Mais uma das CONVERSAS DE ESPLANADA EM LISBOA de Henrique Salles da Fonseca que nos espanta na
frontalidade e argúcia das suas declarações, de uma simplicidade que se
harmoniza com a transparência dos dados que expõe, e em que sobressai a
consciência da astúcia nacional na desresponsabilização própria, de ter comido
e bebido do bolo alheio e entende agora que não tem obrigação de prestar contas
–as contas que Salles da Fonseca explica e aclara. Lembramos os meninos sobre
os quais a família se debruça fazendo chover sobre as suas ânsias de posse, e
logo de enfastiamento, os brinquedos, roupas ou lambarices das suas exigências
sem travão, como de obrigação que merecem, sem pensar em dificuldades ou
consequências e nem sequer nos muitos por esse mundo. Sem brinquedo…
O MAU DA FITA
Empregado de mesa – Bom dia! Fazem favor.
Eu – Bom dia! Para mim é um café e um croquete.
Ele – E para mim... tem Moscatel ou Favaios?
Empregado de mesa – Temos ambos.
Ele – Então... traga-me um Moscatel, por favor; o Favaios
fica para amanhã.
Empregado de mesa – E o café do Senhor é
normal, cheio, italiana?
Eu – Normal. E o croquete também.
Ele – Croquete normal?
Eu – Sim, de carne de vaca. É que aqui também fazem de leitão, de
peru, sei lá mais do quê... qualquer dia até fazem de baleia, canguru, tubarão
ou dinossauro.
Ele – É a crise.
Eu – Qual crise?
Ele – Esta, por que estamos a passar.
Eu – Não estamos a passar por crise nenhuma. Acho mesmo que a crise
foi a que nos atirou para o buraco. Agora já não estamos em crise; estamos a
tentar sair do buraco para que o despesismo nos atirou.
Ele – Devemos viver em mundos diferentes.
Eu – Não, não, vivemos exactamente no mesmo mundo. Só temos
diferenças de semântica.
Ele – Porquê?
Eu – Porque Você chama crise ao «desmanchar da feira de vaidades» em
que estávamos e para mim isso é a correcção dos vícios em que muitos tinham
caído. Os «vaidosos» e os «viciosos» é que estão a ver a vida a andar para trás
e acham-se em crise. Quem conteve o consumo dentro da razoabilidade dos
rendimentos próprios, quem se relaciona com o Estado apenas na qualidade de
Contribuinte, quem produz bens ou serviços transaccionáveis, não tem motivos de
grande preocupação. Mas quem esticou a corda que a banca lhe lançou acumulando
créditos à habitação, ao consumo duradoiro e por aí fora; quem perdeu o emprego
nalgum dos Sectores de bens não transaccionáveis ou do comércio importador;
quem depende do Estado-patrão; quem tirou cursos que não se enquadrem no novo
modelo de desenvolvimento... ah! esses têm todas as razões para se preocuparem.
Direi mesmo mais: para se preocuparem muito!
Ele – E isso não é crise?
Eu – É uma crise a nível individual, micro económico, não macro. A
nível macro estamos a corrigir os erros em que tínhamos caído. O que eu aceito
é que se diga que há muita gente com problemas mas esses são uma parte. A outra
parte é constituída por todos os que trabalham nos sectores exportadores, por
exemplo. Mas há mais...
Ele – E apesar disso tudo, a dívida continua a subir e só se ouve falar
em austeridade, austeridade e que a culpa é da Merkel.
Eu – A dívida... qual delas?
Ele – Mas há mais do que uma?
Eu – A pública e a privada. A dívida externa total é a soma de todas
as dívidas ao estrangeiro sejam elas do Estado, dos bancos, das empresas e dos
particulares. Habitualmente medida pelo PIB, tínhamos no final de
Dezembro de 2010 uma dívida externa bruta total de cerca de 230% (396 mil
milhões de euros). Mas considerando o valor líquido e não o bruto, ficávamo-nos
pelos 104%.
Ele – E hoje?
Eu – No fim de Junho passado tínhamos uma dívida bruta total de cerca
de 236% do PIB com a pública a representar cerca de 86% e a banca 62%. Mas em
2006 a pública era de pouco mais de 50% e a dos Bancos rondava os 100%.
Ele – A pública a subir e a da banca a descer. Porquê?
