sábado, 30 de novembro de 2013

As contas “da minha mãe Gansa”

Mais uma das CONVERSAS DE ESPLANADA EM LISBOA de Henrique Salles da Fonseca que nos espanta na frontalidade e argúcia das suas declarações, de uma simplicidade que se harmoniza com a transparência dos dados que expõe, e em que sobressai a consciência da astúcia nacional na desresponsabilização própria, de ter comido e bebido do bolo alheio e entende agora que não tem obrigação de prestar contas –as contas que Salles da Fonseca explica e aclara. Lembramos os meninos sobre os quais a família se debruça fazendo chover sobre as suas ânsias de posse, e logo de enfastiamento, os brinquedos, roupas ou lambarices das suas exigências sem travão, como de obrigação que merecem, sem pensar em dificuldades ou consequências e nem sequer nos muitos por esse mundo. Sem brinquedo…

O MAU DA FITA

Empregado de mesa – Bom dia! Fazem favor.

Eu – Bom dia! Para mim é um café e um croquete.

Ele – E para mim... tem Moscatel ou Favaios?

Empregado de mesa – Temos ambos.

Ele – Então... traga-me um Moscatel, por favor; o Favaios fica para amanhã.

Empregado de mesa – E o café do Senhor é normal, cheio, italiana?

Eu – Normal. E o croquete também.

Ele – Croquete normal?

Eu – Sim, de carne de vaca. É que aqui também fazem de leitão, de peru, sei lá mais do quê... qualquer dia até fazem de baleia, canguru, tubarão ou dinossauro.

Ele – É a crise.

Eu – Qual crise?

Ele – Esta, por que estamos a passar.

Eu – Não estamos a passar por crise nenhuma. Acho mesmo que a crise foi a que nos atirou para o buraco. Agora já não estamos em crise; estamos a tentar sair do buraco para que o despesismo nos atirou.

Ele – Devemos viver em mundos diferentes.

Eu – Não, não, vivemos exactamente no mesmo mundo. Só temos diferenças de semântica.

Ele – Porquê?

Eu – Porque Você chama crise ao «desmanchar da feira de vaidades» em que estávamos e para mim isso é a correcção dos vícios em que muitos tinham caído. Os «vaidosos» e os «viciosos» é que estão a ver a vida a andar para trás e acham-se em crise. Quem conteve o consumo dentro da razoabilidade dos rendimentos próprios, quem se relaciona com o Estado apenas na qualidade de Contribuinte, quem produz bens ou serviços transaccionáveis, não tem motivos de grande preocupação. Mas quem esticou a corda que a banca lhe lançou acumulando créditos à habitação, ao consumo duradoiro e por aí fora; quem perdeu o emprego nalgum dos Sectores de bens não transaccionáveis ou do comércio importador; quem depende do Estado-patrão; quem tirou cursos que não se enquadrem no novo modelo de desenvolvimento... ah! esses têm todas as razões para se preocuparem. Direi mesmo mais: para se preocuparem muito!

Ele – E isso não é crise?

Eu – É uma crise a nível individual, micro económico, não macro. A nível macro estamos a corrigir os erros em que tínhamos caído. O que eu aceito é que se diga que há muita gente com problemas mas esses são uma parte. A outra parte é constituída por todos os que trabalham nos sectores exportadores, por exemplo. Mas há mais...

Ele – E apesar disso tudo, a dívida continua a subir e só se ouve falar em austeridade, austeridade e que a culpa é da Merkel.

Eu – A dívida... qual delas?

Ele – Mas há mais do que uma?

Eu – A pública e a privada. A dívida externa total é a soma de todas as dívidas ao estrangeiro sejam elas do Estado, dos bancos, das empresas e dos particulares. Habitualmente medida pelo PIB, tínhamos no final de Dezembro de 2010 uma dívida externa bruta total de cerca de 230% (396 mil milhões de euros). Mas considerando o valor líquido e não o bruto, ficávamo-nos pelos 104%.

Ele – E hoje?

Eu – No fim de Junho passado tínhamos uma dívida bruta total de cerca de 236% do PIB com a pública a representar cerca de 86% e a banca 62%. Mas em 2006 a pública era de pouco mais de 50% e a dos Bancos rondava os 100%.

Ele – A pública a subir e a da banca a descer. Porquê?

