Já tinha dado pelo excesso de emoção
à volta da questão da Irlanda e da sua libertação dos dinheiros da Troika, até
mesmo na questão do programa cautelar, de que ela prescinde, coisa que o nosso
Governo também promete para 2014, mas sempre na dúvida, no que recebe o apoio
da nossa Oposição nas suas acções de extremo impacto, como greves, invasão de
escadas, gritaria e estardalhaço, embora sem pedras de estilhaço ainda. Porque
a verdade é que a Oposição não entra em crenças dessas, convicta dos seus
intuitos de destruição do Governo e do País por via vária de contestação em que
a acusação impera.
Mas gabam muito a Irlanda e o seu
Governo, excluindo, todavia, a colaboração do povo e outros elementos
partidários irlandeses para ajudar o seu Governo a resolver os problemas de endividamento,
sacrificando-se, com os mesmos cortes nas despesas, e até superiores aos de cá,
mas com rendimento superior, proveniente do seu trabalho.
O texto de João Miguel Tavares, “Por
um Portugal à Irlandesa” é eloquente nos dados que aponta, sobre o lá e
o cá. Mas não resolve o problema cá, que a gritaria e as greves continuam em
grande afinco, e ninguém recua nisso nem faz exame de consciência porque somos
refractários a leituras e o texto de João M. Tavares não é sequer lido, ou é ostensivamente
ignorado. Felizmente, ontem verifiquei – há anos que não ia ao Continente de
Cascais – verifiquei que as mesas de almoço estavam preenchidas por grupos
abrangendo famílias – felizmente, pois, continuamos a bem comer e beber. Eu
própria lá comi e não deixei de procurar a sobremesa nas gostosuras do “Amor
aos pedaços”, das minhas lembranças de anos precedentes. Nem a questão dos
afogamentos e fomes nas Filipinas e zonas afins me fez solidarizar-me com esses
sofrimentos do mundo, o estômago reclamando alto os seus direitos de amor, aos
pedaços que fosse. O bem-estar geral tudo mergulhou sobre os apelos do meu egoísmo.
Quero confiar no Governo, que aliás, vai mexendo no meu bolso para se livrar da
Troika.
Quanto à questão que João
Miguel Tavares põe sobre diferenças estruturais entre portugueses e irlandeses,
direi com António Gedeão
“Inútil seguir
vizinhos.Querer ser depois ou ser antes
Cada um é seus caminhos
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.”
Deixemos os caminhos dos gigantes aos gigantes,
a nossa medida é outra. Pelo menos agora.
Sugerir que a Irlanda não se
submeteu à troika e à austeridade, e que por isso foi bem sucedida, é
coisa que daria para rir, se não fosse mais um triste caso de cegueira
ideológica e de manipulação intelectual.
E de repente, toda a gente
descobriu que a Irlanda é que é bestial. Que o Governo o diga, e a queira
imitar, até tem uma certa lógica, tendo em conta que a Irlanda sempre foi
apresentada publicamente como "o país que Portugal quer copiar", tal
como a Grécia foi apresentada como "o país que Portugal quer evitar".
No entanto, subitamente, a
Irlanda parece o tipo lá da rua que ganhou o Euromilhões: um dia acorda e
descobre que está cheio de amigos, incluindo vários que nunca antes tinha visto
na vida.
Eis o porta-voz do PS para
assuntos económicos sobre a Irlanda: "Procurou, sempre que possível, obter
um ajustamento que considerasse também o crescimento económico" e
"ainda este ano, na preparação do Orçamento para 2014, a Irlanda recusou o
nível de austeridade que a troika queria impor". Eis Mário Soares
sobre a Irlanda: "Soube ter um Governo competente para sair [da crise].
Porquê? Porque não foi
subserviente e a política foi sempre – ou quase – dominante sobre os mercados
usurários." Eis Carvalho da Silva sobre a Irlanda: "Em Portugal
estamos a ser objectivamente conduzidos por políticas de contínuo
empobrecimento. A Irlanda tem uma actuação de governação de defesa do interesse
nacional e de afirmação dos seus valores. Em Portugal não. Temos governantes a
apoiar a troika."
Eu não sei que jornais estes
senhores andam a ler, mas não devem ser os mesmos que eu leio. Nos meus
jornais, li que o Orçamento irlandês para 2014 – o tal pós-troika –
impõe cortes de 2,5 mil milhões de euros, e entre as suas propostas está a
perda do acesso gratuito à saúde de 10% dos pensionistas com mais de 70 anos.
Será que Seguro, Soares e Carvalho da Silva concordam com a medida?
A Irlanda reduziu o seu
défice de 30,6% em 2010 para 7,3% (estimativa) em 2013 e quer atingir 5,1% em
2014. Estamos a falar de um esforço muitíssimo mais violento do que o português
– uma queda de 25,5 pontos percentuais. Segundo o Financial Times, os
cortes na despesa irlandesa desde 2008 já ascendem a 28 mil milhões de euros. O
défice português em 2010 foi de 10,2%, e aquilo que se pretende é que ele venha
a ser de 4% em 2014 – ou seja, uma diminuição de 6,2 pontos percentuais, quatro
vezes menos do que a Irlanda. E para cortar os eternos 4,8 mil milhões de euros
com a famosa "reforma do Estado" tem sido o cabo dos trabalhos.
Comparem estes valores, se faz favor, e digam-me sem se rirem que a Irlanda
saiu do programa da troika com a casa arrumada e confiança para
dispensar um programa cautelar porque "a política foi sempre dominante
sobre os mercados usurários".
Defender tal coisa é aplicar
o velho ditado "a galinha da vizinha é sempre melhor do que a minha"
à macroeconomia. A Irlanda só é espectacular porque fica a espectaculares 2500
quilómetros de distância. Não, a Irlanda não fugiu à austeridade. Pelo
contrário, aplicou-a com mais afinco do que Portugal, e com protestos nas ruas.
Claro que a sua economia nada tem a ver com a nossa. Claro que o seu sector
exportador é duas vezes e meia o tamanho do português em percentagem do PIB.
Claro que não foi tão penalizada pelo desemprego. Claro que é preciso analisar
cada país, perceber as suas especificidades, em vez de andarmos a patrocinar as
habituais queixas por atacado. Mas sugerir que a Irlanda não se submeteu à
troika e à austeridade, e que por isso foi bem sucedida, é coisa que daria
para rir, se não fosse mais um triste caso de cegueira ideológica e de
manipulação intelectual. João Miguel Tavares 21/11/2013
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