domingo, 17 de novembro de 2013

Viagem no tempo


O texto de Camilo Castelo Branco, apresentado por Joaquim Reis -“História Ignota” - publicado no blog “A Bem da Nação” tem um interesse de actualidade, nestes tempos de catástrofes nas zonas do Pacífico, que incriminam os homens com as suas descobertas causadoras das modificações no planeta, mostrando que tais desastres são provavelmente resultantes das transformações que a Terra vai sofrendo no seu percurso de tantas eras e de tantas convulsões. Segundo Camilo Castelo Branco, foram onze os terramotos havidos em Portugal até o desastre 1755 e grande a indiferença dos que os poderiam ter referenciado:

"Lisboa tinha sofrido desde 1309 até 1755 onze terramotos mais ou menos destruidores. No de 1551 arrasaram-se duzentas casas e morreram duas mil pessoas. No de 1597 submergiu-se o Alto do Monte de Santa Catarina com três ruas e cento e dez edifícios. Mas o de Janeiro de 1531 é comparável ao de 1755, porque abateram mil e quinhentas casas e não se calculou os milhares de vítimas.

Pois os cronistas do reinado de D. João III, entendendo que os ministros não mereciam a imortalidade pelo facto de cumprirem o seu dever, providenciando no enterro dos mortos e no remédio dos vivos, escassamente relatam o sucesso.

Garcia de Resende deixou na sua Miscelânea a relação poética do grande terramoto, em que nem sequer alude a Pedro de Alcáçova, o Pombal daqueles tempos.

Nos 'ANAIS de D. JOÃO III' por Fr. Luiz de Sousa há um vácuo de sete anos, 1530-1537. O insigne escritor deixou fora dos Anais a notícia do terramoto.

Em compensação, Garcia de Resende, testemunha ocular, conta assim a catástrofe:
...............................

Gretas, buracos fazia
a terra, e se abria;
água e areia saía
que a enxofre fedia;
isto em Almeirim se viu;
e porque logo vieram
grandes chuvas que choveram
e alguns dias duraram,
as aberturas taparam
que nunca mais pareceram.
Todos com medo que haviam
deixaram casas, fazendas;
nos campos, praças dormiam,
em tendilhões e em tendas
casas de ramas faziam.
................................
Dois meses assim estiveram,
na mor força do inverno;
águas, ventos sustiveram,
tormentos, trovões sofreram
bradando por Deus eterno.
.....................................
Também se sentiu no mar:
sem vento marés se alçaram;
navios foram tocar
com quilhas no fundo dar
como perdidos andaram.
.......................................
Muros e torres caíram,
vilas, praças, mosteiros,
igrejas, casas, celeiros,
quintas, e as mais abriram.
Não caíam pardieiros
pedras se viam rachadas
e coisas de muitas sortes,
quanto mais rijas, mais fortes,
tanto mais espedaçadas.
Infinda gente morreu;
grandes perdas receberam,
grandes perdas se perdeu;
muitos má morte morreram
por que de noite aqueceu (aconteceu).
...........................................

Por mais calamitosas provações passaram Lisboa e os ministros a quem corria a obrigação de as remediar. Houve pestes mais devastadoras que os terramotos.
Na de 1569 morriam no decurso de alguns meses entre quinhentas e seiscentas pessoas por dia. Os operários caíam mortos pela fome. Já não havia terra para sepulturas. Parte dos sessenta mil que morreram, enterraram-se nas lojas das próprias casas. Enquanto o rei em Cintra prometia levantar um pomposo templo a S. Sebastião advogado da peste, Diogo Lopes de Sousa, Governador da Casa do Cível e D. Martinho Pereira, Vedor da Fazenda, esforçavam uma inútil coragem, na cidade, de pé firme, no âmago do incêndio da peste abrindo casas de saúde e tirando recursos prodigiosos, sem violências nem alcavalas, do meio da miséria geral. (...)»

 Esta referência de Camilo a Garcia de Resende e à sua “Miscelânea”, para além do visualismo e dramatismo da descrição da tragédia que eu desconhecia, limitada que fui, profissionalmente, às poesias palacianas que ele compilou no seu “Cancioneiro Geral” , suas e de contemporâneos, com as “Trovas à morte de Inês de Castro”, primeiro texto sensível ao drama sucedido um século e meio antes, tão valorizada posteriormente, me levaram a procurar na Internet tal documento e adaptá-lo, segundo a ortografia anterior ao A.O.
Encontrei a análise seguinte:

Miscelanea de Garcia de Resende, e variedade de historias, costumes, casos, e cousas / que em seu tempo aconteceram

«Integrada na segunda edição do Livro das Obras de Garcia de Resende, e escrita provavelmente nos mesmos anos em que redigiu a Crónica de D. João II, entre 1530 e 1533, a Miscelânea, dedicada a D. João III, relembra, em verso, os grandes acontecimentos e protagonistas da história europeia e portuguesa ocorridos entre meados do século XV e primeiros decénios do século XVI.