Eu – Porque enquanto o Estado tiver um Cêntimo de défice vai ter que ir aos mercados pedir esse Cêntimo emprestado para cobrir o défice e porque a banca estrangeira fechou a torneira à portuguesa e esta só poderia continuar a funcionar se começasse a amortizar as montanhas de dívidas que tinha lá fora.

Ele – E por que é que o défice público cresceu tanto no primeiro ano deste Governo?

Eu – Porque o Governo anterior praticava uma política de desorçamentação de modo a esconder a realidade e este Governo andou quase um ano só à procura desses buracos para os voltar a meter no Orçamento. E depois veja bem o que para aí vai de discussão política por causa da redução do défice...

Ele – É que essa redução está a ser feita à custa dos pobres enquanto os ricos só fazem é aumentar as fortunas.

Eu – Quais pobres?

Ele – Os que recebem pensões de miséria, os funcionários públicos...

Eu – E quais ricos?

Ele – Os banqueiros.

Eu – Muito bem! Não discuto que o poder de compra de uns e outros é muito diferente. Mas veja lá a «coisa» de outro modo. Cerca de 70% da despesa pública corrente é com vencimentos de funcionários e com pensões. Tudo o resto não passa de 30% e comparadas com as correntes, as despesas de investimento são uma brincalhotice de crianças. Agora imagine que a Nação lhe pedia a si para resolver o problema do défice. Você ia preocupar-se com os 30 ou com os 70%?

Ele – Com os 70%, claro!

Eu – E que fazia? Aumentava ou reduzia o bolo?

Ele – Sim, tinha que reduzir mas cortava nos de cima e não nos de baixo.

Eu – Então isso significa que Você faria exactamente o mesmo que o Governo está a fazer. Os de cima reduzem muito mais que os de baixo e os mais baixos de todos ficam na mesma e nada reduzem. Mas é claro que os jornalistas não gostam de dizer isto.

Ele – E os juízes e outros do género? Já viu as reformas douradas que eles têm? E os políticos?

Eu – E os impostos que essa gente passou a pagar? Disso também os jornalistas não falam... Porquê?

Ele – Porque são da Oposição?

Eu – Sim, também. Mas o mais grave é a falta de seriedade, o mau jornalismo, a desinformação, pugnarem pela criação dum ambiente de crispação. Alguns desses jornalistas estão-se mesmo nas tintas para a Oposição. O que eles querem é vender mais jornais e revistas e isso faz-se com sangue, não com notícias azuis. Sabe o que acho deles? Que são um bando de malfeitores, uns delinquentes. E olhe que fico muito satisfeito ao saber que Você, afinal, faria o mesmo que o Governo está a fazer.

Ele – Não há perigo de eu ir para o Governo.

Eu – Mas ainda não acabámos. Que tal a questão dos ricos?

Ele – Ah!, sim, os banqueiros. Mas com o entusiasmo da conversa vou mandar vir mais um copo. Olhe! Faz favor?

Empregado de mesa – O Senhor chamou? Mais um Moscatel?

Ele – Não, não. Agora vai ser um Favaios, por favor.

Empregado de mesa – Muito bem, trago já.

Eu – Estes tipos não aprenderam nada porque de certeza que não tiveram ninguém que os ensinasse. Um barman ou um empregado de mesa nunca refere «mais um» em voz alta. Ninguém à volta tem nada que saber se Você vai tomar «mais um» ou «mais cinquenta». É «um» que traz e ponto final. A conta que apresenta no final é que há-de referir quantos Você tomou. As Escolas de Hotelaria ainda têm muito que fazer...

Ele – Realmente, tem razão também nisso.

Eu – Mas voltando aos ricos, tenho a dizer-lhe que prefiro não ser banqueiro. Já viu o sarilho em que eles andam metidos desde que o Bill Clinton entornou as finanças todas?

Ele – O Bill Clinton?

Eu – Sim, ele e não a Merkel.

Ele – Vai ter que me explicar isso como se eu fosse uma criança pequena.

Eu – Sim, com certeza. Mas se não se importa, vou deixá-lo tranquilamente a tomar o seu «abafado» e continuamos amanhã. Pode ser?

Ele – Muito bem! Então, amanhã começamos com o Bill Clinton em vez da Merkel.

Eu – OK! Até amanhã. E desculpe esta saída rápida mas tenho a família já à espera.

Ele – Até amanhã.

 Novembro de 2013
 Henrique Salles da Fonseca

 

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