A frase do sociólogo e filósofo francês
Raymond Aron (1905/1983), encimando a
última página do Público de 30/5/2014 - “Porque se representa a verdade nua? Para que cada um a vista
como lhe pareça”- serve bem de epígrafe ao revestimento da mesma página –
os artigos de Mário Soares e de Vasco Pulido Valente, respectivamente, «Resposta
ao povo» e «As
desventuras do PS»: de orientação laudatória o primeiro,
em torno do povo e dos servidores deste e do seu partido – no caso presente,
António Costa – e incriminatório da liderança actual do PS – Seguro; o
segundo, de orientação simultaneamente historiográfica e crítica, não
poupando Gregos nem Troianos, com a
habitual justeza e clarividência analítica do seu autor.
Eis o
primeiro:
«Resposta ao povo»
Por Mário
Soares
«O principal das eleições do dia 25 de Maio foi a réplica que
partiu do povo português: a manifesta rejeição que demonstrou contra os
partidos da coligação mas também uma preocupante indiferença face ao partido
liderado por António José Seguro.
Faltou, neste caso, uma corrente de confiança dos eleitores em
relação a uma liderança que, ao longo dos tempos, mal se tem identificado com a
própria identidade do PS. O excesso de fulanização do candidato a
primeiro-ministro não convenceu o eleitorado. O secretário-geral do PS
(referência que quase sempre procura evitar) deve, pois, saber retirar as
consequências da falta de adesão dos eleitores a um estilo nada identificado
com o povo. Daí a convicção tão generalizada que com o partido de Seguro — que a
direita e o Presidente da República e mesmo a troika não desistem de procurar captar —
o povo não pode contar.
Por isso disse que a “grande vitória” anunciada por Seguro foi
uma vitória de Pirro. Que não pode deixar de desagradar aos socialistas a sério
que tenham uma ambição para lá de ganhar eleições — a ambição de dar a Portugal
uma alternativa de esquerda, coerente e credível. Que tristeza, se assim não
for, para um partido com as responsabilidades do PS. Impõe-se, mais do que
nunca, uma política corajosa que faça a ruptura com a direita e com as
políticas da direita.
Ainda bem que António Costa resolveu disponibilizar-se e que
avançou para se bater pelo PS. Para que o PS seja um partido de esquerda e se
bata em favor do povo contra a direita que o tem oprimido. Foi um acto de
grande coragem que faz esquecer as hesitações do passado.
Felicito-o e apoio-o. Acho que nos vai fazer permitir que o
nosso querido PS, do punho erguido à esquerda e dos socialistas que não têm
medo de ser tratados por camaradas, se mobilize para construir um futuro
diferente.
António Costa é uma nova esperança para todo o povo que tem
sofrido tanto com este Governo. E basta isso para que todos nos disponhamos a
lutar ao lado dele. É o que farei.
O meu, é apenas um voto entre todos os socialistas. Os quais
devem, sem hesitações, ser chamados, no mais curto prazo, a pronunciar-se de
forma aberta e democrática, em congresso, nas escolhas que o partido precisa de
fazer. A natureza livre do PS sempre o levou a nunca resolver os problemas
políticos na secretaria. Quem queira honrar a tradição republicana do PS não
pode proceder de outro modo. Assim o desejo e assim o espero.»
Eis o segundo:
«As desventuras do PS»
«O primeiro
erro de Seguro foi não ter denunciado e recusado a herança de Sócrates.
Evadindo as responsabilidades do
PS na catástrofe e não explicando aos portugueses a posição em que por sua
culpa estavam, o partido ficou naturalmente reduzido a desaprovar a política do
Governo, como se ela fosse um puro erro ou uma simples manifestação de
perversidade ideológica (o célebre “neoliberalismo”).
Argumentos que não lhe permitiam
ter uma atitude crítica equilibrada. Em S. Bento, anunciava sempre crimes sem
desculpa e ameaçava sempre com a iminente indignação do povo. Pior ainda: ao
lado dele, ao mesmo tempo fora e dentro, o dr. Mário Soares organizou uma
campanha de radicalismo e ódio, que impedia qualquer tentativa do PS para
encontrar entendimentos parciais com o Governo ou moderar as loucuras que ele
desde o princípio cometeu.
Por outras palavras, Seguro
acabou por ser empurrado para um beco sem saída, que não o deixava fazer nada.
Excepto, claro, dizer “não” ao Governo, com uma persistência e uma obstinação
que muitas vezes excederam o razoável. Mas, como não podia dizer “não” à sra.
Merkel, lá se resignou a seguir Passos Coelho, disfarçando a sua essencial
duplicidade com uma retórica sem sentido e as promessas falsas do costume. O
“tratado orçamental” pôs fim a essa farsa. Com troika ou
sem troika, o “tratado orçamental”, que o PS obedientemente
assinou, estabelece regras, que, sem dúvida, irão manter por muito tempo a pior
austeridade, com que este Governo nos carregou e espremeu. No fim, amarrado e
mudo, Seguro passeou o seu sorriso de seminarista por Portugal inteiro,
garantindo vitórias em que pouca gente acreditava ou acreditava por piedade.»
Claro que a substituição de
Seguro por António Costa não vai operar o milagre de tornar o PS num partido
inteligente e firme com uma visão realista das coisas. A gente é, em grosso, a
mesma, educada da mesma maneira, com os mesmos vícios da política de café.
Basta ouvir as polémicas das duas facções, invariavelmente dominadas pelo
objectivo pueril de distribuir as culpas da “cisão” ou de exibir uma
camaradagem pública entre indivíduos que se odeiam. A súbita aparição de Costa
não irá varrer com facilidade este antro de estupidez, de ambição e de intriga.
Mas Costa, pelo menos, está até certo ponto livre de compromissos com Sócrates,
com Seguro e com as raras “notabilidades” do partido e percebe muito bem o
mundo à volta dele.
O artigo de Mário Soares quer pelo
título, denunciante de majestática pretensão a repor importâncias teocráticas onde
não passa de comparsa figurante na igualdade democrática do seu pioneirismo
fundador, quer por um conteúdo de cinismo e contradição, abalroando um colega
de carisma pouco diferente do seu, afinal, que sempre se pautou pelo
monocórdico de enunciados básicos, segundo as suas conveniências, e mais uma
vez, para atingir os seus fins, no ódio contra a direita, se não coíbe de
pretender uma coligação radical com a esquerda, atraiçoando o “colega” e
atraiçoando o país, em imagem de degradante debilidade mental, que deve
repugnar a António Costa na falsa adulação de que certamente tem consciência, a
não deixar-se arrastar pela ambição do cargo – o artigo de Mário Soares merece
a classificação de lixo como a que nos dão as empresas de avaliação do ranking
económico.
O artigo de Vasco Pulido Valente
constitui a análise certeira, com realismo e sem ilusão, do “quod erat
demonstrandum” de racionalidade brilhante.
Mas a verdade representa-se nua, diz
o filósofo francês, quando, evoluídos que somos, nos seja indiferente essa ou
outra qualquer. Vistamo-la, pois, com as vestes que melhor quadrem a cada um de
nós.
Verdadeiro? Falso? Que importa?
«Come chocolates, pequena!»
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