Um artigo do Dr.
Salles da Fonseca sobre uma figura da história da Holanda que teve participação
na história portuguesa – Maurício de
Nassau, governador do Nordeste Brasileiro na altura do domínio filipino em
Portugal – fez-me procurar na Internet o Sermão do Padre António Vieira
responsável pela revolta portuguesa que repôs o governo português no Recife.
Trata-se do “Sermão
pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda” que eu apenas conhecia
por referência, e logo encontrei, com alegria e gratidão pela Internet, mais
uma peça de arte oratória que resolvi guardar no meu blog.
Um sermão que mais uma vez comprova os extraordinários
dons oratórios de Vieira, no seu discurso temerário, desafiante – desta vez ao
próprio Deus, tal como o haviam feito outras personagens bíblicas das suas citações,
que vai entremeando com ironia ou zanga ao longo dos cinco capítulos da
estrutura externa, para adaptar às razões que evoca na argumentação com Deus e
o levar ao arrependimento por consentir que o povo que difundiu a fé pelo mundo
seja escorraçado em parte desse mundo por um povo herege, o holandês.
É este, pois, o tema do sermão, que parte dum juízo
bíblico – o conceito predicável – retirado do salmo XLIII de David
– que traduzo do manual bíblico de que disponho: Bíblia Sagrada (versão
dos textos originais), 5ª Edição, 1973 pela Difusora Bíblica (Missionários
Capuchinhos) Lisboa: «Acordai, Senhor, porque dormis? / Despertai e não me
rejeiteis para sempre! / Porque escondeis a vossa face? / Esqueceis a nossa
miséria e opressões? ( / A nossa alma está prostrada até ao pó, / O nosso
ventre pegou-se à terra,) / Levantai-vos, e vinde em nosso auxílio, / E
livrai-nos pela vossa bondade!»
E as frases do Salmo são retomadas logo no Exórdio (Cap. I), repetidas a
espaços, como refrão, para apoiar paralelisticamente o discurso da sua lógica
argumentativa, que finaliza em censura: Se o dedo de Deus esteve presente na
acção descobridora portuguesa, como o retirou, castigando um povo devoto, que
no amor de Deus tanto fizera e tão longe chegara, espalhando a fé, e vendo
agora o seu território ocupado por inimigos dessa mesma fé? Será, pois um
discurso de desafio a Deus, propter nomen tuum, para a própria glória de
Deus, desviando-o da injustiça.
Abrange a Exposição os capítulos II-IV, sempre
em forma de libelo repetitivo, justificada a argumentação com o recurso às citações
bíblicas do seu paralelismo condenatório, de desafio e acusação, para opor seguidamente
a ocupação portuguesa em nome da fé, à dos hereges holandeses em nome do
interesse económico: No capítulo II,
cita S. Paulo a pretexto de uma
autocrítica pela sua ousadia em se opor aos juízos de Deus e logo se socorre
das críticas bem sucedidas de Moisés contra a severidade de Jeová para
com os judeus idólatras do bezerro de ouro. Também Job lhe serve de
apoio crítico, na injustiça de que os portugueses são alvo, e no lamento que
nele provoca a penúria de fé que a extorsão holandesa traz aos tapuias,
evangelizados por Vieira e outros evangelistas. O capítulo III
desenvolvendo ainda mais os argumentos históricos e emotivos contra o povo
holandês, repisa as citações anteriores, acrescentando Josué, no seu
lamento e na sua incompreensão pelo sofrimento do povo de Israel, e exprime dolorosamente
o seu desafio irónico de bênçãos divinas para o povo holandês. Outras citações bíblicas
são citadas no capítulo IV neste discurso de argumentação e
contra-argumentação, como a parábola do banquete ou a das dez virgens
para as lâmpadas da Fé acesas, e novamente
o desafio e a ameaça da substituição de S. Jerónimo e de Santo Agostinho
pelas doutrinas reformistas de Lutero e de Calvino.
Um capítulo V da Peroração, jogando com uma argumentação cerrada em torno do
pecado e do conceito de uma glória maior para um Deus que perdoa do que para um
Deus que castiga, seguida do Epílogo de apelo ao perdão de Deus pelos
merecimentos da Virgem Santíssima:
Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra
as de Holanda
(Biblioteca online)
Padre António
Vieira
Exurge quare obdormis, Domine? Exurge, et ne repellas in finem.
Quare faciem tuam avertis, oblivisceris inopiae nostrae et tribulationis
nostrae? Exurge, Domine, adjuva nos et redime nos propter nomen tuum.
(Salmo XLIII)
I
Com estas palavras piedosamente resolutas, mais
protestando, que orando, dá fim o Profeta Rei ao Salmo quarenta e três.
Salmo, que desde o princípio até o fim, não parece senão cortado para os tempos
e ocasião presente. O Doutor Máximo S. Jerónimo, e depois dele os outros
expositores, dizem que se entende à letra de qualquer reino ou província
católica, destruída e assolada por inimigos da Fé. Mas entre todos os reinos do
Mundo a nenhum lhe quadra melhor que ao nosso Reino de Portugal; e entre todas as
províncias de Portugal a nenhuma vem mais ao justo que à miserável província do
Brasil.
Vamos lendo todo o Salmo, e em todas as cláusulas dele
veremos retratadas as da nossa fortuna: o que fomos e o que somos.
Deus, auribus
nostris audivimus, Patres nostri annuntiaverunt nobis, opus, quod operatus es
in diebus eorum, et in diebus antiquis. Ouvimos
(começa o profeta) a nossos pais, lemos nas nossas histórias e ainda os
mais velhos viram, em parte, com seus olhos as obras maravilhosas, as
proezas, as vitórias, as conquistas, que por meio dos portugueses obrou
em tempos passados vossa omnipotência, Senhor. Manus tua gentes disperdit, et
plantasti eos; afflixisti populos et expulisti eos. Vossa mão foi a que venceu e sujeitou tantas nações bárbaras,
belicosas e indómitas, e as despojou do domínio de suas próprias terras
para nelas os plantar, como plantou com tão bem fundadas raízes; e para nelas os
dilatar, como dilatou e estendeu em todas as partes do Mundo, na África, na
Ásia, na América. Nunc autem repulisti
et confundisti nos; et non egredieris Deus in virtutibus nostris. Porém agora, Senhor, vemos tudo isso tão trocado, que
já parece que nos deixastes de todo e nos lançastes de vós, porque já não ides
diante das nossas bandeiras, nem capitaneais como dantes os nossos exércitos. Avertisti nos retrorsum post inimicos nostros, et qui
oderunt nos, diripiebant sibi. Os que tão
costumados éramos a vencer e triunfar, não por fracos, mas por castigados,
fazeis que voltemos as costas a nossos inimigos (que como são açoite de vossa
justiça, justo é que lhes demos as costas), e perdidos os que antigamente foram
despojos do nosso valor, são agora roubo da sua cobiça. Dedisti nos tanquam
oves escarum et in gentibus dispersisti nos. Os velhos, as mulheres, os
meninos, que não têm forças nem armas com que se defender, morrem como ovelhas
inocentes às mãos da crueldade herética, e os que podem escapar à morte,
desterrando-se a terras estranhas, perdem a casa e a pátria. Posuisti nos
opprobrium vicinis nostris, subsannationem et derisum his, qui sunt in circuitu
nostro. Não fora tanto para sentir, se, perdidas fazendas e vidas,
se salvara ao menos a honra; mas também esta a passos contados se vai perdendo;
e aquele nome português, tão celebrado nos anais da fama, já o herege insolente
com as vitórias o afronta, e o gentio de que estamos cercados, e que tanto o
venerava e temia, já o despreza. Tu es ipse rex meus
et Deus meus: qui mandas salutes Jacob. Com
tanta propriedade como isto descreve David neste Salmo nossas desgraças, contrapondo
o que somos hoje ao que fomos enquanto Deus queria, para que na experiência
presente cresça a dor por oposição com a memória do passado. Ocorre aqui ao
pensamento o que não é lícito sair à língua, e não falta quem discorra
tacitamente, que a causa desta diferença tão notável foi a mudança da
monarquia. Não havia de ser assim (dizem) se vivera um D. Manuel, um D. João o
Terceiro, ou a fatalidade de um Sebastião não sepultara com ele os reis
portugueses. Mas o mesmo Profeta no mesmo Salmo nos dá o desengano desta falsa
imaginação: Tu es ipse rex meus et Deus meus: qui mandas salutes Jacob.
