Publicou Salles da Fonseca no seu “A Bem da Nação”, para
festejar os simbólicos 800 anos da sua pretensa formação, o texto do Testamento
de Afonso II, com uma introdução de Pedro Aguiar Pinto.
Foi um reviver de
emoções, pois houve anos em que um ou outro manual de estudo literário continha
o documento de 1214, como primeiro escrito em língua portuguesa, e foi possível
transmiti-lo aos alunos, como curiosidade, nas sequências explicativas das
origens do português. Por isso, foi com grande prazer que reli o documento,
para o qual fiz breve comentário que transcrevo, e igualmente o de A. Palhinha
Machado, como lição de história de muito interesse, sobre D. Afonso II,
finalizando com o excerto de António Ferreira, da sua “Carta a Pedro
de Andrade Caminha”, exortando este a só escrever em português. Realmente,
António Ferreira foi o único poeta renascentista que só escreveu em português.
O texto de Pedro Aguiar Pinto:
800 ANOS DA LÍNGUA PORTUGUESA
TESTAMENTO DE D. AFONSO II –
27 DE JUNHO DE 1214
«Apesar de ser rei e soberano absoluto, D. Afonso II,
em 27 de Junho de 1214, escreveu um texto que não é um Decreto. Ele obviamente
não disse: “Decreto hoje fazer esta língua. E fica feita.” Não, D. Afonso II
escreveu apenas o seu testamento; limitou-se a usar uma língua que obviamente
já existia e já era usada pelo seu povo, antes de ele a usar também. O
simbolismo deste momento e desse marco é que é a primeira vez que isso foi
feito. Nunca antes dele, um Rei, um Estado, um soberano usara a nossa língua,
escrevera oficialmente a nossa língua.
Existem dois exemplares deste testamento: a cópia que
foi enviada ao arcebispo de Braga e aquela que foi enviada ao arcebispo de Santiago.»
linha 1
«En'o nome de Deus. Eu
rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temëte
o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier raina dona
Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo meu reino fiz mia mãda
p(er) q(ue) de
linha 2
pos mia morte mia molier
e me(us) filios e meu reino e me(us) uassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue)
De(us) mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. P(ri)meiram(en)te mãdo q(ue)
meu filio infante don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino
enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este for morto sen semmel, o maior filio q(ue)
ouuer da raina dona Orraca agia o reino entegram(en)te e en paz. E ssi filio
barõ nõ ouuermos, a maior filia q(ue) ouuuermos agia'o ...»
O meu
comentário:
«São os
800 anos da língua portuguesa, a contar desse testamento que as selectas de
estudo antigas contêm. Tal documento pressupõe que a língua portuguesa é mais
antiga ainda, como revelam termos em romanço galego-português contidos em
documentos em latim bárbaro. Mas é maravilhoso este regresso às origens. »
O
comentário de apmachado a 27 de Junho de 2014:
«D. Afonso II é um dos reis que a nossa historiografia mais
maltratou. À nascença foi fadado, não com espírito guerreiro (nem sequer foi
visto na conquista de Alcácer do Sal), mas com um raro espírito organizador.
Foi dos primeiros reis europeus a ter uma chancelaria eficiente (foram seus
Chanceleres os Juliões da aristocracia de Lisboa, donde saiu Pedro Julião),
combateu fortemente a senhorialização do Reino contra as suas irmãs (e o seu
ex-cunhado de Leão, mais os ricos homens de Entre-Douro-e-Minho e alguns
bispos) que agitavam um dos vários testamentos de seu pai D. Sancho I.
Contrariamente aos seus pai e avô, teve um reinado breve, mas fundamental para
a consolidação do Reino. Não conseguiu seu filho D. Sancho II opor-se com igual
sucesso às pressões senhoriais do partido de suas tias. A guerra civil que
estalou quase varreu de vez o trabalho de D. Afonso II, um Grande Rei. É o seu
filho segundo, D. Afonso III, que com coragem e com astúcia vai reerguer o
edifício governativo que a guerra civil tinha destruído. Se o partido da
senhorialização tivesse prevalecido, dificilmente o Reino teria resistido à
força centrípeta de Leão e Castela.»
Excerto da Carta de António Ferreira a Pedro de Andrade Caminha:
«… Floreça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já, onde for,
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se tèqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor.
Mas tu farás que os que a mal julgaram
E inda as estranhas línguas mais desejam
Confessem cedo, ant’ela, quanto erraram.
E os que depois de nós vierem vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Porque eles pera os outros assi sejam…»
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