ou omissão deliberadas, com a intenção de terminar a vida
de alguém, a seu pedido (informado, consciente e reiterado),
quando este apresente sofrimento intolerável,
estando em fim de vida”. Os
defensores da sua legalização falam também de “evitar sofrer inutilmente” através de uma “morte digna e assistida” (sublinhados meus).
São facilmente
perceptíveis a sua inconstitucionalidade (“a vida humana é inviolável”, art.º 24 da CRP)
e, sobretudo, a ambiguidade de conceitos, a ténue e perigosa linha
entre o uso e o abuso da lei e a corrosão da ética e deontologia de
cuidar quando não é possível curar. É que, na “morte clinicamente
assistida”, não se trata só da liberdade de morrer, mas da necessidade de
alguém que mate ou que para isso contribua, legalizada
pelo Estado.
O que é “um sofrimento
intolerável”? Como se mede? O que comporta, para além da dor? E como se define
a fronteira do “sofrimento inútil”? É até um paradoxo um Estado legalizar a
eutanásia quando a evolução científica, técnica e farmacológica oferece
cuidados paliativos para uma morte digna.
Normativizar o
sofrimento é uma insegura e perigosa estrada que vai da dor física ao
sofrimento psíquico, senão mesmo existencial. E estará o legislador tão seguro
de formular uma norma inatacável sobre a natureza livre, consciente e informada
do pedido de eutanásia? A determinação da “vontade de morrer” de alguns doentes
não exprime, necessariamente, o pedido para ser eutanasiado. Todos estes
conceitos, aliás, podem resvalar danosamente, como o comprova o abuso da
lei na Holanda, onde a eutanásia já atinge 3% dos óbitos anuais.
Aliás, continua a haver
muita confusão de conceitos, deliberada ou inconsciente, pondo tudo no mesmo
saco: eutanásia activa e passiva, suicídio assistido, ortotanásia, obstinação
terapêutica. E há actos e condutas conformes às exigências
éticas e boas práticas clínicas que não configuram a prática da eutanásia. Por
exemplo, a recusa de tratamentos objectivamente inúteis, o uso mais digno e
humanista de cuidados continuados e sedação paliativa e a recusa da
obstinação ou futilidade terapêuticas.
Sobre esta, cito a própria
posição da Igreja Católica: “A cessação de tratamentos médicos
onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados
esperados, pode ser legítima. É a rejeição do ‘encarniçamento terapêutico’. Não
que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o facto de a não
poder impedir.”
Temos a figura do “testamento
vital” ainda a dar os primeiros passos e quer acelerar-se tudo isto
em nome de quê? Face à “inutilidade do sofrimento” nesta “sociedade de
cansaço”, quem garante que certas expressões eugénicas em torno do
envelhecimento e da dependência não se seguirão, em nome de um pretenso “avanço
civilizacional”?
Nestas matérias, sabe-se
como as coisas começam, nunca se sabe como acabam...
B) Curiosidades linguísticas e científicas justificativas:
IPSIS VERBIS
CITAÇÃO: “A morte não melhora ninguém...”
(Mário Quintana, 1906-1994)
EUFEMISMO: “Morte
clinicamente assistida” em vez de eutanásia, ela própria
etimologicamente um eufemismo grego (“boa morte”)
OXÍMORO: Um
eterno instante
PALÍNDROMO (capicua de letras): REVIVER
PLEONASMO: A viúva do falecido
METÁFORA: “A morte
é a curva da estrada” (Fernando Pessoa, 1888-1935)
«Originário do
Mediterrâneo, o cipreste
exibe uma silhueta recta, colunar e alta, culminando numa copa cónica, unida a
um tronco fibroso, com uma ramificação fastigiada de um verde intensivo e
profundo. Quando mutilado no tronco, jamais volta a crescer. Daí, talvez, uma
das razões por que o ligam à ideia da morte. Em Portugal, é muito visto em
cemitérios, por ter uma forma que lembra as velas junto das campas. Porém,
não sabendo o que é a eutanásia arbórea, o cipreste poder viver um milhar de
anos, visto como um símbolo de longevidade, imortalidade e espiritualidade
associado não à morte, mas à vida, não à tristeza, mas ao júbilo, não ao vazio,
mas à eternidade. Van Gogh imortalizou-o através da pintura. A sua madeira
aromática é de uma resistência e durabilidade que a tornam quase imputrescível.
Como tal, foi usada como sarcófago e consta que foi com ela que se
construiu a bíblica Arca de Noé e o Templo de Salomão. A urna de São João
Paulo II é de madeira de cipreste.»
C) COMENTÁRIOS
Jeine
Ósten, Covilhã : A vida não é um
milagre. É um facto. É um processo biológico. É inviolável? Não é. É
"violada" diariamente, quando não há coisas tão simples como uma
habitação digna desse nome, alimentação, emprego, etc. A minha vida não me
pertence? O quê, nem a minha vida, o meu corpo me pertencem? Sou assim tão
destituída? Não. Se há algo que é meu é o meu corpo e a vida dentro dele.
Quanto a livros, sugiro um também da autoria da Doutora Laura Ferreira dos
Santos: "Ajudas-me a morrer?". É um livro de uma investigadora que
nele recolhe factos, não milagres, e se me afigura fundamental para o assunto
em questão. Já agora, no princípio é a eutanásia. E no fim? É a morte para quem
a pediu, é o fim do sofrimento.
