Uma narrativa cheia de interesse e de suspense sobre
uma mulher rica e mecenas, vítima do anti-semitismo da época adicionado às ambições
e cobiça de todo o sempre, por onde perpassam histórias para mim desconhecidas
da nossa história e nomes científicos e literários do nosso orgulho ou curiosidade
– Amato Lusitano, Samuel Usque, Bernardim Ribeiro. O
agradecimento a Maria Eduarda Fagundes, sempre de escrita elegante e esclarecida.
A SENHORA
Gracia
Há-Nassi, também conhecida como Grazi Nasi, Gracia Nasi, Gracia Mendes, Gracia
Mendes Benveniste, Gracia Miguez, nasceu em Portugal, possivelmente em Lisboa
em 10/06/1510 no seio de uma família de judeus conversos, originária de Aragão,
sob o nome cristão de Beatriz de Luna. Era filha de Álvaro de Luna de Aragão e
de Philipa Benveniste. Segundo Cecil Roth, casou em 1528, em rito católico em
sociedade, e provavelmente em rito cripto-judaico em ambiente familiar,
reservado, com um rico comerciante e banqueiro, Francisco Mendes Benveniste
(Tezmah Benveniste), que na época dos descobrimentos marítimos, também se tornou
grande negociante de especiarias. Em 1536, com a morte de seu marido, pouco
tempo após o nascimento de sua filha, Ana Mendes (Reyna), Beatriz de Luna
torna-se uma das personalidades femininas mais importantes do seu tempo.
Empresária, rica, filantropa, culta e bonita tinha prerrogativas desconhecidas
à maioria das mulheres do século XVI. Mas a cobiça de D. João III logo se
estendeu ao seu grande património. Mesmo com os protestos da viúva, o
inventário foi levantado por ordem do rei que tenta também levar-lhe a filha,
uma das herdeiras da família, para a corte da rainha, D. Catarina, visando um
casamento futuro com alguém da realeza. Com a Inquisição se instalando no
mesmo ano, Beatriz decide estrategicamente partir para Antuérpia onde seu
cunhado e sócio, Diogo Mendes, abrira uma filial bancária da família com outro
parente.
Apesar
de alguns percalços e até prisão, livre e enobrecido por Carlos V, Diogo
torna-se banqueiro de vários reis europeus. Com ele, Beatriz passa a gerir os
negócios e estrutura uma rede secreta de ajuda aos judeus fugidos da
Inquisição. Quando a irmã, Brianda de Luna, casa com seu cunhado Diogo em 1539,
as relações familiares e económicas tornam-se ainda mais estreitas. Mas os anos
de 1539 e 1540 ficam difíceis para as comunidades cristãs-novas de Antuérpia,
delações e interrogatórios surgem. Morre Diogo Mendes e pelas suas disposições
testamentárias Beatriz torna-se administradora da Casa Mendes (com auxílio de
Guilherme Fernandes e João Micas) e da herança da sobrinha na menoridade desta,
facto que criou uma situação de intolerância e desconforto entre as irmãs, até
ao fim de suas vidas. Caso houvesse alguma coisa com Beatriz o património seria
gerido por Agostinho Henriques (Abraão Benveniste), parente deles.
Mais uma
vez é a cobiça que leva o Imperador de Antuérpia a exigir o inventário dos bens
do falecido banqueiro. Acusam Diogo de ter mantido práticas judaicas e a
hipótese de confisco aguça o interesse da Coroa. Beatriz tenta salvar a
situação, paga 40 mil ducados para retirar a acusação sobre a reputação judia
de Diogo e 200 mil, em dois anos, à Rainha Maria da Hungria para evitar que
outros membros da família fossem também acusados. O dinheiro ajudava mais uma
vez a salvaguardar o relativo sossego que perseguia. Com o Papa, Beatriz
consegue um salvo-conduto que lhe permitia ficar em Roma. Não o usa, mas
tem-no como estratégia para uma possível fuga. Porém, mais uma vez a Coroa
resolve oferecer um partido dentro da realeza paras se casar com a filha,
D. Francisco de Aragão ou Gaspar Ducchio. Beatriz recusa tal oferta. Então,
cristão-novos são presos, entre eles gente da família. Beatriz interfere
pagando avultadas quantias em dinheiro e consegue libertá-los. A situação
torna-se insustentável, prepara nova fuga.
