É o que nos dizem os dois textos seguintes, antecedidos pelo comentário
explicitador do contexto em que se geraram, de Boris Vian, entre
os muitos que o artigo de João Miguel Tavares provocou. Quanto ao artigo
de Rui Ramos, exaltador de Ana Gomes, também julgo que a isenção desta
é de elogiar, pois normalmente as suas críticas pendem sobre a direita, quais
espadas flamejantes e iracundas, na presunção repetitiva de que a esquerda é “outra
loiça”, e sempre na sua voz esganiçada de justiceira com parcialidade.
UM COMENTÁRIO:
Boris
Vian, Porto 24.04.2018 : Parece
que o que há de novo nesta reportagem relativamente à Operação Marquês, é a
divulgação da imagem de José Sócrates. Porque há muitos excertos do
interrogatório que já eram do conhecimento público. E segundo declarações de Ricardo
Costa, a SIC podia e devia ter passado as imagens do interrogatório. Diz: é
óbvio que não foi uma decisão fácil, mas houve imensos cuidados e muita
ponderação antes de partirem para a divulgação. E isto acontece também no
seguimento de uma série de reportagens que este canal apresentou logo após ter
saído a acusação a Sócrates. Portanto, se foi proferida a acusação, o segredo
de justiça acaba nesse momento.
É importante lembrar,
que estamos a falar de um caso que envolve um primeiro-ministro num processo
gravíssimo da democracia portuguesa, que envolve a falência bancária da maior
empresa do mercado bolsista. Conclui, este caso não é um caso menor, é um caso onde
o interesse público é absoluto e indiscutível. Que o digam os lesados...
Porque é que só há uma Ana Gomes?
OBSERVADOR, 24/4/2018
A sociedade portuguesa gera rotação no poder quando o dinheiro acaba,
como vimos em 2002 ou em 2011. Mas já não gera alternativas, como constatámos
em 2015 com o regresso dos colegas de Sócrates.
Tal como todos os políticos, a eurodeputada Ana Gomes chegou a algumas
conclusões sobre o caso Sócrates-Salgado. Mas ao contrário de todos os outros
políticos, não as guardou para si ou para os seus amigos. Disse-as em voz alta,
este fim de semana: “o Partido
Socialista prestou-se a ser instrumento de corruptos e de
criminosos”, e avisou que quer o congresso do PS a discutir porque foi assim.
“Pela regeneração do próprio PS, da política e do próprio país”.
Alguém dirá que é muita coragem para uma militante socialista. Mas Ana
Gomes não é apenas a única socialista a dizer o que pensa sobre o caso
Sócrates-Salgado. É
mais do que isso: é a única figura política, de qualquer partido. Porque a
propósito da Operação Marquês, a única coisa que os nossos oligarcas gostam de
comentar ao pé do microfone é a “violação do segredo de justiça”, isto
é, a publicação pela imprensa das informações que lhe chegam do processo. Sobre
isso, não falta a ninguém eloquência. O problema, como é antiga tradição em
Portugal, é o “jornalismo de sarjeta”. O Dr. Salazar certamente que estaria de
acordo.
Porque é que os outros políticos não dizem nada? Porque o que está em
causa no processo Sócrates-Salgado, à medida que o novelo é desfiado pela
justiça e pela imprensa, é demasiado grave para a oligarquia se permitir
olhá-lo de frente. Não é um episódio isolado de corrupção pessoal, mas um
sistema, um “mecanismo”, em que um chefe de governo e um dos maiores banqueiros
do país terão, segundo a acusação, conspirado contra a lei e contra o interesse
público. Ou seja, um Lava Jato, que só parece mais pequeno, não porque Portugal
seja pequeno, mas porque o regime continua a esforçar-se por reduzir tudo a
um fait-divers, como se tudo, no fundo, não fosse mais do que um daqueles
escândalos privados com que o jet-set dá cor à imprensa popular. Entretanto, os acusados, suspeitos e implicados
insistem em manter-se no palco, enfrentando com desfaçatez e absurdo toda a
evidência. Na
plateia, os oligarcas guardam silêncio, incluindo os antigos justiceiros
do BE e do PCP. Tal como não deram pelas cativações de Centeno, também não dão
pelo que se vai sabendo do que terá sido, segundo a justiça e a imprensa, o
império de Sócrates e de Salgado entre 2005 e 2011.
De facto, não é só coragem que falta. Falta também uma alternativa. Se
tivessem de ser tiradas todas as consequências desta história, que aconteceria?