O Reino de Portugal, como o mesmo Deus nos declarou na sua fundação, é
reino seu e não nosso: Volo enim in te et in semine tuo imperium mihi
stabilire, e como Deus é o rei: Tu es ipse rex meus et Deus meus; e
este rei é o que manda e o que governa: Qui mandas salutes Jacob, ele
que não se muda é o que causa estas diferenças, e não os reis que se
mudaram. À vista, pois, desta verdade certa e sem engano, esteve um pouco
suspenso o nosso Profeta na consideração de tantas calamidades, até que
para remédio delas o mesmo Deus, que o alumiava
Exurge, quare obdormis, Domine? Exurge, et ne repellas in finem. Quare faciem tuam
avertis, oblivisceris inopiae nostrae et tribulationis nostrae? Exurge, Domine,
adjuva nos et redime nos propter nomen tuum. Não
prega David ao povo, não o exorta ou repreende, não faz contra ele invectivas,
posto que bem merecidas; mas todo arrebatado de um novo e extraordinário
espírito, se volta não só a Deus, mas piedosamente atrevido contra ele.
Assim como Marta disse a Cristo: Domine, non est tibi curae? assim
estranha David reverentemente a Deus, e quase o acusa de descuidado.
Queixa-se das desatenções de sua misericórdia e providência, que isso é
considerar a Deus dormindo: Exurge! Quare obdormis, Domine? Repete-lhe
que acorde e que não deixe chegar os danos ao fim, permissão indigna de sua
piedade: Exurge, et ne repellas in finem. Pede-lhe a razão
por que aparta de nós os olhos e não volta o rosto: Quare faciem tuam
avertis?, e por que se esquece da nossa miséria e não faz caso de
nossos trabalhos: Oblivisceris inopiae nostrae et tribulationis nostrae?
E não só pede de qualquer modo esta razão do que Deus faz e permite,
senão que insta a que lha dê, uma e outra vez: Quare obdormis? Quare
oblivisceris? Finalmente, depois destas perguntas, a que
supõe que não tem Deus resposta, e destes argumentos com que presume o
tem convencido, protesta diante do tribunal de sua justiça e piedade, que
tem obrigação de nos acudir, de nos ajudar e de nos libertar logo: Exurge,
Domine, adjuva nos et redime nos. E para mais obrigar ao mesmo
Senhor, não protesta por nosso bem e remédio, senão por parte da sua
honra e glória: Propter nomen tuum. Esta é,
Todo-Poderoso e Todo-Misericordioso Deus, esta é a traça de que usou
para render vossa piedade, quem tanto se conformava com vosso coração.
E desta usarei eu também hoje, pois o estado em que nos vemos, mais é o
mesmo que semelhante. Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar
com os homens; mais alto hão de sair as minhas palavras ou as minhas vozes:
a vosso peito divino se há de dirigir todo o sermão. É este o último
de quinze dias contínuos, em que todas as igrejas desta Metrópole, a
esse mesmo trono de vossa patente Majestade, têm representado suas deprecações;
e, pois, o dia é o último, justo será que nele se acuda tão bem ao último e
único remédio. Todos estes dias se cansaram debalde os oradores evangélicos em
pregar penitência aos homens; e, pois, eles se não converteram, quero eu, Senhor,
converter-vos a vós. Tão presumido venho da vossa misericórdia, Deus meu,
que ainda que nós somos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido.
O
que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva
nos, et redime nos. Mui conformes são estas petições ambas
ao lugar e ao tempo. Em tempo que tão oprimidos e tão cativos
estamos, que devemos pedir com maior necessidade, senão que nos liberteis:
Redime nos? E na casa da Senhora da Ajuda, que devemos esperar com maior
confiança, senão que nos ajudeis: Adjuva nos? Não hei
de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e
liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fora só nossa
e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas como
a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de
vossa honra e glória, e pelo crédito de vosso nome – Propter nomen
tuum – razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre
este pressuposto vos hei de arguir, vos hei de argumentar; e confio tanto da
vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei de convencer. Se
chegar a me queixar de vós e a acusar as dilatações de vossa justiça, ou as
desatenções de vossa misericórdia: Quare obdormis? Quare oblivisceris?
Não será esta vez a primeira em que sofrestes semelhantes excessos a
quem advoga por vossa causa. As custas de toda a demanda também vós, Senhor, as
haveis de pagar, porque me há de dar vossa mesma graça as razões com que vos
hei de arguir, a eficácia com que vos hei de apertar e todas as armas com que
vos hei de render. E se para isto não bastam os merecimentos da causa,
suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja ajuda principalmente confio. Ave
Maria.
II
Exurge!
Quare obdormis, Domine? Querer argumentar com Deus e convencê-lo com "Homem
atrevido – diz S. Paulo – homem temerário, quem és tu, para que te ponhas a
altercar com Deus? Porventura o barro que está na roda e entre as mãos do
oficial, põe-se às razões com ele e diz-lhe: por que me fazes assim?" Pois
se tu és barro, homem mortal, se te formaram as mãos de Deus da matéria vil da
terra, como dizes ao mesmo Deus: – Quare? Quare? – Como te
atreves a argumentar com a sabedoria divina, como pedes razão à sua Providência
do que te faz ou deixa de fazer? Quare obdormis? Quare faciem tuam
avertis? Venera suas permissões, reverencia e adora seus ocultos juízos,
encolhe os ombros com humildade a seus decretos soberanos, e farás o que te
ensina a Fé e o que deves à criatura. Assim o fazemos, assim o confessamos,
assim o protestamos diante de vossa Majestade infinita, imenso Deus,
incompreensível bondade: Justus es, Domine, et rectum judicium tuum. Por
mais que nós não saibamos entender vossas obras, por mais que não possamos
alcançar vossos conselhos, sempre sois justo, sempre sois santo, sempre sois
infinita bondade; e ainda nos maiores rigores de vossa justiça, nunca chegais
com a severidade do castigo aonde nossas culpas merecem. Se as razões e
argumentos da nossa causa as houvéramos de fundar em merecimentos próprios,
temeridade fora grande, antes impiedade manifesta, querer-vos arguir. Mas nós,
Senhor, como protestava o vosso profeta Daniel: Neque enim in
justificationibus nostris, prosternimus preces ante faciem tuam, sed in
miserationibus tuis multis: os requerimentos, e razões deles, que
humildemente presentamos ante vosso divino conspecto, as apelações ou
embargos que interpomos à execução e continuação dos castigos que padecemos, de
nenhum modo os fundamos na presunção de
nossa justiça, mas todos na multidão de vossas misericórdias: In
miserationibus tuis multis.