Eu – Porque enquanto o Estado tiver um Cêntimo de défice vai ter que
ir aos mercados pedir esse Cêntimo emprestado para cobrir o défice e porque a
banca estrangeira fechou a torneira à portuguesa e esta só poderia continuar a
funcionar se começasse a amortizar as montanhas de dívidas que tinha lá fora.
Ele – E por que é que o défice público cresceu tanto no primeiro ano
deste Governo?
Eu – Porque o Governo anterior praticava uma política de
desorçamentação de modo a esconder a realidade e este Governo andou quase um
ano só à procura desses buracos para os voltar a meter no Orçamento. E depois
veja bem o que para aí vai de discussão política por causa da redução do défice...
Ele – É que essa redução está a ser feita à custa dos pobres enquanto
os ricos só fazem é aumentar as fortunas.
Eu – Quais pobres?
Ele – Os que recebem pensões de miséria, os funcionários públicos...
Eu – E quais ricos?
Ele – Os banqueiros.
Eu – Muito bem! Não discuto que o poder de compra de uns e outros é
muito diferente. Mas veja lá a «coisa» de outro modo. Cerca de 70% da despesa
pública corrente é com vencimentos de funcionários e com pensões. Tudo o resto
não passa de 30% e comparadas com as correntes, as despesas de investimento são
uma brincalhotice de crianças. Agora imagine que a Nação lhe pedia a si para
resolver o problema do défice. Você ia preocupar-se com os 30 ou com os 70%?
Ele – Com os 70%, claro!
Eu – E que fazia? Aumentava ou reduzia o bolo?
Ele – Sim, tinha que reduzir mas cortava nos de cima e não nos de
baixo.
Eu – Então isso significa que Você faria exactamente o mesmo que o
Governo está a fazer. Os de cima reduzem muito mais que os de baixo e os mais
baixos de todos ficam na mesma e nada reduzem. Mas é claro que os jornalistas
não gostam de dizer isto.
Ele – E os juízes e outros do género? Já viu as reformas douradas que
eles têm? E os políticos?
Eu – E os impostos que essa gente passou a pagar? Disso também os
jornalistas não falam... Porquê?
Ele – Porque são da Oposição?
Eu – Sim, também. Mas o mais grave é a falta de seriedade, o mau
jornalismo, a desinformação, pugnarem pela criação dum ambiente de crispação.
Alguns desses jornalistas estão-se mesmo nas tintas para a Oposição. O que eles
querem é vender mais jornais e revistas e isso faz-se com sangue, não com
notícias azuis. Sabe o que acho deles? Que são um bando de malfeitores, uns
delinquentes. E olhe que fico muito satisfeito ao saber que Você, afinal, faria
o mesmo que o Governo está a fazer.
Ele – Não há perigo de eu ir para o Governo.
Eu – Mas ainda não acabámos. Que tal a questão dos ricos?
Ele – Ah!, sim, os banqueiros. Mas com o entusiasmo da conversa vou
mandar vir mais um copo. Olhe! Faz favor?
Empregado de mesa – O Senhor chamou? Mais um Moscatel?
Ele – Não, não. Agora vai ser um Favaios, por favor.
Empregado de mesa – Muito bem, trago já.
Eu – Estes tipos não aprenderam nada porque de certeza que não tiveram
ninguém que os ensinasse. Um barman ou um empregado de mesa nunca refere
«mais um» em voz alta. Ninguém à volta tem nada que saber se Você vai tomar
«mais um» ou «mais cinquenta». É «um» que traz e ponto final. A conta que
apresenta no final é que há-de referir quantos Você tomou. As Escolas de
Hotelaria ainda têm muito que fazer...
Ele – Realmente, tem razão também nisso.
Eu – Mas voltando aos ricos, tenho a dizer-lhe que prefiro não ser
banqueiro. Já viu o sarilho em que eles andam metidos desde que o Bill Clinton
entornou as finanças todas?
Ele – O Bill Clinton?
Eu – Sim, ele e não a Merkel.
Ele – Vai ter que me explicar isso como se eu fosse uma criança
pequena.
Eu – Sim, com certeza. Mas se não se importa, vou deixá-lo
tranquilamente a tomar o seu «abafado» e continuamos amanhã. Pode ser?
Ele – Muito bem! Então, amanhã começamos com o Bill Clinton em vez da
Merkel.
Eu – OK! Até amanhã. E desculpe esta saída rápida mas tenho a família
já à espera.
Ele – Até amanhã.
Novembro de 2013
Henrique Salles da Fonseca
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