Um
livro forte. Um livro evasivo, em suspense, que ora vai desvendando, ora
vai recapitulando, entremeado de
pensamentos filosóficos a apoiar o narrado acerca das várias heroínas duma
história de mulheres e de homens instalados numa aldeia distante do mundo
citadino. Um momento fulcral – uma borrasca infernal provocando cheias com
destruição e morte, significando, num enredo quase se diria policial, o
mistério de um nascimento e simultaneamente a criação de um mito de santidade
de uma dessas figuras femininas – Isabel ou Luzia de Siracusa - criado
propositadamente por uma mulher frustrada, vingativa e de conceito antiquado
sobre a honra na mulher – Adelaide, mãe daquela. Uma leprosaria extinta, onde permanecem duas
mulheres deformadas, caras e corpos destruídos, mas com o seu papel nesse nascimento que só mais tarde se
decifrará, embora seja focado logo no começo da acção, como notícia trazida por
Leta Mirita, e retomado aqui e ali, na progressão ou recuo da efabulação. Uma
aldeia onde se passam as circunstâncias mais ou menos tenebrosas, mais ou menos
burlescas de uma acção descrita com extrema perícia e riqueza estilística e de
pensamento, de um escritor que se afirma como uma promessa no horizonte das
letras pátrias, que mesmo José Pacheco Pereira lerá sem repulsa, ele que troca
toda a modernidade literária pela leitura dos clássicos. Com o tempo, este
poderá sê-lo também. «Terra de Milagres», assim se chama este primeiro
romance de João Felgar, nascido em Moçambique em 1970, 44 anos de
uma vida plena de estudo, de trabalho numa carreira de juiz, de viagens e que, finalmente, se fixa em França com a família, no propósito de
escrever romances.
Um
pensamento filosófico, de sátira ligeira mas contumaz, onde se destaca a figura
da costureira Júlia, mulher que aprendeu a ler sozinha mas que tudo leu e cuja
frase inicial do Prólogo, muitos anos antes do começo da acção, destaca,
em leit-motiv ameaçador, todo um enredo de dor, nos casamentos
frustrados das suas filhas, Leta Mirita e Adelaide (esta, sobrinha e enteada),
tal como fora o seu próprio casamento, imposto, de casar com o marido da irmã
morta, para tomar conta da filha desta.
Quando o marido lhe morre nos
braços, sabe, por denúncia febril deste, que o homem que ela amara apenas amara
a irmã, e docilmente submeteu-se ao
marido, guardando, para sempre, a acidez de visão sobre a sacrificada condição
feminina. Eis a introdução no Prólogo:
«-
A fertilidade das mulheres é um caminho de sangue e dor – disse Júlia com uma
fileira de alfinetes na boca. – Enquanto os rapazes jogam futebol e andam aos
ninhos, estamos nós tolhidas com as dores da história sem sabermos bem para que
serve aquilo. A perda da virgindade é paga com as dores de uma punição, de
preferência no dia mais bonito da nossa vida. E, por fim, a maternidade. Em que
damos uivos de lobas, com dores de se ver lume. Tudo isto sempre com sangue
pelo meio.»
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mais capítulos se seguirão de sequências e retomas, o tempo esvaído do seu valor,
o ontem e o hoje aparecendo na amálgama de eventos próximos ou
distantes, o casamento de Leta Mirita, finalizado com o adultério do marido,
apesar das tentativas desta de lhe preparar pratos saborosos e de se alindar, com
novo vestuário e pintura dos cabelos. Quanto a Adelaide, sempre mais rígida, o
casamento constituiu uma experiência de tortura longos anos vivida no silêncio
e no ódio amedrontado, com um sanguinário devorador de fêmeas, de larga
crónica de sadismo escondido pela
família do próprio, que assim que pôde o
casou com grande alarde de pompa e esbanjamento de dinheiro, fórmula que também
Adelaide aplicou para chantagear o sogro, calando em troca o vilipêndio e o
sofrimento infligido pelo homem, belo de aspecto, carrasco de sentimentos. Os
seis filhos homens que inicialmente teve, criou-os Adelaide com a função de
matarem o pai e para isso educando-os sem carinho e só exigência selvática de
espiarem pessoas, perseguirem animais e matarem-nos. Uma outra filha teve que,
tal como ela o fora quando casou, foi violada e seviciada, com marcas corporais
como as que ela própria escondia. Intentou matar o marido mas este informou-a
de que tinham sido os irmãos a violar a irmã, e o medo do marido, que só
abrandava durante as suas gravidezes propositadas, para se afastar dele, que
sentia então nojo da mulher, passou a senti-lo igualmente dos filhos. Tratou a
filha noite e dia com desvelo, curando-lhe as feridas, alimentando-a,
encerrando-a no quarto, escondida do mundo. Tendo-a destinado para santa,
quando soube da gravidez da filha, em farsa engendrada com a inteligência do
pânico, ela própria exigiu que o marido a usasse à sua maneira, para engravidar
paralelamente, e assim criar os dois bebés como seus, espalhando pela aldeia
que ia ter um par de gémeos o que todos louvaram, rica e respeitada como era. E
ao fim do tempo, mãe e filha passaram uma odisseia extraordinária, tendo ela o
seu filho na leprosaria e após isso, conduzindo a filha ao hospital, dizendo-lhe
que não identificasse o seu verdadeiro
nome, nessa noite de chuva e inundações, que lhe matou os seis filhos varões e
o marido, e em que Luzia de Siracusa, amamentou os dois bebés, aparecendo sobre
as águas do rio e cometendo mais dois outros milagres, quatro de uma assentada.
Assim se criou o mito da santidade, através da mentira, para salvar a honra da
filha, santidade repelida pelo bispo, uma santa que outros milagres cometeria,
na sua urna de cristal, a sua figura doce apenas sorrindo, as suas transmissões
ditadas pela mãe Laidinha, através das Seguidoras.
Outras
figuras perpassam, as Seguidoras fanáticas e subservientes, Gualter, rapaz
chegado de África e com jeitos amaricados mas sabendo fazer-se estimar. E os
dados sobre o 25 de abril, com informações de alguma ironia, e uma Adelaide,
após a morte da filha, contando finalmente à mãe, que o adivinhara, e à irmã -
de quem se tinha afastado, no seu viver de terror e altivez abastada - a sua
vida de maldição e horror, o mito que ela própria criara de santidade da filha,
para não denunciar a sua verdade de miséria. O bispo será informado, e acabam
os dois tomando chá num café, esquecidas as desavenças, o bispo aceitando
finalmente a santidade de Luzia de Siracusa, e lembrando ele próprio o
revestimento da capelinha dedicada à santa, com os vestidos de noiva que Leta
Mirita fabricava, a televisão especulando sobre o caso e trazendo à aldeia
peregrinos do mundo inteiro, contando outros milagres de curas por intercessão
de Luzia de Siracusa.
E o
Epílogo terminará, numa estrutura circular que denuncia o contraste entre o que
se sonha e o que se vive, com o retorno a um tempo passado de fé na vida e no
amor, que os romances de Max du Veuzit e outros autores da biblioteca das
raparigas, das estantes da velha Júlia, que os contestara sempre, contribuíam para intensificar:
«Dando
um último toque no véu, voltou-se para o espelho e viu ao seu lado a mais bela
noiva que alguma vez vestira.
-Vou
ser feliz, mãe?
Baixando-se
sobre a saia rodada do imponente vestido, Júlia procurou junto à bainha um
alinhavo que só ela via, evitando assim que os seus olhos dessem a resposta à
questão, falando mais do que deviam, como era seu costume.» Lille, 18 de Junho de 2013 »
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