sábado, 1 de agosto de 2015

Lembrando Natália Correia



Conheci-a através  de um livro – «O Vinho e a Lira”» - que a minha irmã me mandou para África, pelos anos 60, juntamente com o de Ari dos Santos – «Insofrimento in sofrimento». Preferi-lhe este último, cuja escrita mais simples, embora de pensamento explosivo de revolta e violência, quadrava melhor com a minha capacidade  perceptiva, educada segundo os padrões reflexivos mas claros dos estilos clássicos, passados e mesmo presentes - como os de Simone de Beauvoir e de Sartre, então na berra, no seu papel contestatário que alargou os horizontes ideológicos da sua época, na criação de personagens modelados em rebeldia ou contestação a uma sociedade burguesa de modelo convencional, embora de uma elegância natural, de expressão séria ou irónica, sem ornatos.
Natália Correia era toda ela artifício verbal, de ninfa oceânica em torrentes de palavras fugidias mas poderosas, de uma complexidade surrealística, de pontilhismo inegavelmente engenhoso no rebuscamento da imagem precisa para um discurso de estilhaços verbais em insinuações descritivas, caso do poema introdutório justificativo do título: “O vinho e a lira”, que faz evocar o universo  imaginário de “Invitation au voyage” de Baudelaire, onde «Là, tout n’est qu’ordre et beauté   Luxe, calme et volupté», mas com a vaga pretensão a um desenho de «compasso e esquadro» à Cesário Verde, emaranhado em molezas surrealistas deformadoras:
«A oriente sou toda lira    exacta dérmica solar    biografo-me a desenho à pena    com a tinta da estrela polar.
À maternidade da pedra    restituo a casa a levante    e o teu sorriso é navegável    sem rápidos de ciúme e sangue.
Por esse lado tive infância    e derreto a neve das fotografias    destapando o quebra-luz    de uma tépida estampa de tias.
A meu oriente de polido mogno    meu verso tem cadeiras e o habito    com amigos e respiram os móveis    um sossego de folhas de eucalipto.»
Conheci Natália Correia depois, nas proeminências intelectuais que o 25 de Abril projectou para a ribalta das notoriedades contestatárias do antigamente. A televisão deu-nos a imagem de uma mulher esplendorosa, fascinante de beleza e audácia verbal, retorcida nos seus ademanes , de uma inteligência sem tabus, que ficou para sempre gravada na minha memória, pelos seus comentários irónicos e ousados no Parlamento ou em programas televisivos como “Mátria”, em que ficava presa mais à sua mímica engenhosamente voluptuosa do que à sua oratória, embora esclarecida e de uma dicção perfeita.
Na Internet descubro os dados biográficos da vida desta açoriana que viveu 70 anos (13/9/23 – 16/3/93), que foi escritora polígrafa  - novelista, dramaturga, poeta e ensaísta - além de outros pormenores de um viver de muitos amigos e suponho que admiradores.  70 anos vividos, pois, em pujança e glória, com, certamente, os dissabores naturais a todas as vidas e muito mais a quem enfrentou corajosamente e provocadoramente políticas de que discordava e de que alguns poemas são testemunho, entre outros de cariz mais pessoal, em que a sensualidade é traço dominante, mas também a originalidade das imagens está em harmonia com a intelectualidade rebuscada do pensamento. Cito, de dezoito poemas da Internet, como exemplo dessa originalidade o poema I de O Livro dos Amantes

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

Como exemplo da sua ideologia pacifista e do seu amor à vida consciencializada em vasta amplitude de afirmações, o poema «Ode à Paz»:

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!
 

Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"

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