Lembrei-me da primeira estrofe do poema “Camões”
de Almeida Garrett ao ler o artigo de Vasco Pulido Valente “Uma
Agitação Mental” (Público, 30/11/14) que transcreve a observação
bem meditada de José Sócrates a respeito da Dignidade paralela à Liberdade
ou vice-versa: “Só deixa de ser livre quem perde a Dignidade”.
Foi só por uma questão de rima com “Saudade”,
com que começa a estrofe garrettiana, e sua definição, recheada de expressões antitéticas,
que bem se poderiam aplicar ao aforismo de Sócrates, embora este não o
explicite, que me veio à ideia o início dessa estrofe. Vejamos:
«Saudade! Gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
Mas dor que tem prazeres - Saudade!
A mim, repito, pareceu-me que as mesmas antíteses se
poderiam aplicar à Dignidade e à Liberdade, abstracções sinónimas
na asserção socrática, que foram obtidas com gostosura mas que sempre supus amarga, o pungir dos tais espinhos mas delicioso, a dor embora com seus
prazeres, conquistadas nos idos de 74, com cravos e não rosas no cano das
espingardas (e por isso menos pungente na altura) a garantir a conquista da
Liberdade lusitana em Dignidade (democrática) ou a da Dignidade lusitana em
Liberdade (igualmente democrática).
A Dignidade foi então sujeita a uma revisão, tal como
se fez com a Liberdade, que cada um seguiu com os princípios éticos próprios,
mas sempre em busca de outra rima da Saudade - neste caso, a Felicidade, e tendo
sempre em vista a rima com a Amizade, sinónima de companheirismo, e por isso
proporcionando inegáveis prazeres de corpo e alma. Não vou negar esses prazeres
da Dignidade de Sócrates, que se me assemelham aos da Respeitabilidade de
outros comparsas, defendida com unhas e dentes nas liberdades que a Democracia
proporcionou. E assim temos vivido, por conta da preservação da Dignidade dos
homens livres, segundo o dizem, com alguns espinhos pelo meio, mas
compartilhados com os muitos prazeres que a vida fornece aos que sabem definir
a Liberdade como motivação para a Dignidade, ou vice-versa. Que são as deles.
Mas a justa explicação dos espinhos vem, naturalmente,
no artigo de Vasco Pulido Valente:
Uma
agitação mental
30/11/2014
De
Évora, Sócrates disse ao jornal “Expresso” que “se sentia mais livre do que
nunca”. Isto à primeira vista parece incompreensível, quando ele está detido
numa cadeia de alta segurança. Mas Sócrates vai explicando que “só deixa de
ser livre quem perde a dignidade” e que, aparentemente, ele não perdeu a
dele.
Alguém lhe terá de explicar que não foi preso pela
PIDE, a KGB ou a STASI por razões políticas. E que, pelo contrário, a
Judiciária e um tribunal civil independente o puseram em Évora por suspeitas de
que ele é um criminoso. Cá fora não o espera a apoteose de um herói por uma
causa qualquer. Se nada se provar contra ele, encontrará um grupo de amigos,
com certeza um pouco embaraçados, que lamentarão o equívoco como lamentam hoje
um erro da justiça.
Infelizmente, no meio da excitação que o episódio
provocou (e também a condenação de Duarte Lima, a falência do BES e os vistos
“Gold”), algumas pessoas acabaram por se convencer da morte iminente do regime.
Rui Rio, por exemplo, um homem com reputação de inteligência e bom senso,
anunciou agora que “em 1974 caiu um regime”; que “o actual regime já fez 40 anos”
e “não é eterno”; e, sobretudo, que “se todos os regimes tiveram um fim, este
também terá”. Não sei se Rui Rio se tornou um presidencialista e suspira pelo
dia em que voltará de Colombey, perante o regozijo do povo. Mas sei que existe
um presidente da República, um exército que lhe obedece, um governo e as suas
polícias, juízes nos tribunais e meia dúzia de partidos com dezenas de milhares
de militantes. Não reconheço neste arranjo das coisas uma situação
“pré-revolucionária”.
O que reconheço é a deturpação das legislativas de
Outubro (ou de Setembro). Sócrates foi promovido a Diabo pela direita, como
fautor da crise e da “austeridade” e, desde a semana passada, como detido 44 da
cadeia de Évora. E, por outro lado, a esquerda anda a promover desde 2011 o grande
Diabo colectivo da finança internacional e nacional, os patrões, os fanáticos
do “neo-liberalismo” e até, indiscriminadamente, “os ricos”. No fundo, a guerra
que se prepara será a guerra entre estes dois Diabos: o Diabo da Esquerda,
talvez Ricardo Salgado, e o Diabo da Direita, inevitavelmente Sócrates. Lamento
o esforço de Passos Coelho e de António Costa. Mas gostava de lhes lembrar que,
mal ou bem, a mesma gente, nomeada por eles, se irá sentar na Assembleia da
República.
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