Argumentamos,
sim, mas de vós para vós; apelamos, mas de Deus para Deus – de Deus
justo, para Deus misericordioso. E como do peito, Senhor, vos hão de
sair todas as setas, mal poderão ofender vossa bondade. Mas porque a dor
quando é grande sempre arrasta o afecto, e o acerto das palavras é
descrédito da mesma dor, para que o justo sentimento dos males presentes
não passe os limites sagrados de quem fala diante de Deus e com Deus, em
tudo o que me atrever a dizer seguirei as pisadas sólidas dos que em
semelhantes ocasiões, guiados por vosso mesmo espírito, oraram e exoraram vossa
piedade.
Quando
o povo de Israel no deserto cometeu aquele gravíssimo pecado de idolatria,
adorando o ouro das suas jóias na imagem bruta de um bezerro, revelou Deus o
caso a Moisés, que com ele estava, e acrescentou irado e resoluto, que daquela
vez havia de acabar para sempre com uma gente tão ingrata, e que a todos havia
de assolar e consumir, sem que ficasse rasto de tal geração: Dimitte me, ut
irascitur furor meus contra eos et deleam eos. Não lhe sofreu,
porém, o coração ao bom Moisés ouvir falar em destruição e assolação do seu
povo; põe-se em campo, opõe-se à ira divina e começa a arrazoar assim: Cur,
Domine, irascitur furor tuus contra populum tuum? "E bem, Senhor, por
que razão se indigna tanto a vossa ira contra o de vos dizer que está o povo
idolatrando; que está adorando um animal bruto; que está negando a divindade ao
mesmo Deus e dando-a a uma estátua muda, que acabaram de fazer suas mãos, e
atribuindo-lhe a ela a liberdade e triunfo com que os livrou do cativeiro do
Egito, e sobre tudo isso ainda perguntais a Deus por que razão se agasta: Cur
irascitur furor tuus?! – Sim, e com muito prudente zelo; porque
ainda que da parte do povo havia muito grandes razões de ser castigado, da
parte de Deus era maior a razão que havia de o não castigar: Ne, quaeso, –
dá razão Moisés, – ne, quaeso, dicant Aegyptii: Callide eduxit eos,
ut interficeret in montibus et deleret e terra. Olhai, Senhor, que
porão mácula os egípcios em vosso ser, e, quando menos, em vossa verdade e
bondade. Dirão que, cautelosamente e à falsa fé, nos trouxestes a este deserto,
para aqui nos tirardes a vida a todos e nos sepultardes. E com esta opinião
divulgada e assentada entre eles, qual será o abatimento de vosso santo nome,
que tão respeitado e exaltado deixastes no mesmo Egipto, com tantas e tão
prodigiosas maravilhas do vosso poder? Convém logo, para conservar o crédito,
dissimular o castigo e não dar com ele ocasião àqueles gentios e aos outros, em
cujas terras estamos, o que dirão: Ne, quaeso, dicant.
Desta
maneira arrazoou Moisés em favor do povo; e ficou tão convencido Deus da força
deste argumento, que no mesmo ponto revogou a sentença, e, conforme o texto
hebreu, não só se arrependeu da execução, senão ainda do pensamento: Et
poenituit Dominum mali, quod cogitaverat facere populo suo. E arrependeu-se
o Senhor do pensamento e da imaginação que tivera de castigar o seu
povo.
Muita
razão tenho eu logo, Deus meu, de esperar que haveis de sair deste sermão
arrependido, pois sois o mesmo que éreis, e não menos amigo agora, que nos
tempos passados, de vosso nome: Propter nomen tuum. Moisés disse-vos: Ne,
quaeso, dicant: "Olhai, senhor, que dirão." E eu digo e
devo dizer: Olhai, senhor, que já dizem. Já dizem os hereges insolentes
com os sucessos prósperos, que vós lhes dais ou permitis: já dizem que porque a
sua, que eles chamam religião, é a verdadeira, por isso Deus os ajuda e vencem;
e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece e somos vencidos.
Assim o dizem, assim o pregam, e ainda mal, porque não faltará quem os creia.
Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra
vossa Fé? É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias
contra vosso nome?! Que diga o herege (o que treme de o pronunciar a língua),
que diga o herege, que Deus está holandês?! Oh não permitais tal, Deus meu, não
permitais tal, por quem sois! Não o digo por nós, que pouco ia em que nos
castigásseis; não o digo pelo Brasil, que pouco ia em que o destruísseis; por
vós o digo e pela honra de vosso Santíssimo Nome, que tão imprudentemente se vê
blasfemado: Propter nomen tuum. Já que o pérfido calvinista dos sucessos
que só lhe merecem nossos pecados faz argumento da religião, e se jacta
insolente e blasfemo de ser a sua verdadeira, veja ele na roda dessa mesma
fortuna, que o desvanece, de que parte está a verdade. Os ventos e tempestades,
que descompõem e derrotam as nossas armadas, derrotem e desbaratem as suas; as
doenças e pestes, que diminuem e enfraquecem os nossos exércitos, escalem as
suas muralhas e despovoem os seus presídios, os conselhos que, quando vós
quereis castigar, se corrompem, em nós sejam alumiados e neles enfatuados e
confusos. Mude a vitória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas,
triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e
desenganada a perfídia, que só a Fé romana, que professamos, é Fé, e só ela a
verdadeira e a vossa. Mas ainda há mais quem diga. Ne, quaeso, dicant
Aegyptii: Olhai, Senhor, que vivemos entre gentios, uns que o são, outros
que o foram ontem; e estes que dirão? Que dirá o Tapuia bárbaro sem
conhecimento de Deus? Que dirá o Índio inconstante, a quem falta a pia afeição
da nossa Fé? Que dirá o Etíope boçal, que apenas foi molhado com a água do
baptismo sem mais doutrina? Não há dúvida que todos estes, como não têm
capacidade para sondar o profundo de vossos juízos, beberão o erro pelos olhos.
Dirão, pelos efeitos que vêem, que a nossa Fé é falsa, e a dos holandeses a
verdadeira, e crerão que são mais cristãos, sendo como eles. A seita do herege
torpe e brutal concorda mais com a brutalidade do bárbaro; a largueza e soltura
da vida, que foi a origem e é o fomento da heresia, casa-se mais com os
costumes depravados e corrupção do gentilismo; e que pagão haverá que se
converta à Fé que lhe pregamos, ou que novo cristão já convertido, que se não
perverta, entendendo e persuadindo-se uns e outros que no herege é premiada a
sua lei, e no Católico se castiga a nossa? Pois se estes são os efeitos, posto
que não pretendidos, de vosso rigor e castigo, justamente começado em nós, se
ateia e passa com tanto dano aos que não são cúmplices das nossas culpas: Cur
irascitur furor tuus? Por que continua sem estes reparos o que vós mesmo
chamastes furor? E por que não acabais já de embainhar a espada de vossa ira?
