Parte final da “Farsa de Inês Pereira”:
(Inês torna para Pêro Marques):
INÊS - Em tudo é boa a concrusão. Marido, aquele ermitão É um anjinho de Deus...
PÊRO - Corregê vós esses véus E ponde-vos em feição.
INÊS - Sabeis vós o que eu queria?
PÊRO - Que quereis, minha mulher?
INÊS - Que houvésseis por prazer De irmos lá em romaria.
PÊRO - Seja logo, sem deter
INÊS - Este caminho é comprido... Contai uma história, marido.
PÊRO - Bofá que me praz, mulher
INÊS - Passemos primeiro o rio. Descalçai-vos.
PÊRO - E pois como?
INÊS - E levar me-eis no ombro, Não me corte a madre o frio.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:
INÊS - Marido, assi me levade.
PÊRO - Ides à vossa vontade?
INÊS - Como estar no Paraíso!
PÊRO - Muito folgo eu com isso.
INÊS - Esperade ora, esperade! Olhai que lousas aquelas, pera poer as talhas nelas!
PÊRO - Quereis que as leve?
INÊS - Si. Uma aqui e outra aqui. Oh como folgo com elas! Cantemos, marido, quereis?
PÊRO - Eu não saberei entoar..
INÊS - Pois eu hei só de cantar e vós me respondereis cada vez que eu acabar: «Pois assi se fazem as cousas».
Canta Inês Pereira:
INÊS - «Marido cuco me levades e mais duas lousas.»
PÊRO - «Pois assi se fazem as cousas.»
INÊS - «Bem sabedes vós, marido, quanto vos amo. Sempre fostes percebido pera gamo. Carregado ides, noss'amo, Com duas lousas.»
PÊRO - «Pois assi se fazem as cousas»
INÊS - «Bem sabedes vós, marido, Quanto vos quero. Sempre fostes percebido pera cervo. Agora vos tomou o demo com duas lousas.»
PÊRO - «Pois assi se fazem as cousas.»
E assi se vão e se acaba o dito Auto.
PÊRO »
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O artigo de
Vasco Pulido Valente, do Público de 1/6 - «O estado da esquerda”, talvez pela referência à sapataria,
em que se tornou a pátria dos negócios dos espertos, pese embora as tristes
figuras que fazem, na luta não por ideais mas por capitais e outros interesses
que não são mais ocultos, mas em cujas artimanhas caímos todos, cucos enganados
por uns e outros, alombando com o peso das safadezas das Ineses Pereiras
aproveitadoras e ainda das “lousas” como as que ela faz o marido carregar, a
pretexto dos arranjos na casinha…
De facto, “sempre
fomos percebidos para gamos”. Quer governem uns quer governem outros, nós
somos os Pero Marques patuscos das cinderelas afortunadas que lutam apenas pela
sobrevivência própria. Tudo o resto são cantigas, entoadas com mais ou menos
melodia, e aí andamos nós, cucos amplamente carregados, à procura dos “Ermitães”
da nossa salvação.
O texto de
Vasco Pulido Valente:
O estado da esquerda
Tirando António Costa que mal abriu
a boca, o PS e a esquerda em geral têm dado um triste espectáculo da sua
verdadeira natureza, que às vezes chega a roçar e a entrar na pura obscenidade.
No PS, a gente de um lado e outro usa (com poucas variantes) a velha “língua de
pau” de 1975, que nos fez rir durante 30 anos. Ninguém fala de política: da
situação do mundo, da “Europa” ou sequer de Portugal. Ninguém fala da
estratégia conveniente ou aconselhável para o partido, mas nos méritos e
deméritos dos dois putativos candidatos, na “lealdade” e “gratidão” ao chefe ou
nos triunfos que Costa infalivelmente trará consigo. O que estas parlapatices
da hipocrisia, do oportunismo e da má-fé podem interessar ao cidadão comum é
coisa que não interessa aos “notáveis” que a televisão convida ou escrevem
doutoralmente para um jornal qualquer.
Nunca
a “classe partidária” mostrou com maior clareza a sua vacuidade e o seu
egoísmo. Trata sempre a situação do país como se tratasse do futuro de uma
fábrica de sapatos: será que a baixa das vendas é irreversível ou temporária?
Será que a concorrência vai aproveitar a oportunidade? Será que os lucros não
são suficientes para investir e alargar o mercado? Não seria bom “lançar” um
novo modelo, para aproveitar a moda? E não seria bom mudar de director? Sem o
pormenor irrelevante dos “sapatos”, que diferença se consegue encontrar entre essa
benemérita fábrica e um PS, que pretende reformar a “Europa” e salvar Portugal?
Nenhuma ou tão ténue que não se distingue. Os campeões do socialismo não passam
de uma empresa vulgar, com exclusivos critérios comerciais, tal qual como as
gaba o famigerado “neo-liberalismo”.
Fica
ainda a poeira da extrema-esquerda. A extrema-esquerda não sabe o que há-de
fazer à vida. Gostava, como um adolescente, de ser rica e “famosa”, e de
arranjar um namorado. Mas nada infelizmente a recomenda, excepto uma condenação
genuína do estado do país. Só que a terapêutica que se propõe aplicar mataria o
doente e 80 por cento dos portugueses percebem isso muito bem. Claro que muitas
pessoas do Bloco ou do PCP, como o simpático e confuso João Semedo, merecem a
nossa estima. Mas, como se sabe, a mistura entre os bons sentimentos e o
espírito de missão tende a criar fanáticos; e o fanatismo leva rapidamente à
intolerância e à intriga. O buraco de víboras em que se tornou o radicalismo
português, além de paralisar o PS e o regime, não serve para nada e envenena o
ar.
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