sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Um livro de 2014



Um livro forte. Um livro evasivo, em suspense, que ora vai desvendando, ora vai  recapitulando, entremeado de pensamentos filosóficos a apoiar o narrado acerca das várias heroínas duma história de mulheres e de homens instalados numa aldeia distante do mundo citadino. Um momento fulcral – uma borrasca infernal provocando cheias com destruição e morte, significando, num enredo quase se diria policial, o mistério de um nascimento e simultaneamente a criação de um mito de santidade de uma dessas figuras femininas – Isabel ou Luzia de Siracusa - criado propositadamente por uma mulher frustrada, vingativa e de conceito antiquado sobre a honra na mulher – Adelaide, mãe daquela.  Uma leprosaria extinta, onde permanecem duas mulheres deformadas, caras e corpos destruídos, mas com o seu papel  nesse nascimento que só mais tarde se decifrará, embora seja focado logo no começo da acção, como notícia trazida por Leta Mirita, e retomado aqui e ali, na progressão ou recuo da efabulação. Uma aldeia onde se passam as circunstâncias mais ou menos tenebrosas, mais ou menos burlescas de uma acção descrita com extrema perícia e riqueza estilística e de pensamento, de um escritor que se afirma como uma promessa no horizonte das letras pátrias, que mesmo José Pacheco Pereira lerá sem repulsa, ele que troca toda a modernidade literária pela leitura dos clássicos. Com o tempo, este poderá sê-lo também. «Terra de Milagres», assim se chama este primeiro romance de João Felgar, nascido em Moçambique em 1970, 44 anos de uma vida plena de estudo, de trabalho numa carreira de juiz,  de viagens e que, finalmente, se fixa  em França com a família, no propósito de escrever romances.
Um pensamento filosófico, de sátira ligeira mas contumaz, onde se destaca a figura da costureira Júlia, mulher que aprendeu a ler sozinha mas que tudo leu e cuja frase inicial do Prólogo, muitos anos antes do começo da acção, destaca, em leit-motiv ameaçador, todo um enredo de dor, nos casamentos frustrados das suas filhas, Leta Mirita e Adelaide (esta, sobrinha e enteada), tal como fora o seu próprio casamento, imposto, de casar com o marido da irmã morta, para tomar conta da filha desta.  Quando  o marido lhe morre nos braços, sabe, por denúncia febril deste, que o homem que ela amara apenas amara a irmã, e docilmente  submeteu-se ao marido, guardando, para sempre, a acidez de visão sobre a sacrificada condição feminina. Eis a introdução no Prólogo:

«- A fertilidade das mulheres é um caminho de sangue e dor – disse Júlia com uma fileira de alfinetes na boca. – Enquanto os rapazes jogam futebol e andam aos ninhos, estamos nós tolhidas com as dores da história sem sabermos bem para que serve aquilo. A perda da virgindade é paga com as dores de uma punição, de preferência no dia mais bonito da nossa vida. E, por fim, a maternidade. Em que damos uivos de lobas, com dores de se ver lume. Tudo isto sempre com sangue pelo meio.»

27 mais capítulos se seguirão de sequências e retomas, o tempo esvaído do seu valor, o ontem e o hoje aparecendo na amálgama de eventos próximos ou distantes, o casamento de Leta Mirita, finalizado com o adultério do marido, apesar das tentativas desta de lhe preparar pratos saborosos e de se alindar, com novo vestuário e pintura dos cabelos.  Quanto a Adelaide, sempre mais rígida, o casamento constituiu uma experiência de tortura longos anos vivida no silêncio e no ódio amedrontado, com um sanguinário devorador de fêmeas, de larga crónica  de sadismo escondido pela família do próprio, que assim  que pôde o casou com grande alarde de pompa e esbanjamento de dinheiro, fórmula que também Adelaide aplicou para chantagear o sogro, calando em troca o vilipêndio e o sofrimento infligido pelo homem, belo de aspecto, carrasco de sentimentos. Os seis filhos homens que inicialmente teve, criou-os Adelaide com a função de matarem o pai e para isso educando-os sem carinho e só exigência selvática de espiarem pessoas, perseguirem animais e matarem-nos. Uma outra filha teve que, tal como ela o fora quando casou, foi violada e seviciada, com marcas corporais como as que ela própria escondia. Intentou matar o marido mas este informou-a de que tinham sido os irmãos a violar a irmã, e o medo do marido, que só abrandava durante as suas gravidezes propositadas, para se afastar dele, que sentia então nojo da mulher, passou a senti-lo igualmente dos filhos. Tratou a filha noite e dia com desvelo, curando-lhe as feridas, alimentando-a, encerrando-a no quarto, escondida do mundo. Tendo-a destinado para santa, quando soube da gravidez da filha, em farsa engendrada com a inteligência do pânico, ela própria exigiu que o marido a usasse à sua maneira, para engravidar paralelamente, e assim criar os dois bebés como seus, espalhando pela aldeia que ia ter um par de gémeos o que todos louvaram, rica e respeitada como era. E ao fim do tempo, mãe e filha passaram uma odisseia extraordinária, tendo ela o seu filho na leprosaria e após isso, conduzindo a filha ao hospital, dizendo-lhe que não  identificasse o seu verdadeiro nome, nessa noite de chuva e inundações, que lhe matou os seis filhos varões e o marido, e em que Luzia de Siracusa, amamentou os dois bebés, aparecendo sobre as águas do rio e cometendo mais dois outros milagres, quatro de uma assentada. Assim se criou o mito da santidade, através da mentira, para salvar a honra da filha, santidade repelida pelo bispo, uma santa que outros milagres cometeria, na sua urna de cristal, a sua figura doce apenas sorrindo, as suas transmissões ditadas pela mãe Laidinha, através das Seguidoras.
Outras figuras perpassam, as Seguidoras fanáticas e subservientes, Gualter, rapaz chegado de África e com jeitos amaricados mas sabendo fazer-se estimar. E os dados sobre o 25 de abril, com informações de alguma ironia, e uma Adelaide, após a morte da filha, contando finalmente à mãe, que o adivinhara, e à irmã - de quem se tinha afastado, no seu viver de terror e altivez abastada - a sua vida de maldição e horror, o mito que ela própria criara de santidade da filha, para não denunciar a sua verdade de miséria. O bispo será informado, e acabam os dois tomando chá num café, esquecidas as desavenças, o bispo aceitando finalmente a santidade de Luzia de Siracusa, e lembrando ele próprio o revestimento da capelinha dedicada à santa, com os vestidos de noiva que Leta Mirita fabricava, a televisão especulando sobre o caso e trazendo à aldeia peregrinos do mundo inteiro, contando outros milagres de curas por intercessão de Luzia de Siracusa.
E o Epílogo terminará, numa estrutura circular que denuncia o contraste entre o que se sonha e o que se vive, com o retorno a um tempo passado de fé na vida e no amor, que os romances de Max du Veuzit e outros autores da biblioteca das raparigas, das estantes da velha Júlia, que os contestara sempre,  contribuíam para intensificar:

«Dando um último toque no véu, voltou-se para o espelho e viu ao seu lado a mais bela noiva que alguma vez vestira.
-Vou ser feliz, mãe?
Baixando-se sobre a saia rodada do imponente vestido, Júlia procurou junto à bainha um alinhavo que só ela via, evitando assim que os seus olhos dessem a resposta à questão, falando mais do que deviam, como era seu costume.»  Lille, 18 de Junho de 2013 »

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