segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O desfazer duma auréola política por via do sentimento






















De Vasco Pulido Valente, o artigo «O Último Rei de Portugal”, - concernindo, metaforicamente, “Álvaro Cunhal” - artigo revelador das arbitrariedades de que qualquer detentor do poder pode usar e abusar, quer se trate dos tiranos de outrora, quer dos tiranos mais recentes - incluindo os da Igreja inquisitorial, ou os das religiões defensoras dos fundamentalismos exigentes de “puritanismos” extremistas, na realidade oportunistas para os seus defensores, de igual modo tiranetes sem escrúpulos, mais facínoras ainda do que os monarcas do absolutismo.
A estes, as doutrinas revolucionárias sobre as injustiças causadas pelas desigualdades sociais, ao favorecerem a abertura para a defesa dos direitos humanos, trouxeram certa moderação, submetendo-os a normas constitucionais que lhes moderavam os poderes. O que não aconteceu em tempos mais recentes, com governantes da camada “plebeia”, responsáveis pela tortura e o genocídio, mau grado o desenvolvimento cultural e tecnológico dos países a que pertenceram, os quais não diferiram das manifestações de crueldade e sadismo ambiciosos, de ditadores mais recentes, de países de muito menor gabarito cultural.

Álvaro Cunhal foi formado segundo doutrinas marxistas, proibidas no país de ditadura em que nasceu e foi preso, aceites no país para onde fugiu, este de uma ditadura em que essas doutrinas, de aparente fraternidade social, na realidade, contribuíram para o extermínio de opositores e a ocupação arbitrária de povos, incluindo a construção de muro segregativo de habitantes e famílias de uma mesma cidade.

Tais horrores não fragilizaram as crenças de Cunhal, que, quando chegou o seu tempo de poderio, segundo o texto de Vasco Pulido Valente, esse indivíduo” pôde “planear transformar Portugal numa espécie de Bulgária do Ocidente”, foi “o promotor do PREC, o responsável pelas “nacionalizações” e pela ocupação dos “latifúndios”, o desorganizador da economia, o inimigo da “Europa”.

Mas, apesar desses dados da sua acção política, que mergulharam o país nesses anos de 75/76, num tempo de desespero, de crime, de ocupações alarves, de destruição económica, de fugas e expulsões injustas e vingativas, esses que o quiseram homenagear hoje apenas pelo elogio, ignoraram esses dados de gravidade para desenharem apenas a figura do sentimento que jamais ele deixou transparecer nos tempos da sua arrogância activista.

E esse retrato de pesquisa sentimental lhe banalizou o perfil, retirando-lhe, paradoxalmente, a dimensão em que o manteve a sua arrogância obstinada numa doutrina que nem as convulsões sofridas pelo partido comunista russo, que possibilitou a liberdade dos povos sob a sua tutela, nem essa reviravolta fez periclitar tal arrogância monovalente e provocadora.

Eis o artigo de Vasco Pulido Valente:

O ÚLTIMO REI DE PORTUGAL

Nas cortes do Absolutismo, o poder, a influência de cada um era medida pela proximidade do rei. A gente de importância ficava perto, a gente sem importância ficava longe. Em princípio ninguém falava sponte sua à pessoa sagrada que representava a ordem política e a ordem social; esperava que lhe falassem e geralmente respondia com as fórmulas tradicionais que a etiqueta estabelecia.

 A tentativa de Maria Antonieta para ser tornar “humana” e “popular” (indo ao teatro, por exemplo) prejudicou mortalmente a Monarquia e criou contra ela um ódio universal. Esta digressão vem a propósito da homenagem que a televisão e os jornais resolveram prestar a Álvaro Cunhal, no centenário do seu nascimento. Quase toda a gente, que se resolveu a partilhar as suas memórias do homem, o tratou como um soberano.

De Manuel Alegre a Herman José, não apareceu uma única solitária criatura que se atrevesse, a esta distância, a pensar nele como um homem. Verdade que o homem Cunhal se escondia por detrás da sua figura messiânica; antes de morrer sempre impediu que Portugal soubesse com quem vivia (ou vivera), o nome dos filhos (se existiam), que amigos tinha, como se divertia ou qualquer outra coisa susceptível de perturbar a imagem do “comunista de cristal”, que ele encarnava ou, pelo menos, pretendia encarnar. Não é coincidência que as personagens que por aí o incensaram ignorem quase totalmente a política e se lembrem muito bem de episódios triviais, em que o soberano magnanimamente desce à inferioridade dos serventes e cortesãos para se mostrar bondoso, sensível, irónico e até paternal.

 Nas memórias que escreveram depois da revolução, os fiéis do “martirizado” Luís era assim que o lembravam.

 Como hoje se lembram de Cunhal os militantes do PCP, os “companheiros de caminho” e umas largas dúzias de patetas. O indivíduo que planeava transformar Portugal numa espécie de Bulgária do Ocidente, o promotor do PREC, o responsável pelas “nacionalizações” e pela ocupação dos “latifúndios”, o desorganizador da economia, o inimigo da “Europa”, esse parece que desapareceu. Só resta, com muito sentimentalismo, como ele gostaria, a máscara do soberano, perante a qual ainda uma pequena parte do país se acha obrigada a genuflectir. A consciência histórica dos portugueses é um óptimo reflexo da inconsciência que os trouxe à miséria e ao desespero.

 

 

 

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