Se tão gravemente ofendido do povo hebreu, por um que dirão dos egípcios lhe
perdoastes; o que dizem os hereges, e o que dirão os gentios,não será bastante
motivo para que vossa rigorosa mão suspenda o castigo e perdoe também os nossos
pecados, pois, ainda que grandes, são menores? Os hebreus adoraram o ídolo,
faltaram à Fé, deixaram o culto do verdadeiro Deus, chamaram Deus e Deuses a um
bezerro: e nós, por mercê de vossa bondade infinita, tão longe estamos e estivemos
sempre de menor defeito ou escrúpulo nesta parte, que muitos deixaram a pátria,
a casa, a fazenda, e ainda a mulher e os filhos, e passam em suma miséria
desterrados, só por não viver nem comunicar com homens que se separaram da
vossa Igreja. Pois, Senhor meu e Deus meu, se por vosso amor e por vossa Fé,
ainda sem perigo de a perder ou arriscar, fazem tais finezas os portugueses: Quare
oblivisceris inopiae nostrae? et tribulationis nostrae? Por que vos
esqueceis de tão religiosas misérias, de tão católicas tribulações? Como é
possível que se ponha Vossa Majestade irada contra estes fidelíssimos servos, e
favoreça a parte dos infiéis, dos excomungados, dos ímpios? Oh! como nos
podemos queixar neste passo, como se queixava lastimado Jó, quando,
despojado dos sabeus e caldeus, se viu, como nós nos vemos, no extremo da
opressão e miséria: Nunquid bonum tibi videtur, si calumnieris me
et opprimas me opus manuum tuarum et consilium impiorum adjuves? Parece-vos
bem, Senhor, parece-vos bem isto? Que a mim, que sou vosso servo, me
oprimais e aflijais, e aos ímpios, aos inimigos vossos os favoreçais e
ajudeis? Parece- vos bem que sejam eles os prosperados e assistidos de
vossa providência, e nós os deixados de vossa mão; nós os esquecidos de
vossa memória, nós o exemplo de vossos rigores, nós o despojo de vossa
ira? Tão pouco é desterrar-nos por vós e deixar tudo? Tão pouco é
padecer trabalhos, pobrezas e os desprezos que elas trazem consigo, por
vosso amor? Já a fé não tem merecimento? Já a piedade não tem valor? Já
a perseverança não vos agrada? Pois se há tanta diferença entre nós, ainda que
maus, e aqueles pérfidos, por que os ajudais a eles e nos desfavoreceis a nós? Nunquid
bonum tibi videtur: "A vós, que sois a mesma bondade, parece-vos bem
isto?"
III
Considerai,
Deus meu – e perdoai-me, se falo inconsideradamente – considerai a quem tirais
as terras do Brasil e a quem as dais. Tirais estas terras aos portugueses a
quem nos princípios as destes; e bastava dizer a quem as dais, para perigar o
crédito de vosso nome, que não podem dar nome de liberal mercês com
arrependimento. Para que nos disse S. Paulo, que vós, Senhor, "quando
dais, não vos arrependeis": Sine paenitentia enim sunt dona Dei?
Mas deixado isto à parte: tirais estas terras àqueles mesmos portugueses
a quem escolhestes entre todas as nações do Mundo para conquistadores da vossa
Fé, e a quem destes por armas como insígnia e divisa singular vossas próprias
chagas. E será bem, Supremo Senhor e Governador do Universo, que às sagradas
quinas de Portugal e às armas e chagas de Cristo, sucedam as heréticas listas
de Holanda, rebeldes a seu rei e a Deus? Será bem que estas se vejam tremular
ao vento vitoriosas, e aquelas abatidas, arrastadas e ignominiosamente
rendidas? Et quid facies magno nomini tuo? E que fareis (como dizia Josué)
ou que será feito de vosso glorioso nome em casos de tanta afronta? Tirais
também o Brasil aos portugueses, que assim estas terras vastíssimas, como as
remotíssimas do Oriente, as conquistaram à custa de tantas vidas e tanto
sangue, mais por dilatar vosso nome e vossa Fé (que esse era o zelo daqueles
cristianíssimos reis) que por amplificar e estender seu império. Assim fostes
servido que entrássemos nestes novos mundos, tão honrada e tão gloriosamente, e
assim permitis que saiamos agora (quem tal imaginaria de vossa
bondade!), com tanta afronta e ignomínia! Oh! como receio que não falte
quem diga o que diziam os egípcios: Callide eduxit eos, ut
interficeret et deleret e terra. Que a larga mão com que nos destes tantos
domínios e reinos não foram mercês de vossa liberalidade, senão cautela
e dissimulação de vossa ira, para aqui fora e longe de nossa Pátria
nos matardes, nos destruirdes, nos acabardes de todo. Se esta havia de
ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para
que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue
nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que
descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os
ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no Oceano, que
não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de
tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão
lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados
nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que
assim ganhamos, as hajamos de perder assim? Oh! quanto melhor nos fora nunca
conseguir, nem intentar tais empresas! Mais santo que nós era Josué,
menos apurada tinha a paciência, e, contudo, em ocasião semelhante, não falou
(falando convosco) por diferente linguagem. Depois de os filhos de Israel
passarem às terras ultramarinas do Jordão, como nós a estas, avançou parte do
exército a dar assalto à cidade de Hai, a qual nos ecos do nome já parece que
trazia o prognóstico do infeliz sucesso que os israelitas nela tiveram; porque
foram rotos e desbaratados, posto que com menos mortos e feridos, do que nós
por cá costumamos. E que faria Josué à vista desta desgraça? Rasga as
vestiduras imperiais, lança-se por terra, começa a clamar ao Céu: Heu!
Domine Deus, quid voluisti traducere populum istum Jordanem fluvium, ut
traderes nos in manus Amorrhaei? "Deus meu e Senhor meu, que é isto?
Para que nos mandastes passar o Jordão e nos metestes de posse destas terras,
se aqui nos haveis de entregar nas mãos dos amorreus e perder-nos?" Utinam
mansissemus trans Jordanem! "Oh! nunca nós passáramos tal rio!"
Assim
se queixava Josué a Deus, e assim nos podemos nós queixar, e com muito maior
razão que ele. Se este havia de ser o fim de nossas navegações, se estas
fortunas nos esperavam nas terras conquistadas: "Oh! Nunca nós passáramos
tal rio!". Utinam mansissemus trans Jordanem! Prouvera a vossa
Divina Majestade que nunca saíramos de Portugal, nem fiáramos nossas vidas às
ondas e aos ventos, nem conhecêramos ou puséramos os pés em terras estranhas!
Ganhá-las para as não lograr, desgraça foi e não ventura; possuí-las para as
perder, castigo foi de vossa ira, Senhor, e não mercê, nem favor de vossa
liberalidade. Se determináveis dar estas mesmas terras aos piratas de Holanda,
por que lhas não destes enquanto eram agrestes e incultas, senão agora? Tantos
serviços vos tem feito esta gente pervertida e apóstata, que nos mandastes
primeiro cá por seus aposentadores; para lhe lavrarmos as terras, para lhe
edificarmos as cidades, e depois de cultivadas e enriquecidas lhas entregardes?
