sábado, 27 de dezembro de 2014

Nem no fascismo…



Sempre se disse que o silêncio, sendo de ouro, deve ser preferido à expressão oral, que só merece desprezível prata como paralelismo, uma prata que escurece com o tempo  e requer  solarine e pano para brilhar como outros metais vulgares. Não penso assim. Sempre admirei os dadores da palavra oral, exactamente por imperícia pessoal desse dom,  entre os outros que também me falham. Por isso sempre admirei o meu pai, que o tinha, e todos os actuais que o têm, entre os quais José Sócrates. É certo que, descrente deste e dos seus argumentos de expressão acusatoriamente exaltada e defensivamente patética, mudava para o Dr. Marcelo da TVI que ocorria ao mesmo tempo que a entrevista no 1º Canal a Sócrates, um homem pleno de experiências de vida e de estudos, com algumas passagens nestes pouco esclarecidas, mas nem por isso menos importantes no seu singrar em acção e palavras.
Tudo isto, para citar o artigo de João Miguel Tavares (Público, 18/12/14) – «O Direito inalienável de falar», respondendo ao desafio sobre se lhe era indiferente o obstáculo à expressão pública imposto a Sócrates. É evidente que a sua resposta foi negativa, mas começou por afirmar que constituíra pura inverdade a asserção malevolente do advogado de Sócrates, João Araújo, na sua linha discursiva, copiada do seu constituinte Sócrates, de autovitimização e  de hetero-acusação. Assim, pois, «no plano da liberdade de expressão, que é certamente o mais importante, não faz qualquer sentido que José Sócrates seja impedido de falar, ainda que preso. As ditaduras encarceram os corpos e calam as vozes. As democracias prendem pessoas mas não lhes roubam a voz ou o direito a queixarem-se.»

Donde se segue que, afirma João Miguel Tavares, «Como facilmente imaginam, eu dificilmente acreditarei algum dia numa palavra que saia da boca de José Sócrates. Mas não me passa pela cabeça impedi-lo de dizer o que quiser.»

É certo que também se apontam outros eventos reprováveis a respeito deste caso: ontem, por exemplo, os noticiários mostraram a indignação do pai dos Serviços Nacionais de Saúde, António Arnaut, que viu devolvido um seu livro enviado carinhosamente a Sócrates, nesta quadra efusiva do Natal, e afirmando que nem na ditadura casos destes eram possíveis. Segue-se que já há frases a favor da existência de humanidade nos outros tempos. Mas deviam lembrar-se do silêncio como de ouro, embora não para os amantes da democracia.

O direito inalienável de falar
João Miguel Tavares
18/12/14
Na caixa de comentários ao meu texto de terça-feira, um leitor discordante deixou este desafio: “E já agora... qual é o comentário de JMT à proibição de entrevistas imposta a José Sócrates? Não o incomoda?” Como imaginam, sou incapaz de dizer “não” a um bom repto, sobretudo quando está em causa o meu tema favorito.
A resposta directa é: incomoda. Mas convém começar por fazer um esclarecimento prévio, porque o modo como a proibição foi transmitida à comunicação social pelo advogado João Araújo está muito longe de ser exacta. Disse ele: “Fica patente que a decisão de condenar o meu constituinte à prisão foi tomada não só para investigar, mas também para o calar.” Louve-se o efeito retórico, mas condene-se a falta de rigor. Ninguém proibiu Sócrates de falar – coisa que, aliás, ele já fez abundantemente na primeira semana, através da sua colorida correspondência do cárcere. Aquilo que o juiz Carlos Alexandre proibiu, sim, foi uma entrevista presencial – repito: presencial – a partir da cadeia de Évora. Que eu saiba, nada proíbe José Sócrates de dar entrevistas por escrito, enviar correspondência para as redacções ou falar ao telefone com um jornalista, como já falou há três semanas com o Expresso.
Feito o necessário esclarecimento, convém, ainda assim, distinguir dois planos. O primeiro tem que ver com a logística dos serviços prisionais e a necessária igualdade de tratamento dos presos. Se batesse à porta da prisão de Évora uma qualquer estação de televisão a querer falar com o ex-primeiro-ministro, não me pareceria razoável exigir aos serviços que reservassem uma sala simpática, acomodassem toda a equipa técnica e encontrassem um décor devidamente prisional para gravar uma entrevista supimpa. Neste plano, puramente logístico, a nega do juiz pode fazer sentido. Sócrates não deve ter privilégios que são negados a outros.
Mas no plano da liberdade de expressão, que é certamente o mais importante, não faz qualquer sentido que José Sócrates seja impedido de falar, ainda que preso. As ditaduras encarceram os corpos e calam as vozes. As democracias prendem pessoas mas não lhes roubam a voz ou o direito a queixarem-se. Uma pessoa razoável admite com certeza que Sócrates poderia perturbar o inquérito se não ficasse em prisão preventiva, mas dificilmente aceitará que aquilo que ele possa dizer numa entrevista feita a partir da prisão vá prejudicar a recolha de provas por parte da justiça. Esteja Sócrates em prisão preventiva ou já condenado e com sentença transitada em julgado, ele mantém o direito inalienável de falar. Se alguém que é acusado tem direito ao silêncio, também terá certamente o direito à fala.
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Donde, se a entrevista ao Expresso fosse dada no intervalo de tempo destinado às visitas, e não envolvendo outra logística além de um simples gravador, percebo mal que ela tenha sido recusada pelo juiz Carlos Alexandre. Até porque com o desgraçado segredo de justiça que temos, impor o silêncio a José Sócrates dificulta a defesa do seu bom-nome no espaço público, que obviamente está posto em causa e é território de fervoroso debate. Não me parece que esse seja um direito que lhe possa ser retirado – aí, sim, seria atribuir um poder manifestamente excessivo aos guardas. Como facilmente imaginam, eu dificilmente acreditarei algum dia numa palavra que saia da boca de José Sócrates. Mas não me passa pela cabeça impedi-lo de dizer o que quiser.

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