É verdade o que nos diz João César
das Neves, no DN de 16/6. Sistemofobia é como se designa o seu artigo que
se insurge contra a viragem do sistema, coisa bem do nosso agrado, habituados que estamos à tradição das voltinhas
da nossa imortalidade festiva:
Ó Vira, que vira
E torna a virar
As voltas do Vira
São boas de dar.
E torna a virar
As voltas do Vira
São boas de dar.
E enquanto lia o artigo de César das Neves, numa esplanada soalheira, passou
uma carrinha com altifalante que confirmava o desejo de mudança – não sei se do
sistema, mas seguramente do governo, com a proposta de se candidatar a esse
governo para a reviravolta. Era o convite para a manifestação de sábado com renovada
energia, resultante do bom resultado que a nossa esquerda alcançou nas europeias, por via das
tais voltinhas boas de dar da nossa cantiguinha felizmente imorredoira.
Um texto sensato, o de César das Neves, mas falseando a verdade científica
da lei de Lavoisier que diz que tudo se transforma, e é por isso que colaboramos
diligentemente na reciclagem dos lixos, para darmos um sentido positivo à questão
da purificação dos eventos naturais.
E enquanto a carrinha vai rodando e prometendo e repassando, numa mesa ao meu
lado um sujeito fala nas análises que tem que fazer, e no problema de saúde que
exigiu as análises, e no laboratório que um amigo aconselha que seja outro, e
vira e volta, e retoma análises, problema de saúde, localização do laboratório
para as análises. Mas parece que não se decidira, quando se ergueu, para ir
aprofundar noutro lugar provavelmente junto de outro amigo. Nada se transforma,
tem razão César das Neves, e não são só os sistemas criados, que podem ser,
contudo, melhorados. Mas para isso teríamos que ter outras escolas, e estamos demasiado envelhecidos. Continuemos, o nosso
sistema não deve poder ser corrigido, por mais voltas que dê.
O artigo de João César das Neves:
Sistemofobia
“É
preciso mudar o sistema!" A cada passo encontramos quem anseie
por um novo regime, seja político ou económico, educativo, judicial e outros. O
motivo é evidente: os problemas são graves, com causas profundas e estruturais,
que resistem a medidas esparsas. Daí muitas pessoas bem intencionadas deduzirem
a inevitabilidade da troca de sistema.
Infelizmente
não entendem que um sistema, precisamente por ser profundo e estrutural, não
está à escolha. O sistema evolui, corrige-se, não se substitui; e só melhoramos
aquilo que respeitamos. Basta consultar a longa história das revoluções para o
entender. Ouve-se falar em mudar de sistema político desde sempre, de sistema
económico há séculos, de sistema educativo, judicial e outros há décadas. A
verdade é que a esmagadora maioria dessas conversas nunca passa disso mesmo,
conversa. Apesar de muito lamentado, criticado e enxovalhado, o sistema que
temos continua a ser aquilo que é, e a servir-nos como sempre serviu.
Porque
o sistema é aquilo que nos serve. Mal ou bem, não há outro. Tudo o que temos e
somos devemo-lo ao sistema. Mergulhados em boas intenções, os críticos não
notam a sua enorme ingratidão, pois só sobrevivem e desenvolvem graças ao
regime que tanto desprezam. Até os meios que usam para o criticar e subverter
lhes são dados pelo próprio sistema. A frase apócrifa de Lenine, "os capitalistas
vendem-nos a corda com que os enforcamos" manifesta ironia, mas também
dependência.
Pior,
porém, são os raros casos em que a conversa se efectiva e o sistema é mesmo
trocado. Aí, em geral, chega-se à conclusão de que, além dos defeitos, o odiado
regime tinha também inúmeras vantagens, que ruíram juntamente com os problemas.
Além disso, fazer um sistema novo é tarefa de povos e séculos, não de classes
ou partidos, quanto mais de génios. A história está cheia de revoluções
falhadas, que destruíram muito, antes de admitirem o falhanço, e de um punhado
de revoluções conseguidas, que destruíram muito mais até se constatarem piores
que o anterior. As poucas revoluções bem-sucedidas - como a Gloriosa, Americana
ou de Abril - foram as que, apesar da retórica subversiva, se limitaram a
corrigir defeitos num sistema que continuou.
No
fundo, a estrutura social, política ou económica é como o corpo humano. Muitos
lamentam o seu organismo, por doenças, deficiências ou opções estéticas, mas
cada um tem o corpo que tem. Tudo o que é, faz e possui deve-o a ele, e não lhe
é dado conseguir outro. Pode tratá-lo bem ou mal, melhorá-lo ou destruí-lo, mas
nunca trocá-lo. Esta comparação parece inválida pois o nosso corpo é natural e
irredutível, enquanto a sociedade, sendo construção artificial, pode ser mudada
à vontade. Esta convicção é uma das ilusões mais típicas da arrogância europeia
desde o Iluminismo. Até à Idade Contemporânea todas as culturas respeitaram a
sua civilização, comunidade ou tribo como originante e sagrada. Ela podia ser
melhorada ou degradada, mas tinha sempre de ser honrada como nossa origem,
viveiro e natureza. Sem dúvida que a atitude mais interventiva e exigente dos
últimos dois séculos nos trouxe grandes melhorias, com importantes
aperfeiçoamentos aos sistemas. Mas também criou os maiores desastres da
história que, sempre em nome de sistemas ideais, várias vezes quase eliminaram
a humanidade.
Todos
melhoramos o corpo com medicina, próteses, cosmética e alimentação, na condição
de o manter. Com o sistema socioeconómico é igual. No caso extremo, o tão
vilipendiado capitalismo é rejeitado desde que nasceu, porque a sua inigualável
prosperidade vem junto com desigualdades, crises e outras malfeitorias. As
propostas de sistema alternativo são legião. A sua única vantagem efectiva
acabou por ser os contributos que essas ideias deram à evolução do capitalismo,
que continua a ser o sistema que temos e criticamos.
Esta
discussão é interessante mas nada tem que ver com a situação portuguesa. Nós
apanhámos uma bebedeira de dívida e, ao sofrer a ressaca, tentamos acusar o
sistema pelos nossos erros.»
JOÃO CÉSAR DAS NEVES Professor
universitário. 16 junho 2014
naohaalmocosgratis@ucp.pt
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