Mergulhada,
embora ligeiramente - simples boiar de quem lê por pura diversão - nas escritas
um tanto lineares dos escritores de sempre, com maior ou menor ramificação
figurativa ou de perspectiva narrativa, de repente deparou-se-me este livro,
oferecido pela minha nora Paula: «Dans le café de la jeunesse perdue», Prémio
Nobel de Literatura de 2014, de Patrick Modiano, escritor
conhecido, meu desconhecido, detentor de vários prémios literários, o último
vindo coroar o seu livro publicado em 2007, reconstituição de um espaço
temporal dos anos 50-60 forjado em muito do desequilíbrio e instabilidade
vividos no pós guerra, sem, todavia, a pretensão de um sentido crítico ou de
apontamento referencial ordenado por concepção visualista ou de outra qualquer
apetência estrutural.
Na
realidade, trata-se de um livro não linear, enigmático, mas de um constante
retomar de nomes e de eventos, sob as perspectivas de diferentes narradores,
que nos impõem uma constante retoma de leitura para percepção do quem é quem ou
da trama que vai progredindo, ora vai recuando e retomando infindavelmente, em
novas alianças de um “eterno retorno”, mesmo nos artifícios da sua
evolução ou transformação. Assim, dessa forma enigmática que vai deixando e
retomando as pistas, com os nomes e as suas relações, o título da obra - «Dans
le café de la jeunesse perdue» - é bem a síntese de um enredo em torno de
uma jovem, também fugidia e enigmática, figura representativa não só de uma
geração jovem, sem rumo, mas também de gerações mais velhas, com o seu passado
e os seus segredos, que não interessa decifrar, nos seus tratos e vidas de uma
eterna repetição, momentaneamente ou repetidamente desembocada num café de
bairro: Café Condé, mais tarde transformado em loja com expositor de objectos
marroquinos .”Au Prince Condé”.
História
de uma Jacqueline Delanque, filha de pai incógnito e mãe trabalhando no “Moulin
Rouge”, cuja menoridade é atravessada
por acontecimentos definitivamente marcantes, pelo seu teor de aviltamento, na
construção de uma personalidade tímida e fechada e simultaneamente arriscada, polarizadora
de afectos, quer pela sua beleza, quer pela sua reserva, e cujo retrato de
adolescente, tirado no comissariado da polícia onde fora conduzida por
vagabundagem, servirá como ponto de arranque para o reconhecimento do seu
paradeiro, ao detective privado Caislay (um dos narradores) – por encargo do
marido abandonado da fugitiva Jacqueline – detective que a reconhecerá, no café
Condé da Rive Gauche.
Os
quatro narradores serão, por ordem sequencial na intriga, à volta dos
frequentadores do café e suas ligações e sobretudo em torno de Louki (nome de
carinho atribuído por um desses frequentadores), um estudante da escola de
minas, o detective privado, a própria heroína, e Roland, seu amante (após o
abandono do marido, personagem insípida e vulgarmente convencional).
Um
romance que, na modernidade do seu enredo, de enigmas e pistas a tender para o
policial, evoca igualmente a tragédia sofocliana «Édipo», no seu conflito que
se vai gradualmente encaminhando, pelas diferentes pistas, para o reconhecimento
do parricídio e do incesto, e o desenlace fatal – Um Édipo que se pune
cegando-se, uma torturada e enigmática Louki que se suicida lançando-se da
janela, ao encontro, certamente, das respostas para as suas incompreensões
existenciais.
Como epígrafe justificativa, uma
citação do escritor francês Guy Debord, parafraseando o dantesco « Nel
mezzo del cammin di nostra vita» : «À la moitié
du chemin de la vraie vie, nous étions environnés d’une sombre mélancolie,
qu’ont exprimée tant de mots railleurs et tristes, dans le café de la jeunesse
perdue. »
Na realidade, um romance que,
mais do que oferecer uma intriga mais ou menos romanesca, na sedução de
sensualidades nele inexistentes, embora subentendendo sentimentos reais de amor,
carinho e dor, joga antes com o enigma da filosofia da vida: a vida como um
eterno retomar, na banalidade ou no significativo dos reencontros, no
sentimento de frustração ou de vacuidade que persegue o homem ao longo da vida,
vida a que a morte reduz ao nada igualmente sem sentido, embora recurso da
inadaptação ou incompreensão totais.
“Eterno Retorno”, a tese
que o livro pretende explicitar, na peugada de Nietzsche (retiro-o da Internet):
« L’Eternel
Retour du même sous forme d’une expérience de pensée :
Nietzsche
expose sous forme conditionnelle, sous forme d’expérience de pensée
sa théorie :
« Que dirais-tu si un jour, si
une nuit , un démon se glissait jusque dans ta solitude la plus reculée et te
dise : « Cette vie telle que tu l’as vécue, tu devras la vivre encore une
fois et d’innombrables fois ; et il n’y aura rien de nouveau en elle, si ce
n’est que chaque douleur et chaque plaisir, chaque pensée et chaque gémissement
et tout ce qu’il y a d’indiciblement petit et grand dans ta vie devront revenir
pour toi, et le tout dans le même ordre et la même succession […]. L’éternel sablier de l’existence ne cesse d’être
renversé à nouveau – et toi avec lui, ô grain de poussière de la poussière ! »
– Le Gai Savoir (aphorisme 341).»
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