sexta-feira, 13 de junho de 2014

Faz parecer tudo tão feio!



Quando era “menina e moça”, sem, contudo, qualquer parentesco com a personagem de Bernardim, que para isso seria necessário o dom da criação, distante das minhas possibilidades inventivas, não me apercebia do significado da minha existência no mundo da minha casa, onde imperava a rotina do trabalho do meu pai, no Estado, para nos sustentar, da minha mãe, em casa, para nos alimentar, do nosso, fraterno, de estudo e de brinquedo, da nossa competência. Formei-me, fiz família, empreguei-me no Estado, segundo a carreira escolhida. Esforcei-me por bem cumprir, como meu pai cumprira, sempre julguei que sim, o Estado isso me pedia, embora não fosse generoso no reconhecimento, retirando para si parte do que lhe custara a minha formação. As explicações que dei colmataram necessidades espirituais e alargaram o domínio da tendência consumista, favorecendo os caprichos da espiritualidade e da materialidade. Um viver de rotina, implicando angústias e risos, coisas passadas, diferentes das dos pais, diferentes das dos filhos, cada viver sendo um mundo secreto ou mais indiscreto, mas único, de cada ser.
Olhando à volta, reconhecia que outros viviam bem melhor, habitações de pujança, vestuários de esplender, mas não me incomodava isso. Também os havia que viviam bem pior, o que me deu para entreter o preconceito irónico sobre as desigualdades sociais, no vasto mundo. Não que acreditasse nas generosas abstracções emblemáticas dos movimentos revolucionários, ciente de que tais igualdades da fraternidade descambam sempre nos movimentos criminosos dos Bin Laden reivindicativos, em geral em favor próprio.
Mas sempre me dei conta de que o funcionalismo era mais ou menos menosprezado, já nos meus tempos, não só pelos doutores trabalhando por conta própria, com excelentes lucros, como pelos empregados em firmas estrangeiras, mais generosas que as nossas, na distribuição dos lucros por aqueles, pois que os lucros das firmas nacionais revertiam preferencialmente a favor dos respectivos donos, disso resultando o grande capitalismo e o natural desprezo pelo funcionalismo mediano, de dorso curvado, ante a máquina estatal, que, aliás, nunca se incomodou a distinguir os méritos, que cresciam ao sabor dos anos, tal como as árvores, e dum modo geral toda a fauna terrestre.
Mas nunca me senti tão vexada dantes, como me senti com as justificações históricas de Vasco Pulido Valente, que denuncia um país presa da cultura da courela e da oficialidade do emprego que o ”desenrasca” e o eleva socialmente com pouco esforço, quer por meio de “um lugarzinho numa repartição”, quer em “ser aceite pela máquina da “justiça” ou sequer em “entrar no Exército”. Desde longa data.
Chegámos aos dias de hoje com a crise à porta. “E o Estado, como lhe competia, deu o número suficiente de empregos para garantir o sossego e a mansidão da gente que lhe vinha bater à porta.”
Foram muitos os funcionários, a quem o “Estado” estendeu a mão, para efeitos  de votação no partido do poder e a quem agora estende o tapete, para pagar o calote, da criação dos diversos governos. E esses funcionários e mais os antigos, já reformados, barafustam, não mais vergados, porque entretanto, têm os seus próprios “condottieri” a explicar os seus direitos.

Eis o texto de Vasco Pulido Valente, do Público, de 6/6:

«O princípio do fim»
«Desde o princípio do século XIX, quando perdeu o Brasil, o país tem vivido do Estado e da terra. Para a classe média, a que a terra faltava ou não chegava, a perfeição estava mesmo em viver ao mesmo tempo de um emprego oficial em Lisboa ou numa cidade de província e de uma propriedade (geralmente modesta), herdada da família.
Os rendimentos combinados de uma parte e da outra permitiam pagar um estatuto “decente” e “respeitável” e até abriam a possibilidade de uma ligeira promoção social. Mas sem um lado deste arranjo, ninguém conseguia subir muito na política ou na administração. De qualquer maneira, a grande ambição da massa de bacharéis que anualmente Coimbra despejava sobre o Portugal urbano estava em arranjar um lugarzinho numa repartição, ser aceite pela máquina da “justiça” ou entrar no Exército.
À medida que os rendimentos da terra foram descendo, apesar da rede de transportes que a monarquia liberal construiu, o emprego no Estado acabou por se tornar a única saída para a classe média letrada ou, se quiserem, “educada”. A única solução era o emprego no Estado, conseguido a troco de influência ou de serviços políticos. E o Estado, como lhe competia, deu o número suficiente de empregos para garantir o sossego e a mansidão da gente que lhe vinha bater à porta. Claro que a dívida, sempre crescente, pagava esta prudência, e que pouco a pouco o mercado se recusou a emprestar dinheiro a Portugal, abrindo uma crise que durou quarenta anos e que só a ditadura conseguiu suprimir, com o Exército, a polícia secreta e a censura. Mas ficou a tradição.
Num país pobre, sem uma economia privada desenvolvida, o sentimento que prevalece na escolha de profissão é a necessidade de segurança. Ora o Estado, se não falir, coisa que nunca se imagina, oferece confiança aos seus funcionários. E como seria de esperar, depois do “25 de Abril” literalmente milhões de portugueses arranjaram o seu cantinho no Estado ou nas suas várias ramificações. A dívida e o défice obrigam agora a mudar este modo de vida. Mas não se pode contar que uma classe social – no caso, a nossa muito velha classe média de Estado – se deixe estrangular passivamente. Abandonará os partidos do regime, provocará uma instabilidade permanente (que mais tarde ou mais cedo se arrisca a degenerar numa forma de autoritarismo) e resistirá em cada trincheira. O Tribunal Constitucional é hoje a trincheira principal, que a esquerda – fatalmente estatista – aplaude e apoia. Não custa compreender isto. O pináculo do funcionalismo partilha e defende a cultura e o ethos dos funcionários. Para ele, o resto do mundo não existe.»

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