Lembro-me. A notícia trouxe-ma o pai
do João, noite alta: “O Kennedy foi assassinado”. A minha exclamação foi
de horror sentido: “Oh, meu Deus! E os filhos são tão pequeninos!”. O
resto da noite foi passada quase toda em conversa, no desgosto de tão
inesperado acontecimento. Mas, no dia seguinte, havia os meus filhos – o João
nasceria daí a seis dias, faz hoje 50 anos, a ele dedico este texto, com
ternura e o bolo de laranja do seu gosto – e havia a escola, e a casa, os
horrores da vida devem ser superados pelas tarefas diárias, acabei por
adormecer. No dia seguinte, na esplanada da Praça 7 de Março, em Lourenço
Marques, o pai do João contava, com ar sorridente, aos amigos com quem discutia
os rumores – não só os das saias de Elvira, a evolução fizera-se em larga
escala, desde o “Fradique Mendes”, pelo menos entre a rapaziada interessada, já
dos tempos do liceu Salazar de Lourenço Marques - contava ele da minha
exclamação nocturna, prova de uma sensibilidade talvez de tontice, quando os
colegas dissertavam de preferência sobre os desígnios do homem que tantas
inovações introduzira no seu país e no mundo. Mas todos me olharam sorrindo, a
história fora contada com certo encanto, ficou-me na lembrança, embora
intimidada pelo reconhecimento da insignificância da frase, na dimensão da
política.
Mas o horror dessa morte e de tanta
gente da sua família, posteriormente, aparentemente perseguida pela ferocidade do
destino ou da insídia humana, formou marco na evolução da história, que me fez
recordar outros momentos fatais inesquecíveis - a morte de Sá Carneiro e Amaro
da Costa, quando eu estava a dar uma aula no liceu de Cascais e um aluno desvairado
entrou na sala com a notícia, falando em sabotagem… Ou no 11 de Setembro de
2001, quando tomava café no Café do meu filho Luís e as imagens com a notícia
começaram a sair no ecrã da televisão, mostrando repetidamente a penetração e a
saída dos aviões nas duas torres com as explosões e o rastro de fumo, e outra e
outra vez, e a agonia do que se pensou imediatamente que iria passar-se e já
estava a passar-se… Ou ainda, tempos antes, em 24 de um tal Abril, quando soube
logo pela manhãzinha, pelo telefonema em assustada surdina, da Flávia, nossa
amiga de então, que houvera um golpe militar que derrubara o governo de Marcelo
Caetano e de Américo Tomás e eu mal ligara ao caso, indo para as aulas, que
iniciavam, imediatamente, o seu percurso de desestabilização e alvoroço progressivos,
na liberdade, no desinteresse e na indisciplina.
Todavia, a imagem de Kennedy não era
totalmente despida de zanga, no meu foro íntimo, embora lhe admirasse o garbo e
a mocidade da mulher, figuras constantes do jet set e da amenidade de trato. A
verdade é que a liberalização democrática, proposta por aquele, tendo efeitos
sobre a discriminação racial no seu país, como de justiça, aliás, tivera largas
consequências sobre os movimentos de libertação no ultramar, que começáramos a
viver, sucessivamente alarmados. Guiné, Angola, Moçambique – após a
independência da Argélia, pela França - eram terreno de luta que movimentou a pronta
reacção de Salazar, defensor ferrenho do seu legado pátrio ultramarino.
Intimamente pensava que o apoio aos
movimentos de libertação deviam começar, a serem honestos, pelos países independentes
de que americanos, nortenhos, centristas ou sulistas, eram igualmente
usurpadores, autónomos desde tempos recuados, mas igualmente ocupantes
indevidos, se o éramos os que não gozavam de autonomia. Em África nós
trabalhávamos, com o pensamento em pátria, como se trabalhava nas Américas do
Norte, do Sul e do Centro, pátrias independentes, em territórios que amávamos
como nossos, na igualdade condicionada pela educação, que íamos fornecendo a
todos os que conseguiam aceder a ela. Como aqui. Não com o esplendor das riquezas
e poder das tais Américas independentes, mas gradualmente proporcionando
cultura e estatuto a todos os que os podiam adquirir. As aulas que dei à noite –
juntamente com os demais colegas - ajudaram na formação de tantos daqueles.