Infelizmente, e ao contrário do que espera Ana Gomes, o PS, a política e o país
não parecem capazes de regeneração. É por isso que somos governados, não apenas
pelo PS, mas exactamente pelas mesmas pessoas que estiveram no governo de José
Sócrates. A
sociedade portuguesa gera rotação no poder quando o dinheiro acaba, como vimos
em 2002 ou em 2011. Mas já não gera alternativas, como constatámos em 2015, com
o regresso dos colegas de Sócrates, e agora, com a liquidação do PSD por Rui
Rio. A divergência
económica em relação à Europa, o endividamento e o envelhecimento da população
tiraram ânimo e independência à sociedade portuguesa. Em Espanha, a revolta
contra a corrupção fez nascer o Ciudadanos; em França, a invalidez dos velhos
partidos gerou Macron. Aqui, há vozes isoladas, como Ana Gomes.
Mas se está calada, nem por isso a oligarquia está quieta.
Move-se — para se defender. O grande desígnio nacional é agora o
afastamento da procuradora-geral da república. Porque se na política só há uma
Ana Gomes, quem sabe se na justiça também só há – ou só possa haver — uma Joana
Marques Vidal? Talvez baste afastá-la para, utilizando a metáfora de Ana
Gomes, a tartaruga poder continuar com a cabeça dentro da carapaça.
OPINIÃO
Falemos, então, das
imagens da SIC
Se interiorizássemos que
cada um daqueles homens é suspeito de ter roubado não o Estado, mas cada um de
nós, seríamos certamente muito mais tolerantes em relação àquelas reportagens e
muito menos tolerantes em relação à corrupção.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 24 de Abril de 2018
Pode uma sociedade ser
em simultâneo profundamente dependente do Estado e profundamente desconfiada do
Estado? Pode, claro – a sociedade portuguesa não é outra coisa senão isso.
Uma das consequências dessa postura é esta: num país onde toda a gente sente
que a corrupção é um mal muito entranhado e muitíssimo mal combatido, são
realmente poucos os que estão dispostos a assumir as consequências do seu
combate, para além das indignações episódicas em conversas de café e nas redes
sociais.
Sim, a corrupção é
terrível, mas o enriquecimento ilícito inverte o ónus da prova. Sim, a
corrupção é horrível, mas a delação premiada é uma deriva pidesca. Sim, a
corrupção é detestável, mas prender alguém antes do trânsito em julgado da
sentença é uma barbaridade. Sim, a corrupção é lamentável, mas onde é que já se
viu expor interrogatórios de arguidos na televisão? Sim, a corrupção é a pior coisa
do mundo – excepto quando tentamos encontrar formas eficazes de a combater,
porque todas elas ainda são piores do que a corrupção.
Esta atitude deriva de
uma profunda incapacidade em colocar o interesse colectivo acima do interesse
individual. Sei bem os perigos que este argumento encerra: a PIDE queria
proteger os interesses da nação e a Inquisição jurava proteger o bem comum da
fé – e olhem no que deu. Certo. Mas a balança tem de estar minimamente
equilibrada, senão caímos na absoluta impunidade: um país incapaz de condenar
corruptos, ou sequer de prendê-los em tempo útil já depois de condenados, de
tal forma é garantista o nosso sistema judicial.
Quando olhamos para as
reportagens da SIC, onde são expostas pessoas a serem interrogadas, eu não
tenho dúvidas de que essa opção atenta contra os interesses daqueles
indivíduos. A questão está em saber se o interesse colectivo o justifica. Que
aquelas reportagens acrescentaram muito à informação disponível na sociedade
portuguesa não me parece que haja dúvidas. É verdade que pessoas extremamente
bem informadas conheciam tudo aquilo. Mas sejamos sérios: quem é que em
Portugal lê diariamente o PÚBLICO, o Correio da Manhã, o i, o Observador, a Sábado, a Visão, o Expresso e o Sol, para ter a informação
completa sobre a Operação Marquês?
Eu digo-vos quem: pessoas como eu, que fazem disso profissão.
O trabalho da SIC teve,
pois, o mérito de unir todas as pontas, de uma forma muito compreensível para o
grande público. Mais: a voz e postura corporal dos arguidos são elementos
fundamentais para a formação de uma convicção. Tenho dúvidas sobre certas
opções tomadas – penso, em particular, que testemunhas e arguidos não deveriam
ser tratados da mesma forma, e acho essencial todos serem informados de que
estão a ser filmados –, mas não alinho no desprezo acerca da importância que
aquelas imagens têm para o esclarecimento da opinião pública quando estão em
causa crimes de corrupção.
E deixem-me voltar a
repetir estas três palavras: crimes de corrupção. A lei permite que
qualquer pessoa seja constituída assistente em processos envolvendo crimes
cometidos no exercício de funções públicas – e permite muito bem, na medida em
que todos nós somos vítimas. Infelizmente, nós próprios, as vítimas,
tendemo-nos a esquecer disso. A corrupção não é uma coisa lá deles – é
connosco. Se interiorizássemos que cada um daqueles homens é suspeito de ter
roubado não o Estado, mas cada um de nós, seríamos certamente muito mais
tolerantes em relação àquelas reportagens e muito menos tolerantes em relação à
corrupção.
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