Em 1545
pede a Maria da Hungria permissão para ir às famosas termas de Aix-la-Chapelle.
Viaja com a parte feminina da família, mas encaminha-se para Lyon onde tinha
vários interesses e depois para Veneza; não volta a Antuérpia. Tem como
objectivo um dia chegar a Constantinopla. Envia João Micas para acertar
negociações com a Regente. Em Veneza, Beatriz faz importantes contactos e
negócios. Mas também tem aborrecimentos com a irmã que leva ao tribunal
veneziano encarregado de causas estrangeiras, o processo da herança, em 1547.
Porém, em 1548 chega o Santo Ofício e mais uma vez se vê na contingência de
fugir, sem a deliberação do tribunal. Atinge Ferrara e fica na casa do
cristão-novo português Sebastião Pinto, que a ajudou na passagem por Londres
anos atrás. Porém, por questões financeiras, o Duque Hercules II oferece-lhe o
aluguel de um palacete (Palácio Magnanini) por dois anos, de 1549 a 1551, por
200mil ducados/ano. Aí se estabelece e tenta anular o resultado favorável do
processo de Veneza, que se decidira por Brianda. Dedica-se também a patrocinar
artistas e trabalhos literários, como os de Samuel Usque (literato português,
sefardita), Alonso Nuñez Reinoso (poeta espanhol de origem judia), Bernardim
Ribeiro (romancista) e de alguns italianos, Ortensio Lando e Girolamo Ruscelli.
Também financiou e apoiou os estudos científicos do médico judeu português
Amato Lusitano (Dr. João Rodrigues de Castelo Branco) que descreveu pela
primeira vez o sistema circulatório e suas válvulas, e escreveu tratados
médicos, dos mais importantes do século XVI. Sua casa recebia intelectuais
e pessoas ilustres do seu tempo. Mas apesar de toda essa vida de brilho,
ao final do contracto, Beatriz vê-se diante da possibilidade de abandonar
Ferrara, já sugerida pelo Duque. E assim, em 1551, encontra-se novamente em
Veneza e faz um acordo final com a irmã. Após resolver alguns negócios, vai
para Ragusa, onde sua Casa tinha interesses. Dali, atinge finalmente
Constantinopla. Em 1553 está livre para assumir seu nome hebraico e sua
verdadeira religião. Daí em diante passa a ser Gracia Nasi. Sua filha Ana,
agora Reyna, casa-se em 1554 com o primo João Micas (Joseph Nasi) que ao
que parece faz parte de uma rede de informações sobre as movimentações turcas
no Golfo Pérsico. Preocupa um eventual ataque do sultão às possessões
portuguesas na Índia. Os interesses são provavelmente comerciais. Gracia Nasi
exerce intensamente sua religiosidade. Constrói Sinagogas e Escolas para os
estudos do Talmude. Torna-se mediadora entre as comunidades judaicas em
Constantinopla. Amplia a rede de apoio aos cristãos-novos que começara em
Antuérpia. Recebe então a alcunha de a “Senhora” e outras como a “Coroada”, a
“Hagevirá” (a herdeira da realeza).
Em 1555
sobe ao papado Paulo IV e recrudesce a perseguição aos cripto-judeus. Muitos
dos seus contactos e conhecidos são encarcerados ou têm seus haveres
confiscados. Tenta então desviar o comércio de sua Casa para Pesaro. O Porto de
Ancona não é mais seguro. Consolida, no entanto, a sua posição junto à
corte turca.
Depois
de conseguir junto ao governador de Damasco a administração de um sub-distrito,
implanta um local de acolhimento aos judeus da diáspora (Tiberíades).
Morre em
1569 sem notórias notícias, após anos de mobilizações constantes e muitas
acções de ajuda a comunidades sefarditas.
Gracia
Nasi é considerada como iniciadora da primeira onda sionista de retorno à terra
prometida. Suas acções corajosas, políticas e económicas deixaram marcas
indeléveis na história do mundo ocidental e judaico.
Uberaba,
02/08/15
Maria Eduarda Fagundes
Nenhum comentário:
Postar um comentário