Também nós – a minha irmã e eu – tivemos
dois envergonhados gentílicos – dos mortos já não reza a história - fomos laurentinas
e lourençomarquinas, a nossa amiga ficando-se somiticamente mas
honrosamente pelo gentílico barreirense, honra que ainda se
mantém intacta, no seu clube e na sua garra de destemor mordaz. O meu filho
Ricardo, é aveirense, complicado de ceboleiro, por
não ter apanhado o topónimo de cagaréu, mas a minha filha Paula ficou-se
academicamente pelo de conimbricense, enquanto os outros três - o
João, o Artur e o Luís - pobrezinhos, se limitaram, como a mãe e a tia, às
lonjuras de um nome ora riscado do mapa. E assim se traçam as biografias, nos
seus inícios, e este artigo de Bagão Félix nos ensina com bom humor como enriquecer
as nossas raízes por consulta gramatical, agora que essas raízes vão sendo
arrasadas nas labaredas dos incêndios ou na entrega a mãos de outros povos mais
trabalhadores ou mais ricos…
Público, 3 de
Agosto de 2017
Gentilmente gentílico
Sento-me para escrever a minha crónica de sexta-feira. Manhã cedo, entre uma
ligeira, mas refrescante brisa que me consola antes da canícula, ouvindo as
aves indiferentes ao barulho do teclado e junto das minhas árvores que me
convidam a abraçá-las.
Neste contexto, não me apraz escrever sobre economia ou política. De
economia, fazendo jus ao título do blogue. De política, por posologia
terapêutica. Escrevo, antes, sobre um tema mais prosaico. Refiro-me aos
gentílicos.
Os substantivos gentílicos (se adjectivos igualmente conhecidos
por adjectivos pátrios) são as palavras que designam uma pessoa
de acordo com o seu local de nascimento ou de residência.
Se observarmos a maioria dos gentílicos, verificamos que não seguem um
padrão estrito para as suas terminações, antes variam de uma maneira tão
alargada que torna a coisa complicada, mas divertida. Alguns são até
independentes dos nomes com que estão relacionados. Por exemplo, carioca
do Rio de Janeiro (se cidade) e fluminense (se Estado), gaúcho do
Rio Grande do Sul.
Resolvi fazer uma viagem ao centro desta classe de substantivos. Não considerando
os que constavam das perguntas capciosas no meu tempo de escola (flaviense,
escalabitano, albicastrense, nabantino…), cito aqui o calipolense (de
Vila Viçosa), um menos conhecido e alternativo coliponense para
os leirienses e salaciano para Alcácer do Sal, o cubense
(mas não cubano, nem cubista) de Cuba no Alentejo, o lacobrigense (ou lacobricense)
de Lagos, o senense de Seia, o amarantino de Amarante,
o barranquenho de Barrancos.
Gosto, particularmente, do sistema duplo de alguns gentílicos menos
conhecidos: em Cartaxo,
cartaxeiro e cartaxense, em Minde, mindense e minderico,
em Penaguião, penaguiense e penaguiota, no Pico, picuense
e picaroto.
E o que dizer de um gentílico que se aplica a duas terras diferentes?
Falo do egitaniense para os habitantes de Idanha-a-Velha (Egitânia
era o nome dado a uma cidade fundada pelos romanos e que corresponde a este
concelho), mas também para os da Guarda.
Já quanto a gentílicos estrangeiros, destaco – entre muitos – os limenhos
da capital do Peru, os pacenhos de La Paz, os portenhos de Buenos
Aires, os tangerinos (e tangerinas) de Tânger, os zanzibaritas
de Zanzibar, os oliventinos (à espera de Portugal, em Olivença),
os sardos ainda que sem sardas da Sardenha, os malgaxes de
Madagáscar, os árabo-emiradenses dos EAU, os caraquenhos da agora
triste Caracas, o cingalês do Sri Lanka da ilha do Ceilão, os corsos
todo o ano na Córsega, os damascenos da torturada Damasco, os guatemaltecos
para fazer companhia aos suecos, os habitantes de Gaza que de falta de
gentílicos não sofrem (gazitas, gazeus e gazanos). Mais estranhos
parecem ser os habitantes de Jerusalém (hierosolimitas ou hierosolimitanos)
ou da cidade de Salvador (soteropolitanos) que não se confundem
com os salvadorenhos de El Salvador, sendo ambos gentílicos
criados a partir do nome grego das cidades. Já os que vivem em Estocolmo são
chamados holmienses (o nome romano era Holmes).
Duas notas mais: há cidades ou até países para as quais não se conhecem
gentílicos. Refiro-me, designadamente, a Tóquio e a Oslo. Ou melhor, o seu gentílico é simplesmente
habitante de Tóquio ou de Oslo. Quanto a Estados, o melhor exemplo é o do
habitante da República Centro-Africana? Como chamá-lo?
Em Portugal e no Brasil, entre acordos e desacordos ortográficos e
linguísticos, há gentílicos diferentes para muitos casos. Por exemplo, polaco
e polonês, canadiano e canadense, israelita e israelense,
palestiniano e palestinense, argelino e argeliano, bósnio e bosníaco.
E com o AO temos, agora, o Egipto decepado do p, todavia conservado no
gentílico egípcio. Vá lá a gente entender…
Eis uma pequeníssima amostra gentílica, na qualidade de temporariamente
albidomense (Casa Branca, concelho de Sousel).
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