Assim se hão de lograr os hereges e inimigos da Fé, dos trabalhos portugueses e
dos suores católicos? En queis consevimus agros! "Eis aqui
para quem trabalhamos há tantos anos! "Mas pois vós, Senhor, o quereis e
ordenais assim, fazei o que fordes servido. Entregai aos holandeses o
Brasil, entregai- lhes as Índias, entregai-lhes as Espanhas (que não são menos
perigosas as consequências do Brasil perdido); entregai- lhes quanto temos e
possuímos (como já lhes entregastes tanta parte); ponde em suas mãos o Mundo; e
a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos,
acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes
mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais
algum dia, e que os não tenhais. Não me atrevera a falar assim, se não tirara
as palavras da boca de Jó, que como tão lastimado, não é muito entre muitas
vezes nesta tragédia.
Queixava-se
o exemplo da paciência a Deus (que nos quer Deus sofridos, mas não
insensíveis), queixava-se do tesão de suas penas demandando e altercando,
por que se lhe não havia de remitir e afrouxar um pouco o rigor delas; e como a
todas as réplicas e instâncias o Senhor se mostrasse inexorável, quando já não
teve mais que dizer, concluiu assim: Ecce nunc in pulvere dormiam, et si
mane me quaesieris, non subsistam. Já que não quereis, Senhor,
desistir ou moderar o tormento, já que não quereis senão continuar o
rigor e chegar com ele ao cabo, seja muito embora; matai-me,
consumi-me,enterrai-me: Ecce nunc in pulvere dormiam; mas só vos
digo e vos lembro uma coisa: que "se me buscardes amanhã, que me não
haveis de achar": Et si mane me quaesieris, non subsistam. Tereis
aos sabeus, tereis aos caldeus, que sejam o roubo e o açoite de vossa casa; mas
não achareis a um Jó que a sirva, não achareis a um Jó que a venere, não
achareis a um Jó, que ainda com suas chagas a não desautorize. O mesmo
digo eu, senhor, que não é muito rompa nos mesmos afectos, quem se vê no mesmo
estado. Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que algum dia
queirais espanhóis e portugueses, e que os não acheis. Holanda vos dará os
apostólicos conquistadores, que levem pelo Mundo os estandartes da cruz;
Holanda vos dará os pregadores evangélicos, que semeiem nas terras dos bárbaros
a doutrina católica e a reguem com o próprio sangue; Holanda defenderá a
verdade de vossos Sacramentos e a autoridade da Igreja Romana; Holanda
edificará templos, Holanda levantará altares, Holanda consagrará sacerdotes e
oferecerá o sacrifício de vosso Santíssimo Corpo; Holanda, enfim, vos servirá e
venerará tão religiosamente, como em Amsterdão, Meldeburgo e Flisinga e em
todas as outras colónias daquele frio e alagado inferno se está fazendo
todos os dias.
IV
Bem
vejo que me podeis dizer, Senhor, que a propagação de vossa Fé e as obras de
vossa glória não dependem de nós, nem de ninguém, e que sois poderoso, quando
faltem homens, para fazer das pedras filhos de Abraão. Mas também a vossa
sabedoria e a experiência de todos os séculos nos têm ensinado, que depois
de Adão não criastes homens de novo, que vos servis dos que tendes neste Mundo,
e que nunca admitis os menos bons, senão em falta dos melhores. Assim o
fizestes na parábola do banquete. Mandastes chamar os convidados que
tínheis escolhido, e porque eles se escusaram e não quiseram vir, então
admitistes os cegos e mancos, e os introduzistes em seu lugar: Caecos et
claudos introduc huc. E se esta é, Deus meu, a regular disposição de vossa
providência divina, como a vemos agora tão trocada em nós e tão diferente
connosco? Quais foram estes convidados e quais são estes cegos e mancos? Os
convidados fomos nós, a quem primeiro chamastes para estas terras, e nelas nos
pusestes a mesa, tão franca e abundante, como de vossa grandeza se podia
esperar. Os cegos e mancos são os luteranos e calvinistas, cegos sem fé e
mancos sem obras, na reprovação das quais consiste o principal erro da sua
heresia. Pois se nós, que fomos os convidados, não nos escusamos nem duvidamos
de vir, antes rompemos por muitos inconvenientes em que pudéramos duvidar; se
viemos e nos assentamos à mesa, como nos excluís agora e lançais fora dela e
introduzis violentamente os cegos e mancos, e dais os nossos lugares ao herege?
Quando em tudo o mais foram eles tão bons como nós, ou nós tão maus como eles,
por que nos não há de valer pelo menos o privilégio e prerrogativa da fé? Em
tudo parece, Senhor, que trocais os estilos de vossa providência e mudais as
leis de vossa justiça connosco.
Aquelas
dez virgens do vosso Evangelho todas se renderam ao sono, todas
adormeceram, todas foram iguais no mesmo descuido: Dormitaverunt omnes
et dormierunt. E contudo, a cinco delas passou- lhes o esposo por este
defeito, e só porque conservaram as alâmpadas acesas, mereceram entrar às
bodas, de que as outras foram excluídas. Se assim é, Senhor meu, se assim o
julgastes então (que vós sois aquele Esposo Divino), por que não nos vale a
nós também conservar as alâmpadas da Fé acesas, que no herege estão tão apagadas
e tão mortas? É possível que haveis de abrir as portas a quem traz as
alâmpadas apagadas, e as haveis de fechar a quem as tem acesas? Reparai,
senhor, que não é autoridade do vosso divino tribunal que saíam dele no mesmo
caso duas sentenças tão encontradas. Se às que deixaram apagar as alâmpadas se
disse: Nescio vos; se para elas se fecharam as portas: Clausa est
janua; quem merece ouvir de vossa boca um Nescio vos tremendo, senão
o herege, que vos não conhece? E a quem deveis dar com a porta nos olhos, senão
ao herege, que os tem tão cegos? Mas eu vejo que nem esta cegueira, nem este
desconhecimento, tão merecedores de vosso rigor, lhe retarda o progresso de
suas fortunas, antes a passo largo se vêm chegando a nós suas armas vitoriosas,
e cedo nos baterão às portas desta vossa cidade. Desta vossa cidade disse; mas
não sei se o nome do Salvador, com que a honrastes, a salvará e defenderá, como
já outra vez não defendeu; nem sei se estas nossas deprecações, posto que tão
repetidas e continuadas, acharão acesso a vosso conspecto divino, pois há
tantos anos que está bradando ao Céu a nossa justa dor, sem a vossa clemência
dar ouvidos a nossos clamores. Se acaso for assim (o que vós não permitais), e
está determinado em vosso secreto juízo que entrem os hereges na Bahia, o que
só vos represento humildemente e muito deveras, é que antes da execução da
sentença repareis bem, Senhor, no que vos pode suceder depois, e que o
consulteis com vosso coração enquanto é tempo; porque melhor será arrepender
agora, que quando o mal passado não tenha remédio. Bem estais na intenção e
alusão com que digo isto, e na razão, fundada em vós mesmo, que tenho para o
dizer. Também antes do dilúvio estáveis vós mui colérico e irado contra
os homens, e por mais que Noé orava em todos aqueles cem anos, nunca houve
remédio para que se aplacasse vossa ira. Romperam-se, enfim, as cataratas do
céu, cresceu o mar até os cumes dos montes, alagou-se o Mundo todo: já estaria
satisfeita a vossa justiça. Senão quando, ao terceiro dia, começaram a boiar os
corpos mortos, e a surgir e aparecer em multidão infinita aquelas figuras
pálidas, e então se representou sobre as ondas a mais triste e funesta tragédia
que nunca viram os anjos, que homens que a vissem não os havia. Vistes vós
também (como se o vísseis de novo) aquele lastimosíssimo espectáculo, e posto
que não chorastes, porque ainda não tínheis olhos capazes de lágrimas,
enterneceram-se, porém, as entranhas de vossa Divindade, "com tão
intrínseca dor": Tactus dolore cordis intrinsecus que, do modo
que em vós cabe arrependimento, vos arrependestes do que tínheis feito
ao Mundo; e foi tão inteira a vossa contrição, que não só tivestes pesar do
passado, senão propósito firme de nunca mais o fazer: Nequanquam ultra
maledicam terrae propter homines.