Pedotec: Para os católicos a vida é um dom de
Deus e por isso não é pertença individual. Mesmo quando é um dom horrível (ex.
doenças genéticas incapacitantes; fim de vida altamente doloroso sob todas as
formas)! Há que aguentar! Depois vem o paraíso (que nunca ninguém conseguiu
descrever de forma minimamente atraente, mas parece envolver virgens ou
"Virgem"). O poder da ilusão é tremendo e desfoca a razão: os
católicos nas suas ânsias preocupam-se com a vida sobretudo até ao nascimento e
depois da morte. A vida "vivida" passa-lhes um bocado ao lado porque
estão sempre à espera das manifestações da vontade de Deus e a tentar influenciá-la
com umas rezas (ou, mais poderosamente, com umas cadeia de oração, que podem
incluir personagens já mortos - a "comunhão dos santos"). Estranha
forma de viver!
JOÃO LOPES: A defesa da vida, em todas as circunstâncias,
é a defesa da humanidade. Os promotores da cultura da morte - aborto e
eutanásia - atentam contra a dignidade da pessoa humana: são os
"bárbaros" e os "monstros" destes tempos… A eutanásia e o
suicídio assistido são diferentes formas de matar. Os tribunais, os médicos e
os enfermeiros existem para defender a vida humana e não para matar nem serem
cúmplices do crime de outros...
João Rodrigues: O costume! Para os católicos romanos
qualquer coisa que ponha em causa os seus dogmas é um crime! A vida de uma
pessoa pertence ao próprio e não a um deus qualquer ou voltamos outra vez à
idade média!!!!
II TEXTO: OPINIÃO
Com um jornalismo neutro, eu nunca me comprometo
Em Portugal, sempre que o jornalismo é incómodo torna-se rapidamente
ilegítimo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 26 de Abril de 2018
Nos últimos 15 dias li duas
entrevistas a António Mexia, por alturas da sua recondução como
presidente da EDP. Uma no Jornal de Negócios, a outra
na Visão. Li também declarações suas
na Lusa. Essas entrevistas foram feitas em Washington. A EDP pagou as
viagens. Segundo a Visão, António Mexia
“escolheu os Estados Unidos da América – mercado cada vez mais relevante para a
eléctrica – para inaugurar o novo mandato em que foi investido recentemente”.
Contudo, quando lemos as quatro páginas que tanto o jornal como a revista lhe
dedicam, verificamos que as entrevistas foram realizadas num hotel de
Washington, tal como poderiam ter sido realizadas num hotel do Chiado.
Porque é que a EDP se dá
ao luxo de pagar a vários jornalistas uma estada em Washington só para
entrevistar um homem que trabalha diariamente em Lisboa? Porque as manobras de
charme endinheiradas resultam sempre. Vai-se a ver, e ambas as
entrevistas são sobre os grandes projectos da EDP, mais os clássicos “desafios
para o futuro”, reservando-se duas modestas perguntas sobre o processo judicial
em que António Mexia e João Manso Neto são arguidos, por suspeitas de
corrupção. Pergunta da Visão: “Quanto à
investigação judicial, aos CMEC, em que é arguido, já disse estar confiante de
que as coisas se resolverão e explicarão. Mas o que fará se for deduzida
acusação? Interrompe o mandato?” Pergunta do Jornal de Negócios: “Em relação ao processo dos
CMEC, coloca a hipótese de alguma vez poder vir, eventualmente, a ser acusado?”
A que se segue uma outra, talvez a minha favorita: “Sente-se perseguido pela
justiça neste processo?”
Não é minha intenção
apontar o dedo aos jornalistas que fizeram estas duas entrevistas, porque se outros
estivessem no seu lugar provavelmente teriam feito o mesmo. A única coisa que
quero sublinhar, e daí ter trazido para aqui um exemplo concreto, é que este
sempre foi o tipo de jornalismo mais comum em Portugal. Conheço-o desde que
leio jornais: perguntas muito abertas, cheias de alcatifas e almofadas,
rodeadas de cuidadosos condicionais, e com a notável capacidade para juntar
numa só frase, que termina com a arriscadíssima palavra “acusado”, as
expressões “coloca a hipótese”, “poder vir a ser” e “eventualmente”,
não vá António Mexia sentir-se ofendido com a pergunta. Hoje é assim
com António Mexia, que continua todo-poderoso, como era assim com Ricardo
Salgado nos tempos do DDT.
Este, claro está, é o
jornalismo que toda a gente aprecia e acerca do qual nunca se ouvem críticas.
Pessoas extremamente bem-educadas, em ambientes cordiais, a conversarem
pacatamente, sem darem azo à erupção de questões deontológicas. O outro
jornalismo, aquele que chateia, dói, confronta, escrutina e arrisca, é logo
vilipendiado, que isto é um país de gente mansa e delicada. O respeitinho é
muito bonito.
Ricardo Costa
já escreveu no Expresso um óptimo texto
(“Isto não é jornalismo) a justificar a exibição das imagens da SIC.
Leiam-no, por favor. Eu quero apenas declarar que há duas coisas que me
deixam abismado sempre que se discutem as ligações entre justiça, jornalismo,
política e os todo-poderosos. A primeira é o fantasma da república dos
juízes. A segunda é o fantasma do jornalismo justiceiro, destruidor de vidas e
liberdades. São, de facto, patéticos fantasmas: nunca existiram,
e contudo são invocados há décadas para impedir o escrutínio mais elementar. Em
Portugal, sempre que o jornalismo é incómodo torna-se rapidamente ilegítimo.
Jornalista
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