Quando era “menina
e moça”, sem, contudo, qualquer parentesco com a personagem de Bernardim, que para
isso seria necessário o dom da criação, distante das minhas possibilidades
inventivas, não me apercebia do significado da minha existência no mundo da
minha casa, onde imperava a rotina do trabalho do meu pai, no Estado, para nos
sustentar, da minha mãe, em casa, para nos alimentar, do nosso, fraterno, de
estudo e de brinquedo, da nossa competência. Formei-me, fiz família,
empreguei-me no Estado, segundo a carreira escolhida. Esforcei-me por bem
cumprir, como meu pai cumprira, sempre julguei que sim, o Estado isso me pedia,
embora não fosse generoso no reconhecimento, retirando para si parte do que lhe
custara a minha formação. As explicações que dei colmataram necessidades
espirituais e alargaram o domínio da tendência consumista, favorecendo os
caprichos da espiritualidade e da materialidade. Um viver de rotina, implicando
angústias e risos, coisas passadas, diferentes das dos pais, diferentes das dos
filhos, cada viver sendo um mundo secreto ou mais indiscreto, mas único, de
cada ser.
Olhando à
volta, reconhecia que outros viviam bem melhor, habitações de pujança,
vestuários de esplender, mas não me incomodava isso. Também os havia que viviam
bem pior, o que me deu para entreter o preconceito irónico sobre as desigualdades
sociais, no vasto mundo. Não que acreditasse nas generosas abstracções
emblemáticas dos movimentos revolucionários, ciente de que tais igualdades da
fraternidade descambam sempre nos movimentos criminosos dos Bin Laden
reivindicativos, em geral em favor próprio.
Mas sempre
me dei conta de que o funcionalismo era mais ou menos menosprezado, já nos meus
tempos, não só pelos doutores trabalhando por conta própria, com excelentes
lucros, como pelos empregados em firmas estrangeiras, mais generosas que as
nossas, na distribuição dos lucros por aqueles, pois que os lucros das firmas
nacionais revertiam preferencialmente a favor dos respectivos donos, disso
resultando o grande capitalismo e o natural desprezo pelo funcionalismo
mediano, de dorso curvado, ante a máquina estatal, que, aliás, nunca se
incomodou a distinguir os méritos, que cresciam ao sabor dos anos, tal como as
árvores, e dum modo geral toda a fauna terrestre.
Mas nunca me senti tão vexada
dantes, como me senti com as justificações históricas de Vasco Pulido Valente,
que denuncia um país presa da cultura da courela e da oficialidade do emprego
que o ”desenrasca” e o eleva socialmente com pouco esforço, quer por meio de
“um lugarzinho numa repartição”, quer em “ser aceite pela máquina
da “justiça” ou sequer em “entrar no Exército”. Desde longa data.
Chegámos
aos dias de hoje com a crise à porta. “E o Estado, como lhe competia, deu o
número suficiente de empregos para garantir o sossego e a mansidão da gente que
lhe vinha bater à porta.”
Foram
muitos os funcionários, a quem o “Estado” estendeu a mão, para efeitos de votação no partido do poder e a quem agora
estende o tapete, para pagar o calote, da criação dos diversos governos. E
esses funcionários e mais os antigos, já reformados, barafustam, não mais
vergados, porque entretanto, têm os seus próprios “condottieri” a explicar os
seus direitos.
Eis
o texto de Vasco Pulido Valente, do Público, de 6/6:
«O princípio
do fim»
«Desde o princípio do século XIX,
quando perdeu o Brasil, o país tem vivido do Estado e da terra. Para a classe
média, a que a terra faltava ou não chegava, a perfeição estava mesmo em viver
ao mesmo tempo de um emprego oficial em Lisboa ou numa cidade de província e de
uma propriedade (geralmente modesta), herdada da família.
Os rendimentos combinados de uma parte e da outra permitiam
pagar um estatuto “decente” e “respeitável” e até abriam a possibilidade de uma
ligeira promoção social. Mas sem um lado deste arranjo, ninguém conseguia subir
muito na política ou na administração. De qualquer maneira, a grande ambição da
massa de bacharéis que anualmente Coimbra despejava sobre o Portugal urbano
estava em arranjar um lugarzinho numa repartição, ser aceite pela máquina da
“justiça” ou entrar no Exército.
À medida que os rendimentos da terra foram descendo, apesar
da rede de transportes que a monarquia liberal construiu, o emprego no Estado
acabou por se tornar a única saída para a classe média letrada ou, se quiserem,
“educada”. A única solução era o emprego no Estado, conseguido a troco de
influência ou de serviços políticos. E o Estado, como lhe competia, deu o
número suficiente de empregos para garantir o sossego e a mansidão da gente que
lhe vinha bater à porta. Claro que a dívida, sempre crescente, pagava esta
prudência, e que pouco a pouco o mercado se recusou a emprestar dinheiro a
Portugal, abrindo uma crise que durou quarenta anos e que só a ditadura
conseguiu suprimir, com o Exército, a polícia secreta e a censura. Mas ficou a
tradição.
Num país pobre, sem uma economia privada desenvolvida, o
sentimento que prevalece na escolha de profissão é a necessidade de segurança.
Ora o Estado, se não falir, coisa que nunca se imagina, oferece confiança aos
seus funcionários. E como seria de esperar, depois do “25 de Abril”
literalmente milhões de portugueses arranjaram o seu cantinho no Estado ou nas
suas várias ramificações. A dívida e o défice obrigam agora a mudar este modo
de vida. Mas não se pode contar que uma classe social – no caso, a nossa muito
velha classe média de Estado – se deixe estrangular passivamente. Abandonará os
partidos do regime, provocará uma instabilidade permanente (que mais tarde ou
mais cedo se arrisca a degenerar numa forma de autoritarismo) e resistirá em
cada trincheira. O Tribunal Constitucional é hoje a trincheira principal, que a
esquerda – fatalmente estatista – aplaude e apoia. Não custa compreender isto.
O pináculo do funcionalismo partilha e defende a cultura e o ethos dos
funcionários. Para ele, o resto do mundo não existe.»
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