Este
sois, Senhor, este sois; e pois sois este não vos tomeis com vosso coração.
Para que é fazer agora valentias contra ele, se o seu sentimento, e o vosso as
há de pagar depois? Já que as execuções de vossa justiça custam arrependimento
à vossa bondade, vede o que fazeis antes que o façais, não vos aconteça outra.
E para que o vejais com cores humanas, que já vos não são estranhas, dai-me
licença que eu vos represente primeiro ao vivo as lástimas e misérias deste
futuro dilúvio, e se esta representação vos não enternecer e tiverdes entranhas
para o ver sem grande dor, executai-o embora. Finjamos, pois (o que até fingido
e imaginado faz horror); finjamos que vem a Bahia e o resto do Brasil a mãos
dos holandeses; que é o que há de suceder em tal caso? – Entrarão por esta
cidade com fúria de vencedores e de hereges; não perdoarão a estado, a sexo nem
a idade; com os fios dos mesmos alfanjes medirão a todos; chorarão as mulheres,
vendo que se não guarda decoro à sua modéstia; chorarão os velhos, vendo que se
não guarda respeito a suas cãs; chorarão os nobres, vendo que se não guarda
cortesia à sua qualidade; chorarão os religiosos e veneráveis sacerdotes, vendo
que até as coroas sagradas os não defendem; chorarão finalmente todos, e entre
todos mais lastimosamente os inocentes, porque nem a esses perdoará (como em
outras ocasiões não perdoou), a desumanidade herética. Sei eu, Senhor, que só
por amor dos inocentes dissestes vós alguma hora, que não era bem castigar a
Nínive. Mas não sei que tempos, nem que desgraça é esta nossa, que até a
mesma inocência vos não abranda. Pois também a vós, Senhor, vos há de alcançar
parte do castigo (que é o que mais sente a piedade cristã), também a vós há de
chegar. Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras; arrebatarão essa
custódia, em que agora estais adorado dos anjos; tomarão os cálices e vasos
sagrados, e aplicá-los-ão a suas nefandas embriaguezes; derrubarão dos altares
os vultos e estátuas dos santos, deformá-las-ão a cutiladas, e metê-las-ão no
fogo; e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas nem às imagens tremendas de
Cristo crucificado, nem às da Virgem Maria.
Não
me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e
afrontas nas vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo
corpo; mas nas da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como isto
pode estar com a piedade e amor de Filho. No Monte Calvário esteve esta Senhora
sempre ao pé da cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis,
nenhum se atreveu a lhe tocar nem a lhe perder o respeito. Assim foi e assim
havia de ser, porque assim o tínheis vós prometido pelo Profeta: Flagellum
non appropinquabit tabernaculo tuo. Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto
cuidado tivestes então do respeito e decoro de vossa Mãe, como consentis agora
que se lhe façam tantos desacatos?
Nem
me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem. Imagem somente da mesma
Virgem era a Arca do Testamento, e só porque Oza a quis tocar, lhe tirastes a
vida. Pois se então havia tanto rigor para quem ofendia a imagem de Maria, por
que o não há também agora? Bastava então qualquer dos outros desacatos às
coisas sagradas, para uma severíssima demonstração vossa, ainda milagrosa. Se a
Jeroboão, por que levantou a mão para um Profeta, se lhe secou logo o braço
milagrosamente, como aos hereges, depois de se atreverem a afrontar vossos
santos, lhes ficam ainda braços para outros delitos? Se a Baltasar, por beber
pelos vasos do templo, em que não se consagrava vosso sangue, o privastes da
vida e do reino, por que vivem os hereges, que convertem vossos cálices a usos
profanos? Já não há três dedos que escrevam sentença de morte contra
sacrílegos?!
Enfim,
Senhor, despojados assim os templos e derrubados os altares, acabar-se-á no
Brasil a cristandade católica; acabar-se-á o culto divino; nascerá erva nas
igrejas, como nos campos; não haverá quem entre nelas. Passará um dia de Natal,
e não haverá memória de vosso nascimento; passará a Quaresma e a Semana Santa,
e não se celebrarão os mistérios de vossa Paixão. Chorarão as pedras das ruas,
como diz Jeremias que choravam as de Jerusalém destruída: Viae Sion
lugent, eo quod non sint qui veniant ad solemnitatem. Ver-se-ão
ermas e solitárias, e que as não pisa a devoção dos fiéis, como costumava em
semelhantes dias. Não haverá missas, nem altares,nem sacerdotes que as digam;
morrerão os católicos sem confissão nem sacramentos; pregar-se-ão heresias
nestes mesmos púlpitos, e em lugar de São Jerónimo e Santo Agostinho,
ouvir-se-ão e alegar-se-ão neles os infames nomes de Calvino e Lutero;
beberão a falsa doutrina os inocentes que ficarem, relíquias dos portugueses;e
chegaremos a estado que, se perguntarem aos filhos e netos dos que aqui estão:
– Menino, de que seita sois? Um responderá: – Eu sou calvinista; outro: – Eu
sou luterano. Pois isto se há de sofrer, Deus meu? Quando quisestes entregar
vossas ovelhas a São Pedro, examinaste- lo três vezes se vos amava: Diligis
me, diligis me, diligis me? E agora as entregais desta maneira, não
a pastores, senão aos lobos?! Sois o mesmo, ou sois outro? Aos hereges o vosso
rebanho? Aos hereges as almas? Como tenho dito, e nomeei almas, não vos quero
dizer mais. Já sei, Senhor, que vos haveis de enternecer e arrepender, e que
não haveis de ter coração para ver tais lástimas e tais estragos. E se assim é
(que assim o estão prometendo vossas entranhas piedosíssimas), se é que há de
haver dor, se é que há de haver arrependimento depois, cessem as iras, cessem
as execuções agora, que não é justo vos contente antes o de que vos há de pesar
em algum tempo. Muito honrastes, Senhor, ao homem na criação do Mundo,
formando-o com vossas próprias mãos, informando-o e animando-o com vosso
próprio alento e imprimindo nele o carácter de vossa imagem e semelhança. Mas parece
que logo desde aquele mesmo dia vos não contentastes dele, porque de todas as
outras coisas que criastes, diz a Escritura que vos pareceram bem: Vidit
Deus quod esset bonum; e só do homem o não diz. Na admiração desta
misteriosa reticência andou desde então suspenso e vacilando o juízo humano,
não podendo penetrar qual fosse a causa por que, agradando-vos com tão pública
demonstração todas as vossas obras, só do homem, que era a mais perfeita de
todas, não mostrásseis agrado. Finalmente, passados mais de mil e
setecentos anos, a mesma Escritura, que tinha calado aquele mistério, nos
declarou que vós estáveis arrependido de ter criado o homem: Paenituit
eum quod hominem fecisset in terra, e que vós mesmo dissestes que vos
pesava: Paenitet me fecisse eos; e então ficou patente e manifesto a
todos o segredo que tantos tempos tínheis ocultado. E vós, Senhor, dizeis que
vos pesa e que estais arrependido de ter criado o homem; pois essa é a causa
por que logo desde o princípio de sua criação vos não agradastes dele, nem
quisestes que se dissesse que vos parecera bem, julgando, como era razão, por
coisa muito alheia de vossa sabedoria e providência, que em nenhum tempo vos
agradasse nem parecesse bem aquilo de que depois vos havíeis de arrepender e
ter pesar de ter feito: Paenitet me fecisse.