Salazar protegeu os seus territórios,
defendeu-os corajosamente contra os opositores. E foi esteio, igualmente, do
governo sul africano e das Rodésias, enquanto durou. Hoje a África é palco de
luta vária, de fome, sofrimento, crime e maior exploração e governação
ditatorial do que dantes, todos o sabemos.
Mas Kennedy outras coisas fez, boas e
más, e o texto de Vasco Pulido Valente no-lo refere com saber
maior. “Símbolos”, eis como se intitula o seu artigo do “Público”, de 22
de Novembro, no quinquagésimo aniversário do assassinato de Kennedy:
«Toda a gente na minha geração se
lembra do exacto momento em que soube do assassinato de Kennedy. No meu caso,
estava num café à espera dum amigo, e, ao balcão, meia dúzia de cavalheiros com
gravatas discutiam a notícia que a Emissora Nacional acabara de dar: ainda bem,
diziam eles, que em Portugal não havia coisas dessas. Mas, para mim, foi um
choque pessoal, como se o tivesse conhecido. Porquê? Não por razões políticas,
com certeza (um assunto a que voltarei). Mas porque o homem, em 1963,
representava a modernidade. Depois dos “velhos” que vinham da guerra e das suas
disciplinas – Truman, o de Hiroxima, e Nagasaki, e Eisenhower, o da guerra da
Coreia – aparecia como o representante de um novo mundo, próspero e pacífico,
sem a sufocação das regras que o século XX herdara do século XIX.
O sentimento foi tão geral, que a
Livraria Moraes, do António Alçada Baptista, editou logo dois livros sobre o
presidente morto: um ensaio biográfico e uma antologia de discursos, que
traduzi (à pressa e mal) e a que juntei um prefácio ignorante e pretensioso. A
revista “O Tempo e o Modo” , em que o João Bénard da Costa mandava, também
resolveu fazer um número especial, por puro sentimento e pela suposição pateta
de que o gesto incomodaria muito Salazar. Ainda por cima, as trapalhadas da investigação
do assassinato – a direcção e a quantidade de tiros (dois, três, quatro, oito),
a prisão de Oswald, um pobre-diabo a roçar o louco obsessivo, e a expeditiva
liquidação de Oswald por um dono de um cabaré com ligações à Máfia – permitiam especulações
sem fim e ajudavam a refulgir a nossa virtude democrática.
A excitação nunca passou destas
superficialidades, porque, fora o espectáculo, John F. Kennedy , infelizmente
para ele e para o mundo, era um Presidente medíocre. Excepto o tratado com a
URSS sobre a limitação de experiências nucleares na atmosfera, falhou
persistentemente no resto. Autorizou a expedição à Baía dos Porcos, uma
aventura que fortaleceu Fidel. Na “cimeira” de Paris, querendo mostrar
moderação, convenceu Khrutchov da sua fraqueza e provocou indirectamente a “crise
dos mísseis”. Não conseguiu que o Congresso passasse as leis contra a
segregação e as leis sociais, que só depois Lyndon Johnson veio a impor. E,
pior ainda, liquidou o Presidente do Vietnam do Sul e inaugurou a presença
militar americana numa região em que não havia nada a ganhar. Mas Jack e Jackie
não deixaram por isso de ser um símbolo para os milhões que nasceram durante a
guerra ou logo a seguir a ela: o símbolo da juventude e do poder.»
Penso que muito pouco tempo esteve
Kennedy na sua Presidência para provar cabalmente das suas capacidades. Mas imperou
no casal e nos filhos a simpatia que a beleza e a juventude sempre atraem. Como
sucedeu com a Princesa Diana. Com Grace Kelly. Com Marilyn. Com Elvis. Com Sá
Carneiro, de quem tanto se esperava e tão pouco tempo pôde provar os seus
méritos. Com Nicolau II e a família inocente. Com D. Carlos e Luís Filipe…
Ao contrário do que diz o poeta, quando
Deus quer, mesmo que o homem sonhe, a obra não nasce. Ou fica só em botão. E isso
é sempre injusto. Como os desastres no mundo.
Mas o efeito Kennedy permanece, na
lembrança e na repercussão. Deus e os homens o quiseram.
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