sábado, 14 de junho de 2014

Mas contudo



Baseado, certamente, no preconceito que aponta a tendência para a inércia cultural de um povo pouco hábil em crescer por si, sempre subjugado pelas classes detentoras de um poder de extremismo segregacionista, impondo o servilismo da exploração, além do medo do inferno como única doutrina a aprender, para impedir rebeldias,  Vasco Pulido Valente na sua crónica “Metamorfoses” (Público, 7/6/14), mostra a pouca originalidade das classes letradas para as temáticas das suas obras ou dos seus protestos, colhendo no exterior a motivação para as suas reformas culturais e políticas.      
Tem razão, Pulido Valente, são certeiras as suas palavras, que se apoiam no estudo e na inteligência crítica.  Tais transformações nos trouxeram por ínvios caminhos aos tempos de uma actualidade ruidosa, que mamou glutonamente do maná que lhe caiu do céu, como merecido milagre das ingénuas mentes nunca libertas dos mitos salvadores. Somos um povo assim, com esses defeitos provenientes, certamente, do atraso que nos marcou.
E todavia, aquele povo descrito por Fernão Lopes, que defendeu a sua independência a unhas e a dentes, aquele povo descrito por Camões nos sofrimentos das suas batalhas, perpetradas pelos “barões assinalados”, aquele povo de navegadores que deram voltas ao mundo, faz parte de uma nação sui generis, simpática e ruidosa, que muitos nomes ilustres fabricou, com a chancela ou não do estrangeiro. Quando o Padre Vieira defende os índios ameríndios e combate os defeitos humanos da avidez e vaidades em formidáveis alegorias, só podemos sentir orgulho porque fomos pátria de tais buriladores da palavra, e do pensamento, como o foram os Eças, os Pessoas, como o são os Valentes do nosso quotidiano mediático.
Não basta isso contudo, para o nosso crédito como nação. Há uma dívida a ser paga, como outros, em outros tempos, o fizeram. O povo português merece o respeito alheio pelo seu significado na ordem do mundo. Deve merecê-lo, pagando a sua dívida. Só desse modo a metamorfose – não a do absurdo kafkiano, nem a do poético ovidiano, nem essas sobre que escreveu Pulido Valente, de sujeição evolutiva ao estrangeiro - mas a do real natural, da larva em borboleta – teria um significado pleno. De respeito próprio.

«Metamorfoses»
Vasco Pulido Valente  07/06/2014
«Os portugueses letrados não gostam do que são, nem de Portugal como ele é. Desde muito cedo, do século XVIII, que procuraram no iluminismo europeu modelos de pensamento e de política. Essa tendência para a imitação continuou até agora. Tudo se copiou: ideias, políticas, literatura, costumes. Claro que os modelos foram variando. No século XIX dominou a influência francesa. No princípio do século XX, a “reacção” religiosa e as ditaduras de Itália, de Espanha, da Alemanha e da Europa oriental. Depois do “25 de Abril”, apareceu, mas felizmente por pouco tempo, o marxismo académico de Paris, que levou a uma espécie de loucura sem precedentes conhecidos. Com os governos do PS, o país vogou entre o nada e coisa nenhuma, tentando mansamente varrer a tutela militar que a “revolução” nos deixara.
Vieram a seguir Cavaco e a “Europa”, e os portugueses encontraram de novo um destino que parecia razoável, equilibrado e à sua maneira glorioso: queriam começar a ser, ou julgavam que já eram, como os felizes nativos de um norte civilizado e rico. Nessa época longínqua – e ainda hoje –, a “Europa” e o que nela “se fazia” serviam de argumento em tudo ou para tudo. A horrível propaganda do “bom aluno” proclamava dia-a-dia sem um estremecimento a nossa dependência e subalternidade. Só que o dinheiro escorria e o parasitismo nacional imaginou que descobrira um sucedâneo da sopa do convento, inesgotável e desinteressado. O governo comprou aviões para ir consultar rapidamente os seus donos e a populaça andava contente e até vaidosa com a sua astúcia.
Ninguém nos disse que o mundo mudava à nossa volta e, principalmente, que vivíamos de uma dívida monstruosa e sempre crescente. A “globalização” e a decadência da Europa com o colapso da URSS não mereceram uma palavra aos poderes constituídos. Aqui, o entusiasmo continuava, com a ajuda do “euro” e da “Expo”, como se não houvesse amanhã. Infelizmente, o ajuste de contas acabou por nos cair em cima. E, de repente, o calão empresarial e financeiro americano entrou no dialecto da tribo, com uma artificialidade que dói. Os portugueses detestam a iniciativa, o empreendedorismo, a inovação. Execram a “disciplina financeira”. E não sabem o que é a industrialização, porque nunca verdadeiramente passaram por ela. Este fato (sem “c”) que à pressa nos vestiram não assenta bem. A chusma de reformadores que nos resolveu salvar fala para um vácuo. Nós não gostamos disto.»


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