Sendo,
pois, esta a condição verdadeiramente divina e a altíssima razão de estado de
vossa providência – não haver jamais agrado do que há-de haver arrependimento;
e sendo também certo nas piedosíssimas entranhas de vossa misericórdia, que se
permitirdes agora as lástimas, as misérias, os estragos que tenho representado,
é força que vos há de pesar depois e vos haveis de arrepender,
arrependei-vos, misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os
olhos de vossa piedade, ide à mão à vossa irritada justiça, quebre vosso amor
as setas de vossa ira, e não permitais tantos danos, e tão irreparáveis.
Isto é o que vos pedem, tantas vezes prostradas diante de vosso divino
acatamento, estas almas tão fielmente católicas, em nome seu e de todas as
deste Estado. E não vos fazem esta humilde deprecação pelas perdas temporais,
de que cedem, e as podeis executar neles por outras vias; mas pela perda
espiritual eterna de tantas almas, pelas injúrias de vossos templos e altares,
pela exterminação do sacrossanto sacrifício de vosso corpo e sangue, e pela
ausência insofrível, pela ausência e saudades desse Santíssimo Sacramento, que
não sabemos quanto tempo teremos presente.
V
Chegado
a este ponto, de que não sei nem se pode passar, parece-me que nos está dizendo
vossa divina e humana bondade, Senhor, que o fizéreis assim facilmente, e vos
deixaríeis persuadir, e convencer destas nossas razões, senão que está clamando
por outra parte vossa divina justiça; e como sois igualmente justo e
misericordioso, que não podeis deixar de castigar, sendo os pecados do
Brasil tantos e tão grandes. Confesso, Deus meu, que assim é, e todos
confessamos que somos grandíssimos pecadores. Mas tão longe estou de me
aquietar com esta resposta, que antes esses mesmos pecados muitos e grandes são
um novo e poderoso motivo dado por vós mesmo para mais convencer vossa bondade.
A
maior força dos meus argumentos não consistiu em outro fundamento até agora,
que no crédito, na honra e na glória de vosso santíssimo nome: Propter nomen
tuum. E que motivo posso eu oferecer mais glorioso ao mesmo nome, que serem
muitos e grandes os nossos pecados? Propter nomen tuum, Domine,
propitiaberis peccato meo: multum est enim: "Por amor de vosso nome,
Senhor, estou certo – dizia David – que me haveis de perdoar meus pecados,
porque não são quaisquer pecados, senão muitos e grandes." Multum est
enim. Oh! motivo digno só do peito de Deus! Oh! consequência que só na suma
bondade pode ser forçosa! De maneira que, para lhe serem perdoados seus
pecados, alegou um pecador a Deus que são muitos e grandes. Sim; e não por amor
do pecador, nem por amor dos pecados, senão por amor da honra e glória do mesmo
Deus, a qual quanto mais e maiores são os pecados que perdoa, tanto maior é
e mais engrandece e exalta o seu santíssimo nome: Propter nomen tuum,
Domine, propitiaberis peccato meo: multum est enim. O mesmo David
distingue na misericórdia de Deus grandeza e multidão. A grandeza: Secundum
magnam misericordiam tuam; a multidão: Et secundum multitudinem
miserationum tuarum. E como a grandeza da misericórdia divina é imensa e a
multidão de suas misericórdias infinita; e o imenso não se pode medir, nem o
infinito contar; para que uma e outra, de algum modo, tenha proporcionada
matéria de glória, importa à mesma grandeza da misericórdia que os pecados
sejam grandes e à mesma multidão das misericórdias, que sejam muitos: Multum
est enim. Razão tenho eu logo, Senhor, de me não render à razão de serem
muitos e grandes nossos pecados. E razão tenho também de instar em vos pedir a
razão por que não desistis de os castigar: Quare obdormis? Quare faciem tuum
avertis? Quare oblivisceris inopiae et tribulationis nostrae?
Esta
mesma razão vos pediu Jó quando disse: Cur non tollis peccatum meum et quare
non aufers iniquitatem meam? E posto que não faltou um grande
intérprete de vossas Escrituras que arguísse por vossa parte, enfim se deu
por vencido e confessou que tinha razão Jó em vo-la pedir: Criminis in loco
Deo impingis, quod ejus, qui deliquit, non miseretur? – diz S. Cirilo Alexandrino
– Basta, Jó, que criminais e acusais a Deus de que castiga vossos pecados? Nas
mesmas palavras confessais que cometestes pecados e maldades; e com as
mesmas palavras pedis razão a Deus por que as castiga? Isto é dar a
razão, e mais pedi-la. Os pecados e maldades, que não ocultais, são a
razão do castigo: pois se dais a razão, por que a pedis? – Porque ainda que
Deus para castigar os pecados, tem a razão de sua justiça, para os perdoar e
desistir do castigo, tem outra razão maior, que é a da sua glória: Qui enim
misereri consuevit, et non vulgarem in eo gloriam habet; ob quam causam mei non
miseretur? Pede razão Jó a Deus, e tem muita razão de a pedir
(responde por ele o mesmo santo, que o arguiu), porque, se é condição de
Deus usar de misericórdia, e é grande e não vulgar a glória que adquire em
perdoar pecados, que razão tem, ou pode dar bastante, de os não perdoar?
O
mesmo Jó tinha já declarado a força deste seu argumento nas palavras
antecedentes com energia para Deus muito forte: Peccavi, quid faciam tibi?
Como se dissera: "Se eu fiz, Senhor, como homem em pecar, que razão
tendes vós para não fazer, como Deus, em me perdoar?" Ainda disse e
quis dizer mais: Peccavi, quid faciam tibi? "Pequei, que mais posso
fazer?" E que fizestes vós, Jó, a Deus, em pecar? – Não lhe fiz pouco;
porque lhe dei ocasião a me perdoar, e perdoando-me, ganhar muita glória.
