Conheci-a através de um livro – «O Vinho e a Lira”» - que
a minha irmã me mandou para África, pelos anos 60, juntamente com o de Ari dos
Santos – «Insofrimento in sofrimento». Preferi-lhe este último, cuja
escrita mais simples, embora de pensamento explosivo de revolta e violência,
quadrava melhor com a minha capacidade
perceptiva, educada segundo os padrões reflexivos mas claros dos estilos
clássicos, passados e mesmo presentes - como os de Simone de Beauvoir e de
Sartre, então na berra, no seu papel contestatário que alargou os horizontes
ideológicos da sua época, na criação de personagens modelados em rebeldia ou contestação
a uma sociedade burguesa de modelo convencional, embora de uma elegância
natural, de expressão séria ou irónica, sem ornatos.
Natália Correia era toda ela artifício verbal, de
ninfa oceânica em torrentes de palavras fugidias mas poderosas, de uma
complexidade surrealística, de pontilhismo inegavelmente engenhoso no
rebuscamento da imagem precisa para um discurso de estilhaços verbais em
insinuações descritivas, caso do poema introdutório justificativo do título: “O
vinho e a lira”, que faz evocar o universo imaginário de “Invitation au voyage”
de Baudelaire, onde «Là, tout n’est qu’ordre et beauté Luxe, calme et volupté», mas com a vaga
pretensão a um desenho de «compasso e esquadro» à Cesário Verde, emaranhado
em molezas surrealistas deformadoras:
«A oriente sou toda lira exacta
dérmica solar biografo-me a desenho à pena com a
tinta da estrela polar.
À maternidade da pedra restituo a casa a levante e o teu sorriso é navegável sem rápidos de ciúme e sangue.
Por esse lado tive infância e derreto a neve das fotografias destapando o quebra-luz de uma tépida estampa de tias.
A meu oriente de polido mogno meu verso tem cadeiras e o habito com amigos e respiram os móveis um sossego de folhas de eucalipto.»
Conheci Natália Correia depois, nas proeminências
intelectuais que o 25 de Abril projectou para a ribalta das notoriedades
contestatárias do antigamente. A televisão deu-nos a imagem de uma mulher
esplendorosa, fascinante de beleza e audácia verbal, retorcida nos seus
ademanes , de uma inteligência sem tabus, que ficou para sempre gravada na
minha memória, pelos seus comentários irónicos e ousados no Parlamento ou em
programas televisivos como “Mátria”, em que ficava presa mais à sua mímica engenhosamente
voluptuosa do que à sua oratória, embora esclarecida e de uma dicção perfeita.
Na Internet descubro os dados biográficos da vida desta
açoriana que viveu 70 anos (13/9/23 – 16/3/93), que foi escritora polígrafa - novelista, dramaturga, poeta e ensaísta -
além de outros pormenores de um viver de muitos amigos e suponho que admiradores. 70 anos vividos, pois, em pujança e glória,
com, certamente, os dissabores naturais a todas as vidas e muito mais a quem
enfrentou corajosamente e provocadoramente políticas de que discordava e de que
alguns poemas são testemunho, entre outros de cariz mais pessoal, em que a
sensualidade é traço dominante, mas também a originalidade das imagens está em
harmonia com a intelectualidade rebuscada do pensamento. Cito, de dezoito
poemas da Internet, como exemplo dessa originalidade o poema I de
O Livro dos Amantes
Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.
Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.
E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.
Como exemplo da sua ideologia pacifista e do seu amor à vida consciencializada em vasta amplitude de afirmações, o poema «Ode à Paz»:
Pela
verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália
Correia, in "Inéditos (1985/1990)"
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