Sempre se disse que o silêncio, sendo
de ouro, deve ser preferido à expressão oral, que só merece desprezível prata como
paralelismo, uma prata que escurece com o tempo e requer
solarine e pano para brilhar como outros metais vulgares. Não penso
assim. Sempre admirei os dadores da palavra oral, exactamente por imperícia pessoal
desse dom, entre os outros que também me
falham. Por isso sempre admirei o meu pai, que o tinha, e todos os actuais que
o têm, entre os quais José Sócrates. É certo que, descrente deste e dos seus
argumentos de expressão acusatoriamente exaltada e defensivamente patética,
mudava para o Dr. Marcelo da TVI que ocorria ao mesmo tempo que a entrevista no
1º Canal a Sócrates, um homem pleno de experiências de vida e de estudos, com
algumas passagens nestes pouco esclarecidas, mas nem por isso menos importantes
no seu singrar em acção e palavras.
Tudo isto, para citar o artigo de João Miguel
Tavares (Público, 18/12/14) – «O Direito inalienável de falar»,
respondendo ao desafio sobre se lhe era indiferente o obstáculo à expressão
pública imposto a Sócrates. É evidente que a sua resposta foi negativa, mas
começou por afirmar que constituíra pura inverdade a asserção malevolente do
advogado de Sócrates, João Araújo, na sua linha discursiva, copiada do seu
constituinte Sócrates, de autovitimização e de hetero-acusação. Assim, pois, «no
plano da liberdade de expressão, que é certamente o mais importante, não faz
qualquer sentido que José Sócrates seja impedido de falar, ainda que preso. As
ditaduras encarceram os corpos e calam as vozes. As democracias prendem pessoas
mas não lhes roubam a voz ou o direito a queixarem-se.»
Donde se segue que, afirma João
Miguel Tavares, «Como facilmente imaginam, eu dificilmente acreditarei algum
dia numa palavra que saia da boca de José Sócrates. Mas não me passa pela
cabeça impedi-lo de dizer o que quiser.»
É certo que também se apontam outros eventos reprováveis
a respeito deste caso: ontem, por exemplo, os noticiários mostraram a indignação
do pai dos Serviços Nacionais de Saúde, António Arnaut, que viu devolvido um
seu livro enviado carinhosamente a Sócrates, nesta quadra efusiva do Natal, e
afirmando que nem na ditadura casos destes eram possíveis. Segue-se que já há frases
a favor da existência de humanidade nos outros tempos. Mas deviam lembrar-se do
silêncio como de ouro, embora não para os amantes da democracia.
João
Miguel Tavares
18/12/14
Na
caixa de comentários ao meu texto de terça-feira, um
leitor discordante deixou este desafio: “E já agora... qual é o comentário de
JMT à proibição de entrevistas imposta a José Sócrates? Não o incomoda?” Como
imaginam, sou incapaz de dizer “não” a um bom repto, sobretudo quando está em
causa o meu tema favorito.
A
resposta directa é: incomoda. Mas convém começar por fazer um esclarecimento
prévio, porque o modo como a proibição foi transmitida à comunicação social
pelo advogado João Araújo está muito longe de ser exacta. Disse ele: “Fica
patente que a decisão de condenar o meu constituinte à prisão foi tomada não só
para investigar, mas também para o calar.” Louve-se o efeito retórico, mas
condene-se a falta de rigor. Ninguém proibiu Sócrates de falar – coisa que,
aliás, ele já fez abundantemente na primeira semana, através da sua colorida
correspondência do cárcere. Aquilo que o juiz Carlos Alexandre proibiu, sim,
foi uma entrevista presencial – repito: presencial – a partir da cadeia de
Évora. Que eu saiba, nada proíbe José Sócrates de dar entrevistas por escrito,
enviar correspondência para as redacções ou falar ao telefone com um
jornalista, como já falou há três semanas com o Expresso.
Feito
o necessário esclarecimento, convém, ainda assim, distinguir dois planos. O
primeiro tem que ver com a logística dos serviços prisionais e a
necessária igualdade de tratamento dos presos. Se batesse à porta da prisão de
Évora uma qualquer estação de televisão a querer falar com o
ex-primeiro-ministro, não me pareceria razoável exigir aos serviços que
reservassem uma sala simpática, acomodassem toda a equipa técnica e
encontrassem um décor devidamente prisional para gravar uma entrevista supimpa.
Neste plano, puramente logístico, a nega do juiz pode fazer sentido. Sócrates
não deve ter privilégios que são negados a outros.
Mas
no plano da liberdade de expressão, que é certamente o mais importante, não faz
qualquer sentido que José Sócrates seja impedido de falar, ainda que preso. As
ditaduras encarceram os corpos e calam as vozes. As democracias prendem pessoas
mas não lhes roubam a voz ou o direito a queixarem-se. Uma pessoa razoável
admite com certeza que Sócrates poderia perturbar o inquérito se não ficasse em
prisão preventiva, mas dificilmente aceitará que aquilo que ele possa dizer
numa entrevista feita a partir da prisão vá prejudicar a recolha de provas por
parte da justiça. Esteja Sócrates em prisão preventiva ou já condenado e com
sentença transitada em julgado, ele mantém o direito inalienável de falar. Se
alguém que é acusado tem direito ao silêncio, também terá certamente o direito
à fala.
***
Donde,
se a entrevista ao Expresso fosse dada no intervalo de tempo destinado às
visitas, e não envolvendo outra logística além de um simples gravador, percebo
mal que ela tenha sido recusada pelo juiz Carlos Alexandre. Até porque com o
desgraçado segredo de justiça que temos, impor o silêncio a José Sócrates
dificulta a defesa do seu bom-nome no espaço público, que obviamente está posto
em causa e é território de fervoroso debate. Não me parece que esse seja um
direito que lhe possa ser retirado – aí, sim, seria atribuir um poder
manifestamente excessivo aos guardas. Como facilmente imaginam, eu dificilmente
acreditarei algum dia numa palavra que saia da boca de José Sócrates. Mas não
me passa pela cabeça impedi-lo de dizer o que quiser.
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