Eu dever-lhe-ei a ele, como a causa, a graça que me fizer; e ele dever-me-á a
mim, como ocasião, a glória que alcançar. E se é assim, Senhor, sem licença,
nem encarecimento; se é assim, misericordioso Deus, que em perdoar pecados
se aumenta a vossa glória, que é o fim de todas as vossas ações; não digais que
nos não perdoais, porque são muitos e grandes os nossos pecados, que antes
porque são muitos e grandes, deveis dar essa grande glória à grandeza e
multidão de vossas misericórdias. Perdoando-nos e tendo piedade de nós, é que
haveis de ostentar a soberania de vossa majestade, e não castigando-nos, em que
mais se abate vosso poder, do que se acredita. Vede-o neste último castigo,
em que, contra toda a esperança do mundo e do tempo, fizestes que se derrotasse
a nossa armada, a maior que nunca passou a Equinocial. Pudestes, Senhor,
derrotá- la; e que grande glória foi de vossa omnipotência poder o que pode o
vento? Contra folium, quod vento rapitur, ostendis potentiam. Desplantar
uma nação, como nos ides desplantando, e plantar outra, também é poder que vós
cometestes a um homenzinho de Anatote: Ecce constitui te super gentes
et super regna, ut evellas et destruas et disperdas et dissipes et aedifices et
plantes. O em que se manifesta a majestade, a grandeza e a glória de vossa
infinita omnipotência, é em perdoar e usar de misericórdia: Qui
omnipotentiam tuam, parcendo maxime, et miserando, manifestas. Em
castigar, venceis-nos a nós grande glória vossa, que somos
criaturas fracas; mas em perdoar, venceis-vos a vós mesmo, que sois todo
poderoso e infinito. Só esta vitória é digna de vós, porque só vossa
misericórdia pode pelejar com armas iguais contra vossa justiça; e sendo
infinito o vencido, infinita fica a glória do vencedor. Perdoai, pois,
benigníssimo Senhor, por esta Propter magnam gloriam tuam: perdoai por
esta glória imensa de vosso santíssimo nome: Propter nomen tuum.
E
se acaso ainda reclama vossa divina justiça, por certo, não já misericordioso,
senão justíssimo Deus, que também a mesma justiça se pudera dar por satisfeita
com os rigores e castigos de tantos anos. Não sois vós, enquanto justo, aquele
justo juiz de quem canta o vosso Profeta: Deus Judex justus, fortis et patiens,
nunquid irascitur per singulos dies? Pois se a vossa ira, ainda como de
justo juiz, não é de todos os dias nem de muitos, por que se não dará por
satisfeita com rigores de anos e tantos anos? Sei eu, Legislador Supremo, que
nos casos de ira, posto que justificada, nos manda vossa santíssima Lei que não
passe de um dia, e que antes de se pôr o Sol tenhamos perdoado: Sol non
occidat super iracundiam vestram. Pois se da fraqueza humana, e tão
sensitiva, espera tal moderação nos agravos vossa mesma Lei, e lhe manda que perdoe e se aplaque em termo tão breve
e tão preciso, vós, que sois Deus infinito e tendes um coração tão dilatado
como vossa mesma imensidade, e em matéria de perdão vos propondes aos homens
por exemplo, como é possível que os rigores de vossa ira se não abrandem em
tantos anos, e que se ponha e torne a nascer o Sol tantas e tantas vezes, vendo
sempre desembainhada e correndo sangue a espada de vossa vingança? Sol de
justiça cuidei eu que vos chamavam as Escrituras, porque, ainda quando mais
fogoso e ardente, dentro do breve espaço de doze horas, passava o rigor de
vossos raios; mas não o dirá assim este Sol material que nos alumia e rodeia,
pois há tantos dias e tantos anos que, passando duas vezes sobre nós de um
trópico a outro, sempre vos vê irado. Já vos não alego, Senhor, com o que dirá
a Terra e os homens, mas com o que dirá o Céu e o mesmo Sol. Quando Josué
mandou parar o Sol, as palavras da língua hebraica em que lhe falou, foram, não
que parasse, senão que se calasse: Sol tace contra Gabaon. Calar mandou
ao Sol o valente capitão, porque aqueles resplandores amortecidos com que se ia
sepultar no Ocaso, eram umas línguas mudas com que o mesmo Sol o murmurava de
demasiadamente vingativo; eram umas vozes altíssimas, com que desde o Céu lhe
lembrava a Lei de Deus, e lhe pregava que não podia continuar a vingança, pois
ele se ia meter no Ocidente: Sol non occidat super iracundiam vestram. E
se Deus, como autor da mesma Lei, ordenou que o Sol parasse, e aquele dia (o
maior que viu o Mundo) excedesse os termos da natureza por muitas horas e fosse
o maior, foi para que, concordando a justa lei com a justa vingança, nem por
uma parte se deixasse de executar o rigor do castigo, nem por outra se
dispensasse no rigor do preceito. Castigue-se o gabaonita, pois é justo
castigá-lo; mas esteja o Sol parado até que se acabe o castigo, para que a ira,
posto que justa, do vencedor, não passe os limites de um dia.
Pois se este é, Senhor, o termo prescrito de vossa Lei;
se fazeis milagres e tais milagres para que ela se conserve inteira, e se Josué
manda calar e emudecer o Sol, porque se não queixe e dê vozes contra a
continuação de sua ira, que quereis que diga o mesmo Sol, não parado nem
emudecido?
Que quereis que diga a Lua e as estrelas, já cansadas
de ver nossas misérias? Que quereis que digam todos esses céus criados, não
para apregoar vossas justiças, senão para cantar vossas glórias: Coeli
enarrant gloriam Dei?
Finalmente,
benigníssimo Jesus, verdadeiro Josué e verdadeiro Sol, seja o epílogo e
conclusão de todas as nossas razões o vosso mesmo nome: Propter nomen
tuum. Se o Sol estranha a Josué rigores de mais de um dia, e Josué manda
calar o Sol, porque lhos não estranhe; como pode estranhar vossa divina justiça
que useis connosco de misericórdia, depois da execução de tantos e tão
rigorosos castigos continuados, não por um dia ou muitos dias de doze horas,
senão por tantos e tão compridos anos, que cedo serão doze? Se sois Jesus, que
quer dizer Salvador, sede Jesus e sede Salvador nosso. Se sois Sol e Sol de
justiça, antes que se ponha o deste dia, deponde os rigores da vossa. Deixai já
o signo rigoroso de Leão, e dai um passo
ao signo de Virgem, signo propício e benéfico. Recebei influências humanas, de
quem recebestes a humanidade. Perdoai-nos, Senhor, pelos merecimentos da
Virgem Santíssima. Perdoai- nos por seus rogos, ou perdoai- nos por seus
impérios; que, se como criatura vos pede por nós o perdão, como Mãe vos pode
mandar e vos manda que nos perdoeis. Perdoai-nos, enfim, para que a vosso
exemplo perdoemos; e perdoai-nos também a exemplo nosso, que todos desde esta
hora perdoamos a todos por vosso amor: Dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris. Amen.
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