Mais
um «Dias Contados» de Alberto Gonçalves (9/8/15),
abrangendo factos do nosso anedotário social, que inspiraram a argúcia analítica
do sociólogo, um dos expoentes satíricos nacionais da nossa actualidade. Reza o
primeiro sobre um casamento de estadão a merecer bloqueio de ruas e com isso os
comentários impacientes no facebook, provavelmente ditados por frustrações de quem
não poderá jamais estabelecer idênticos bloqueios, embora o articulista deponha
sobre as inúmeras capacidades que tem o povo português nessa faceta
bloqueadora. A propósito do heliporto exigido pela Polícia Judiciária, defende
o articulista a absoluta precisão daquele - apesar da falta de helicópteros
próprios - em virtude das inegáveis possibilidades de desfrute paisagístico que
dali se alcança.
Quanto
à T-shirt do desprevenido jogador português que nela gravou a figura de Franco,
ditador ultrapassado, a crítica incide sobre as T-shirts com a efígie dos
Che-Guevaras das liberdades de que eles são símbolo, juntamente com, provavelmente,
os fundamentalistas islâmicos dos terrorismos de agora.
Cenas de um casamento
por ALBERTO GONÇALVES, 9 agosto 2015
Há cerca de três meses, sentado numa porta de embarque
de Pedras Rubras, informaram-me que um dos passageiros do meu voo era um
"superempresário" (sic) da bola. Olhei para o sujeito e, dado que
usava uma malinha Louis Vuitton, achei plausível. Achei também esquisito que
alguém reconhecesse um sujeito ao qual ninguém parecia ligar nada.
Não pensei mais no assunto até descobrir que o sujeito
casou, que o casamento foi notícia e implicou o bloqueio de uma ou duas ruas na
Foz do Douro. Pelos vistos, o Sr. Jorge Mendes é importante no meio em que se
move e o respectivo matrimónio convocou personalidades lendárias de quem, à
excepção de Cristiano Ronaldo e de José Mourinho, nunca ouvi falar. Daí a
colocar vários quarteirões em estado de sítio é um pequeno passo. Os poderes do
"superempresário" incluem o de manter a ralé à distância.
O Facebook não apreciou a proeza. Numa das 17
indignações que semanalmente o alimentam, o Facebook decidiu ser absurdo que
uma pândega de meia dúzia transtorne a vida de milhares. Tem razão. Não tem é
legitimidade. Muitos dos que acham repugnante o referido abuso participam de
abusos iguaizinhos na essência. Das corridas contra a hepatite a comícios, da
propaganda de supermercados às feiras "medievais", dos carrinhos às
voltas às voltas de bicicleta, tudo serve de pretexto para que os apetites de
uns poucos, públicos ou privados, se sobreponham à conveniência de todos.
Quando não é a própria autarquia a cozinhar a ideia, é a autarquia a
autorizá-la, numa exótica interpretação das famosas "políticas de
proximidade".
Não me entendam mal. Sou inteiramente a favor de que
um cidadão force a evacuação de três freguesias só para que possa passear em
pelota na avenida, ou que impeça a circulação rodoviária para que consiga
conduzir sem trânsito - desde que o cidadão seja eu. Nos meus delírios, chego a
pensar que, caso mandasse, Portugal em peso adiantaria os relógios 17 minutos e
teria uma bandeira decente. A sorte é que não mando, ao contrário de certos e
inexplicáveis donos deste belo país. E o povo? O povo, ou uma pequenina parcela
dele, correu às barricadas em volta da casa do Sr. Jorge Mendes. Para
protestar? Não, para tentar ver as "celebridades". De facto, o ideal
é voar daqui para fora.
Domingo, 2 de Agosto
Desígnios nacionais
Seria completamente ridículo que a Polícia Judiciária
não realizasse o sonho ancestral de possuir um heliporto no alto da sua recente
sede em Lisboa. Ainda por cima quando a estrutura custou meros 250 mil euros
numa obra total de 95 milhões.
É verdade que alguns reaccionários protestam o facto
de, ano e meio após a inauguração, o heliporto nunca ter recebido qualquer
helicóptero ou geringonça aparentada, em parte porque a PJ não possui nenhum.
Trata-se da tradição nacional do "bota-abaixismo", para usar uma
expressão popularizada por um ex-governante com tanta visão que hoje está na
cadeia. Por falar em vistas, o heliporto é utilizado para que os visitantes do
edifício desfrutem de uma privilegiada perspectiva de Lisboa, o que só por si
justificaria o investimento.
No que respeita à sede em geral, nada a opor. Com
bunker e tudo, tamanha maravilha encontra-se preparada para, cito o Público,
"resistir a situações de crise e de catástrofe, como um novo 11 de
Setembro". Sempre é um descanso: logo que o terrorismo islâmico descubra
Lisboa, a cidade pode acabar em ruínas, mas nas cúpulas da PJ não haverá beliscão.
Em vez de criticar o precedente, importa segui-lo. A
mim, por exemplo, parece-me indecente que as instalações da ASAE não estejam
prontas para um holocausto nuclear, que as agências da CGD em Cantanhede
constituam presa fácil para drones e que a GNR de Mértola não disponha de um
sistema antimísseis adequado. E, principalmente, que não se espalhem heliportos
por esse país afora, em cima de juntas de freguesia, empresas municipais e de
dúzias de políticos. Depois das rotundas, era a prioridade que faltava.
Segunda-feira, 3 de Agosto
O assassino da moda
Se a história tem dias, o contexto tem literalmente
barbas. Um futebolista português, Nuno Silva, apresentou-se na equipa espanhola
que o contratou envergando uma T-shirt com o rosto do general Franco.
Obviamente, o episódio foi notícia e as notícias falaram em "gafe" ou
"péssimo gosto", maçadas que nunca acontecem, por exemplo, aos
portadores de T-shirts de "Che" Guevara, outro sociopata de renome.
O Sr. Silva desculpou-se e alegou ignorância sobre o
ditador daqui do lado. Nunca vi alguém fazer o mesmo após passear a carranca do
argentino. Percebe-se porquê: salvo naturais excepções, quem exibe a imagem do
indivíduo conhece, ainda que superficialmente, o respectivo currículo. E gosta.
Os campos de "reeducação", as matanças, o racismo, a bestialidade do
gesto e do discurso definem o carácter dos que legitimam a figura e compõem um
"estilo" sem risco de polémica. Certas retóricas, não importa se
assassinas, vestem melhor.
É constrangedor voltar a isto, mas constrange mais
que, em 2015, os crimes do comunismo mereçam a indiferença, ou até a simpatia,
que os crimes do fascismo felizmente nunca suscitaram. As vítimas deste foram
mártires, as daquele obstáculos, baixas necessárias à construção do homem novo.
Era assim em 1930 e assim continuamos, com as avaliações do Bem e do Mal
hipotecadas a ideologias e com os representantes da iniquidade à solta por aí,
a homenagear o "Che" nas T-shirts ou no olhar. Nos comentários da
imprensa, nos programas de debate e nas notícias andam imensos, embora não
sejam notícia pelas razões adequadas.
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