Refletindo o processo histórico-cultural que acompanhou o nascimento da idade moderna, o autor da Miscelânea assume-se como espectador das inúmeras transformações políticas, económicas, sociais, morais, de modas, de costumes verificadas nos últimos oitenta anos: as viagens de descoberta, a constituição de impérios, a emergência do capitalismo, o desmoronar do sistema feudal, o desenvolvimento da cultura palaciana, a ascensão de novas classes dominantes e novos valores, o aparecimento da imprensa, etc. Aí, a lógica da mudança obedece à sucessão de novidades contrárias: "

«Vimos rir, vimos folgar, / vimos coisas de prazer, / vimos zombar, apodar, / motejar, vimos trovar [...] E depois vimos cuidados, / paixões, descontentamentos, / muitos malenconizados, / muitos sem causa agravados (...) Vimos muito espalhar / Portugueses no viver, / Brasil, ilhas povoar, / e as Índias ir morar, / natureza lhe esquecer: / vemos no reno meter / tantos cativos crescer, / e irem-se os naturais, [...]".

A enumeração das histórias, "costumes, casos, e coisas" acaba, deste modo, por redundar na constatação de uma desordem, evidenciada, por exemplo, pela arbitrariedade da recompensa de serviços, pois "Mui mal se pode sofrer / com siso, nem paciência, / ver a uns muitos valer / sem esforço, sem saber, / virtudes, nem eloquência, / e ver outros que isto têm, / e sempre serviram bem, / viver sempre “mesterosos”, / sem favor, e desgostosos / da grande sem razão que vêem."

Confluindo na temática do desconcerto do mundo, resolvida na crença de que só a fé em Deus dá sentido à mudança, a Miscelânea nasce, por outro lado, do desejo humanista, já enunciado no prólogo ao Cancioneiro, de registar em vulgar todos os feitos que, mau grado a sua "mundana glória", não devem ser esquecidos.»

 Tal, pois, como no “Prólogo do Cancioneiro Geral” onde, em prosa, Garcia de Resende se propõe divulgar tantos escritos num país que, vivendo a sua epopeia, se esquece de coligir tantos brincos que constituem as poesias palacianas em redondilha, sucedâneas da poesia trovadoresca, também neste “Prólogo da Miscelânea” sobressai o propósito difusor dos casos ocorridos no tempo, a que não falta a intenção crítica não só pela incúria e indiferença dos portugueses em os apontarem, como pelos desconcertos de um mundo regido pela injustiça. Outrora como agora.

Prólogo da Miscelânea de Garcia de Resende

SENHOR
As perdas, nojos , doenças
E fortunas têm remédio;
Mas quem deixa perder tempo
Nunca o mais pode cobrar:
Eu, neste em que me vi
Descontente e ocioso
E fora de ocupações,
Não de paixões e cuidados,
Me ocupei em cuidar
E recolher à memória
As muitas e grandes coisas,
Que em nossos dias passaram
E as novas novidades,
Grandes acontecimentos,
E desvairadas mudanças
De vidas e de costumes,
Tantos começos, e cabos,
Tanto andar e desandar
Tanto subir e descer
Tantas voltas más e boas,
Tanto fazer, desfazer
Tanto dar, tanto tomar
Tantas mortes, tantas guerras
Tão poucas vidas e pazes,
Tanto ter, tanto não ter,
Tantos descontentamentos,
Tantas e vãs esperanças,
Tanto mal, tão pouco bem,
Tanto favor, desfavor,
Tanto valer, desvaler,
Tanto prazer, tantos nojos,
Tão pouco dar por virtudes,
Tantos falsos e mentiras,
Tão pouca fé e verdade,
Tantos soberbos e baixos
Tanto saber sem dar fruto,
Tantos simples e errados,
Tão poucos os que acertam,
Tantos serviços em vão,
Tanto medrar sem servir,
Tanto soltar e prender,
Tantos enganos e modos,
Tantos bons sem galardão,
E tantos maus sem castigo
Conselhos sem caridade,
Ingratidões sem razão,
Cobiças e pouco amor,
E amizades fingidas,
Tão perseguida a igreja,
De cristãos mais que de mouros
Tanto trabalhar por vida,
Tão pouco por bem morrer,
Tantos avaros tiranos
Tantos cuidados do mundo
Tantos descuidos de deus
Por coisas que hão-de acabar.
E quem verdadeiramente
Estas coisas bem sentir,
Verá que em muitos tempos
Nunca tais aconteceram.
Quando, Senhor, me lembrou
Tão magno número delas
E tão grande esquecimento
Que poucas vemos escritas,
Me pareceu que erraria
Não as pôr em lembrança,
E também outras pequenas
Que são dignas de notar:
E tanto foi o desejo
Que tive de o fazer,
Que me esqueceu de quão pouca
Suficiência tinha.
E porque tamanhos casos
Me fizeram ter em pouco,
Quanto o mundo agora pode
E quanto pode poder
Determinei de sofrer,
De ouvir antes glosadores
Que deixar escurecido
O que devia ser claro.
E pois muitos gostam de ver
Livros, fábulas antigas,
A que por autoridade
Dos escritores dão fé,
Muito mais devem folgar
De ler estas, que tão certo
Todos sabem, e alguns viram
Que esquecidas estavam:
Mas a natureza é tal,
Que poucos querem ouvir,
Nem aprender nem saber
Coisas certas nem verdades;
E mais, vendo esta obra
Escrita por quem carece
De linguagem, de doçura
De saber, graça, eloquência,
E em estilo tão baixo
Que vossa Alteza só
Com seu favor lhe não vale
Bem é vão o meu trabalho.

 

 

 

Nenhum comentário: