Viemos – a minha irmã e eu – a
Pinheiro de Lafões, visitar a nossa prima Celeste, que já tantos males sofrera
e estava condenada a mais, porque partiu uma perna, o que impossibilitou a sua actual
autonomia de movimentação e o resto. É com tristeza que o noto, (atida a um
passado de amizade e alegrias conjuntas, ou mesmo vividas na distância
preenchida por via epistolar ou telefónica), e desejando com toda a força a
recuperação da nossa prima, enquanto vamos estranhando os embates inesperados
da vida, que a todos condenam, afinal, e que por todos nós já passaram.
Gostaria de dizer, com o Zé Fernandes de “A
Cidade e as Serras”, que “Em breve os nossos males esqueceram ante a
maravilhosa beleza daquela serra bendita”, pois também estes montes da
distância, pintalgados de casario, e com recortes a furar o azul, em vários
tons de verde-cinza, me trazem ainda o contentamento que sempre sentia quando
outrora chegava aqui de comboio, nesta linha do vale do Vouga, onde, antes de
chegar à estação de Pinheiro, passava uma linda ponte, transformada hoje em estradinha,
por entre o cemitério colorido e bem cuidado de cada lado da estrada, e na qual
aqui e além os carris antigos marcam ainda o traçado, aplainado segundo a
altura primitiva daqueles.
É certo que a família,
composta de irmã, cunhado, sobrinhos, se desvela em torno da nossa prima, o que
compensa um pouco o que sabemos de casos de pais e mães muitas vezes lançados
em lares com imagens de pesadelo, de velhos dormitando em cadeirões, ou de olho
atento à porta por onde uma visita vem quebrar a rotina da sonolência ao longo
das paredes, da sala-depósito de seres sem existência própria, ou acutilando-se
entre si em linguagem de maldade senil, se não demencial.
Mas a vista deste café de
Pinheiro, onde escrevinho – há sempre, nas terrinhas, um café propício às ânsias de liberdade (a sós
ou de companhia) das vidas condicionadas da maioria das pessoas - é
consoladora, com os tons de verde
variado, escorrendo até para além do rio, com milheirais e castanheiros e
figueiras e macieiras, já bem pejadas de frutos, muitos deles caídos no chão,
que o excesso de calor apodreceu e fez tombar, os quintais rodeados de muros
floridos, nos jardins, uma ou outra couve crescendo por entre as flores, os
campos com as latadas de uvas americanas já bem azuis e prontas para comer,
ladeando pequenos troços de feijoais,
tomateiros, mas sobretudo milheirais, onde raramente se vê viv’alma,
como se via antigamente, de lavrador cavando, ceifando ou regando a terra, a
tecnologia, hoje, aparentemente substituindo o trabalho manual, embora invisível, numa paz
preguiçosa, que se revela também no excesso de ramos caídos no chão das matas.
Também fomos passear pelas
terras das nossas origens familiares, com a nossa prima Amarílis - o marido e
os filhos daquela ficando a tomar conta da “mãe Celeste” (na terminologia meiga
da Ana, a filha mais nova da nossa torrencial cicerone, inexcedível em
capacidade informativa e evocativa. Tanto Destriz como o Carregal – como, de
resto, Pinheiro, Oliveira de Frades, e todas essas terras em redor – Reigoso,
Cercosa, Vide… - se mostram aparentemente mais afortunadas do que outrora, do
ponto de vista habitacional, onde antigos ou recentes emigrantes construíram
casas de maior ou menor dimensão, por vezes recuperando as casas antigas dos
antepassados, de velho e sujo granito, outras casas, feitas de raiz,
rivalizando em aparência com as mais modestas, talvez por natural orgulho de
exibir prosperidade, ou simplesmente por amor pelo espaço natal. Na verdade,
grande parte das casas estão fechadas, os donos regressados após as férias, aos
países do seu trabalho que lhes possibilitou o bem-estar para a velhice, e daí
a aparência de solidão nos campos que a natureza generosa vai fazendo verdejar,
com muitos fetos e silvedos de mistura, ladeando os caminhos, os campos de
milho para os gados sobrepondo-se em dimensão aos demais campos, milho usado para
os gados, segundo informação da nossa prima.
Matas de pinheiros,
eucaliptos, sobreiros, preenchem igualmente as estradas sinuosas, quase se
tocando as copas, a lembrar riscos de incêndios, que aqui não chegaram ainda, o
que conforta, provisoriamente, as almas.
E o nosso turismo ligeiro
ficou-se por aqui, a intenção era mesmo a de visitar a nossa Celeste, quatro
dias passados de excelentes almoços, merecendo uma descrição entusiástica, à
maneira do arroz com favas queirosiano, mas de que o excesso gastronómico diário
nos canais televisivos, torna supérflua a referência. Ficam os pastéis de Vouzela
para presentear a família, como ponto cimeiro de doçura, a suavizar as agruras de
algum pessimismo turístico ou vivencial aqui subentendido.
E a lembrança da casa velha dos
meus avós maternos, no Carregal, reduzida a uma parede, já sem a data que ainda
há poucos anos tinha, de há cerca de dois séculos – 1827 ou pouco mais - tendo
por única aparência de vida, como ironia, a abertura da caixa do correio, na
pedra rasgada, onde outrora existia uma caixa vermelha para o correio da aldeia de que o meu avô devia ter sido depositário, e para as cartas dos filhos
que partiram para a África ou o Brasil, e cujos descendentes, multiplicados, se
foram fixando em França ou outros locais do mundo – de preferência europeu – como
os descreve Linda de Suza na sua “Mala de Cartão” – veio trazer imagens recuadas, entre outras, a da minha avó materna eternamente sentada no banco corrido, na
varanda, de tempos a tempos arrastando o balde de madeira com as lavagens para
os porcos até à caleira, a um canto da varanda, por onde as lançava para a
bacia de pedra em baixo, no curral, no meio dos grunhidos de avidez dos porcos,
cujo destino era a salgadeira.
Ao lado da caixa do Correio,
crescia uma glicínia roxa, com um único cacho, que cortei para levar à minha
prima Celeste, como abraço simbólico da casa familiar, mas no dia seguinte
estava murcha, a acompanhar a imagem de ruína da parede fronteira da casa que
deixou de o ser, é certo, mas de que os reconstrutores da nova aldeia
mantiveram um resto de parede, a lembrar antigas glórias de pujança, de que o
seu pai e a minha mãe fizeram parte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário