quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O saber ocupa lugar



A propósito do texto “CLEPTOMANIA», enviou o Coronel Adriano Miranda Lima para esse texto, publicado no A Bem da Nação, o comentário que segue, que, como os outros seus comentários e textos tem o selo da competência e da elegância discursiva. O Dr. Salles bem o reconheceu e publicou-o como texto principal no seu blog.

«Esta opinião da Dra. Berta Brás parece-me mais realista do que a análise do texto a que se refere.
Afinal, “isto está-nos na massa do sangue”, diz, e com razão. E é por isso que é impossível anunciar uma era de regeneração e redenção. É que não basta cortar uma ou outra árvore (podem ser muito mais do que aquilo que supomos) para se poder afiançar que a floresta está sã e promissora de abundante seiva e madeira. Sabemos bem que não, e é a nossa História que o diz.
Revisitemos o desaire que foi o constitucionalismo monárquico e o descalabro em que se saldou a I República para termos forçosamente de concluir que o problema está na nossa incapacidade de nos organizarmos em liberdade e com sentido de responsabilidade colectiva. Salazar conseguiu um período de interregno com a sua imposta visão doméstica de um povo rendido e conformado com a sua modéstia, ao mesmo tempo que acreditava na sua ficção de um império contra os ventos da História, sem reparar na flagrante contradição entre os extremos da sua utopia. Com o 25 de Abril, fez-se a festa do exorcismo do “fascismo”, mas tanto bastou para a demagogia e a cegueira arrasarem com o que tinha sido amealhado pelo velho de Santa Comba. Só os mais lúcidos poderiam ter compreendido que o salazarismo foi a versão coerente da nossa impotência económico-social colectiva (mesmo possuindo um império) e que as reivindicações selvagens não tinham o sortilégio do Toque de Midas.
A adesão à CEE, que se julgava ser o virar da página, pode ter sido o caminho menos indicado para um povo que precisava parar para pensar, dentro dos seus muros e de si mesmo. A partir daí, de ilusão em ilusão, de deslumbramento em deslumbramento, abdicámos de fazer a autognose que se impunha, e não tardaríamos a chegar a esta perigosa encruzilhada. Não, não é por culpa do José Sócrates que estamos nesta situação. O caldo de cultura foi criado ou iniciado pelo chamado Cavaquismo (rédea solta para toda a sorte de negócios e compadrios), e isto temos de reconhecer sem sofismas. O outro, o Sócrates, quanto muito pode ser o bode sacrificial, com culpa ou sem ela, para a lavagem dos nossos pecados. E se assim for, até tenho pena porque, mesmo a provar-se em tribunal a sua “cleptomania”, considero que foi o governante que mais visão estratégica teve para o país, como, aliás, o reconheceu o insuspeito Santana Lopes. De resto, em matéria de culpas sobram à saciedade exemplos de como nunca as conseguiremos assumir.
Se no seio de uma família responsável pela mais importante instituição bancária assistimos a uma despudorada auto-desculpabilização, tal como acontece na classe política que nos governa, como esperar que outros menos visíveis (cidadãos e interesses privados) possam um dia reconhecer e pedir perdão por se terem apropriado fraudulentamente de dinheiros europeus que se destinavam a relançar a nossa economia? Sim, a culpa é de todos, e “está-nos na massa do sangue”. É trágico mas é verdade. A hipocrisia de alguns analistas (intelectuais, jornalistas, etc.) é tanta que tentam distanciar-se e passar a mensagem de que são virgens impolutas, mas é apenas uma questão de oportunidade para cometerem os mesmos erros e os mesmos pecados. Está na "massa do sangue". Agora, vêm à tona vestígios do que a Inquisição instilou na psique e na memória do nosso povo: a necessidade de apontar o dedo e encontrar um culpado, a melhor maneira de mascarar as culpas colectivas. Este festim de purga e revanchismo é que me repugna e quando vejo pessoas com alguma responsabilidade intelectual e moral a ir na toada fico preocupado porque isso sinaliza a nossa congénita incapacidade de ir ao fundo de nós mesmos para sarar os males congénitos. Sim, acredito que a maldita Inquisição foi uma das grandes responsáveis pelos nossos males e ainda hoje os seus efeitos estão aí e impedem que possamos encontrar os meios para a cura psicanalítica que se impõe. Herculano, Quental, Queirós e outros puseram o dedo nesta chaga.

Transcrevo o comentário com que respondi ao escrito do Coronel:

«Eu agradeço ao Sr. Coronel Adriano M. Lima o longo e esclarecido comentário sobre a espécie de idiossincrasia que nos define como nação, que provém de vários factores, entre os quais um ensino anquilosado de longos anos, sem abertura para a modernidade e o progresso, mas, sobretudo, pelo abandono cultural a que o povo foi votado, escravo de senhores e sem outros direitos / deveres que os de trabalhar e servir, a iliteracia mantendo-se ainda hoje em vários casos, um povo habituado a expedientes - pois não é parvo - para singrar, sem outros hábitos de orientação que não sejam os da lamúria e da acusação toscas. Os seus comentários eruditos ou textos muito valorizam o A Bem da Nação.»

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