quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Turismo hipocondríaco, pastéis de Vouzela a compensar


Viemos – a minha irmã e eu – a Pinheiro de Lafões, visitar a nossa prima Celeste, que já tantos males sofrera e estava condenada a mais, porque partiu uma perna, o que impossibilitou a sua actual autonomia de movimentação e o resto. É com tristeza que o noto, (atida a um passado de amizade e alegrias conjuntas, ou mesmo vividas na distância preenchida por via epistolar ou telefónica), e desejando com toda a força a recuperação da nossa prima, enquanto vamos estranhando os embates inesperados da vida, que a todos condenam, afinal, e que por todos nós já passaram.
 Gostaria de dizer, com o Zé Fernandes de “A Cidade e as Serras”, que “Em breve os nossos males esqueceram ante a maravilhosa beleza daquela serra bendita”, pois também estes montes da distância, pintalgados de casario, e com recortes a furar o azul, em vários tons de verde-cinza, me trazem ainda o contentamento que sempre sentia quando outrora chegava aqui de comboio, nesta linha do vale do Vouga, onde, antes de chegar à estação de Pinheiro, passava uma linda ponte, transformada hoje em estradinha, por entre o cemitério colorido e bem cuidado de cada lado da estrada, e na qual aqui e além os carris antigos marcam ainda o traçado, aplainado segundo a altura primitiva daqueles.
É certo que a família, composta de irmã, cunhado, sobrinhos, se desvela em torno da nossa prima, o que compensa um pouco o que sabemos de casos de pais e mães muitas vezes lançados em lares com imagens de pesadelo, de velhos dormitando em cadeirões, ou de olho atento à porta por onde uma visita vem quebrar a rotina da sonolência ao longo das paredes, da sala-depósito de seres sem existência própria, ou acutilando-se entre si em linguagem de maldade senil, se não demencial.
Mas a vista deste café de Pinheiro, onde escrevinho – há sempre, nas terrinhas,  um café propício às ânsias de liberdade (a sós ou de companhia) das vidas condicionadas da maioria das pessoas - é consoladora,  com os tons de verde variado, escorrendo até para além do rio, com milheirais e castanheiros e figueiras e macieiras, já bem pejadas de frutos, muitos deles caídos no chão, que o excesso de calor apodreceu e fez tombar, os quintais rodeados de muros floridos, nos jardins, uma ou outra couve crescendo por entre as flores, os campos com as latadas de uvas americanas já bem azuis e prontas para comer, ladeando pequenos troços de feijoais,  tomateiros, mas sobretudo milheirais, onde raramente se vê viv’alma, como se via antigamente, de lavrador cavando, ceifando ou regando a terra, a tecnologia, hoje, aparentemente substituindo o trabalho manual, embora invisível, numa paz preguiçosa, que se revela também no excesso de ramos caídos no chão das matas.
Também fomos passear pelas terras das nossas origens familiares, com a nossa prima Amarílis - o marido e os filhos daquela ficando a tomar conta da “mãe Celeste” (na terminologia meiga da Ana, a filha mais nova da nossa torrencial cicerone, inexcedível em capacidade informativa e evocativa. Tanto Destriz como o Carregal – como, de resto, Pinheiro, Oliveira de Frades, e todas essas terras em redor – Reigoso, Cercosa, Vide… - se mostram aparentemente mais afortunadas do que outrora, do ponto de vista habitacional, onde antigos ou recentes emigrantes construíram casas de maior ou menor dimensão, por vezes recuperando as casas antigas dos antepassados, de velho e sujo granito, outras casas, feitas de raiz, rivalizando em aparência com as mais modestas, talvez por natural orgulho de exibir prosperidade, ou simplesmente por amor pelo espaço natal. Na verdade, grande parte das casas estão fechadas, os donos regressados após as férias, aos países do seu trabalho que lhes possibilitou o bem-estar para a velhice, e daí a aparência de solidão nos campos que a natureza generosa vai fazendo verdejar, com muitos fetos e silvedos de mistura, ladeando os caminhos, os campos de milho para os gados sobrepondo-se em dimensão aos demais campos, milho usado para os gados, segundo informação da nossa prima.
Matas de pinheiros, eucaliptos, sobreiros, preenchem igualmente as estradas sinuosas, quase se tocando as copas, a lembrar riscos de incêndios, que aqui não chegaram ainda, o que conforta, provisoriamente, as almas.
E o nosso turismo ligeiro ficou-se por aqui, a intenção era mesmo a de visitar a nossa Celeste, quatro dias passados de excelentes almoços, merecendo uma descrição entusiástica, à maneira do arroz com favas queirosiano, mas de que o excesso gastronómico diário nos canais televisivos, torna supérflua a referência. Ficam os pastéis de Vouzela para presentear a família, como ponto cimeiro de doçura, a suavizar as agruras de algum pessimismo turístico ou vivencial aqui subentendido.
E a lembrança da casa velha dos meus avós maternos, no Carregal, reduzida a uma parede, já sem a data que ainda há poucos anos tinha, de há cerca de dois séculos – 1827 ou pouco mais - tendo por única aparência de vida, como ironia, a abertura da caixa do correio, na pedra rasgada, onde outrora existia uma caixa vermelha para o correio da aldeia de que o meu avô devia ter sido depositário, e para as cartas dos filhos que partiram para a África ou o Brasil, e cujos descendentes, multiplicados, se foram fixando em França ou outros locais do mundo – de preferência europeu – como os descreve Linda de Suza na sua “Mala de Cartão” – veio trazer imagens recuadas, entre outras, a da minha avó materna eternamente sentada no banco corrido, na varanda, de tempos a tempos arrastando o balde de madeira com as lavagens para os porcos até à caleira, a um canto da varanda, por onde as lançava para a bacia de pedra em baixo, no curral, no meio dos grunhidos de avidez dos porcos, cujo destino era a salgadeira.
Ao lado da caixa do Correio, crescia uma glicínia roxa, com um único cacho, que cortei para levar à minha prima Celeste, como abraço simbólico da casa familiar, mas no dia seguinte estava murcha, a acompanhar a imagem de ruína da parede fronteira da casa que deixou de o ser, é certo, mas de que os reconstrutores da nova aldeia mantiveram um resto de parede, a lembrar antigas glórias de pujança, de que o seu pai e a minha mãe fizeram parte.


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