…Em que se contam histórias de gentes que povoaram o
mundo. Ora com narrador não participante – extradiegético – ora com narradores autodiegéticos
(de focalização interna, como personagens principais – os dos salmos, do
apocalipse… e sempre para glória do Senhor, responsável pelo mundo que criou,
punindo ou premiando, sem, todavia, alterar o comportamento das suas criaturas.
E retomando referências já abordadas, em discurso repetitivo e progressivo,
amálgama de momentos vagos de grande expansibilidade cronológica.
Este livro de José Luís Peixoto – «Nenhum olhar » - tem, para além do
mais, personagens com nomes da diegese bíblica, tais como José (pai e filho),
guardadores de rebanhos, Gabriel, Moisés, Elias, judas, mateus, Salomão,
Rafael … sendo que a outros – sobretudo os do sexo feminino, como seres
impuros, na opinião das gentes do espaço narrado – aldeia ou vila alentejana
– é-lhes substituído o nome próprio pelo
de “filha” ou “mulher de” ou “pai de” ou “mãe de” ,
ou mesmo “puta”, ou “prostituta cega”: “o meu pai” (da “mulher
de José”) … e ainda as personagens do mito, simbolizando o Mal (o
gigante) ou a mexeriquice perversa popular (o demónio…). Personagens
de uma ficção tenebrosa, de aleijados – vários – ou martirizados, ecos de uma
bestialidade tosca, com violação (a mulher de José, na infância), ou
autopunitivos José e o filho, a mulher de Salomão, Rafael…..
Um
espaço físico e social pois de dureza, de sofrimento e miséria, de
insinuação criadora de intriga e desfecho fatal, espaço de interiores aldeãos
pobres ou defeituosos, porque explorados, mas de gente trabalhadora e honesta
(entre as personagens principais), espaço de luxo fidalgo – casa do doutor
mateus – com os seus pedantismos mas dores também e mistérios – “a voz da
arca” , espaço de exterior amplo, com o monte das oliveiras simbólico de
agonia, de solidão e de morte…
Um
tempo cronológico vário, distribuído por duas partes estruturais,
a primeira sobre as personagens dos inícios – pais e filhos – a segunda
pelos sucessores, sem que cresçam os filhos gerados, porque os pais morreram ou
se mataram, em desfecho violento, paralelo ao da primeira parte.
E
a estrutura da intriga é redundante, em espiral, repetitiva, poética, alternada,
ora com narrador não participante – extradiegético – destacando os
comportamentos e os cenários, ora com o
narrador participante – José , a mulher de José, os gémeos siameses Moisés e
Elias, o velho Gabriel, na primeira parte, os da segunda parte. E todos eles se
destacando pela dignidade de pensamento, no discurso filosófico e poético, com repetições
de conceitos (Ex: «Penso: Talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma
claridade, talvez os homens não sejam feitos de escuridão, talvez as certezas
sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que
possuem.» Um discurso de constante incompreensão sobre o mundo e os homens,
como este de José, com tantas sugestões de Álvaro de Campos:
Ex
«Os homens são uma parte pequena do mundo, e eu não compreendo os homens. Sei o
que fazem, mas saber isso é saber o que está à vista, é não saber nada. Penso:
talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação;
talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez
seja isso que os explique……….Sempre vos quis defender, em tudo fui derrotado,
porque sei que, mais cedo ou mais tarde, também os vossos rostos irão sofrer;
mais cedo ou mais tarde, também tu, mulher que quis mais que tudo, morrerás, e
tu, filho meu, morrerás. As nossas campas no cemitério serão por uns tempos
cuidadas e visitadas por aqueles que deixámos, mas também esses morrerão um
dia; e as nossas campas encher-se-ão de musgo e erva, e alguém que passe por
nós não parará, e mesmo esses que deixámos não serão recordados por ninguém,
pois tudo o que amaram morreu……»
Discurso
de personagem (José) em tudo paralelo ao do narrador extradiegético, o
que lhes retira verosimilhança como personagens modeladas, vivendo num meio
rústico, onde quase todos assinavam de cruz (como se verifica no casamento de
Rafael com a prostituta cega, quadro tosco de caricatura, a lembrar pinturas medievais, como as de Bruegel .
Um mundo, pois, de espessura dolorosa
e pessimista, que recorda também a intenção escatológica que encontrámos no «Ensaio
sobre a Cegueira» de Saramago. Com inegáveis qualidades de observação
pictural, em perífrases originais: Ex: «Num assobio que desenhou no ar o
movimento de uma chicotada», «As pontas das orelhas da cadela levantaram-se,
como se tivessem sido puxadas por um fio de pesca»…., Com um discurso tantas vezes de frases incompletas, segundo
a técnica do «nouveau roman”, traduzindo a corrente de consciência indefinível:
Ex: «Prosseguiu para a vila. Não por querer chegar. Não por querer, mas
porque a tarde, porque o sol e a luz, porque uma solidão tão grande».
E o título, que se justifica num
desfecho apocalíptico, de um niilismo total:
«O mundo acabou. E não ficou nada.
Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras.
Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias.
Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento.
Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar.»
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