sábado, 26 de agosto de 2017

Incendiários quadrados circulando


Por aí. A coberto do segredo. Segredo da noite. Segredo das redes. Segredo dos esconderijos. Segredo das paredes que calam, porque não têm ouvidos nem olhos, ao contrário da sentença. Segredo de todos os disfarces possíveis, segredo de todas as indiferenças, segredo de todas as impunidades, tão incendiários os que põem o fogo na floresta, como os que o põem no sistema da ficção governativa, como os que fingem não se aperceber, ou se apercebem e nada fazem para reverter. Afinal, somos todos quadrados a circular por aqui, à espera de qualquer maná que tombe no nosso deserto de imprevidência, cinismo ou cobardia.
Santana Castilho aponta com indignação o dedo acusador ao experimentalismo educativo de um pretenso ministro da educação, actuando de acordo com a manipulação partidária que o informa, mas levantamos a pálpebra ensonada pelo excesso de caldeiradas dos nossos programas televisivos divertidos, ao nosso gosto democrático, e voltamos a fechá-la, no pasmo do nosso marasmo. O que for, soará. De toda a maneira, um bravo para o artigo de Santana Castilho.

Santana Castilho - Público
Quarta-feira, 23 de agosto de 2017
Em Educação, as medidas de política têm estado demasiado ligadas à ideologia dos grupos dominantes. Melhor dizendo, aos convencimentos dos que, em cada momento, governam em nome desses grupos.
A interacção e a interdependência das sociedades modernas são cada vez maiores e provocam um interesse crescente pelos instrumentos que influenciam os seus diferentes sistemas. A Saúde, a Justiça, a Educação e a Economia, para citar apenas as áreas que de modo mais evidente marcam a nossa qualidade de vida, estão sob escrutínio constante de instrumentos de comparação e de grupos de pressão, que nos dividem entre “bons” e “maus”, segundo encaixemos ou não no que determinam ser politicamente correcto. No contexto da discussão pública, tais realidades acabam por se impor e contaminar a análise de outros factores. 
Em Educação, as medidas de política têm estado demasiado ligadas à ideologia dos grupos dominantes. Melhor dizendo, aos convencimentos dos que, em cada momento, governam em nome desses grupos. As últimas alterações que o sistema de ensino sofreu oscilaram entre concepções anglo-saxónicas, de raiz empirista, e ideias construtivistas, de inspiração piagetiana. Estas, hipervalorizando as ciências da Educação. Aquelas, hipervalorizando o conhecimento. E quando novos líderes recuperam medidas de líderes passados, que a prática mostrou estarem erradas, contam sempre com o apoio dos prosélitos da tribo, convenientemente esquecidos das evidências que viveram. Muitos deles são autores, nas redes sociais, quase sempre sob anonimato, de intervenções onde a injúria substitui a troca civilizada de argumentos e falseia a percepção do que se discute. Nesta espécie de bordéis de cobardes, a ignorância é o menos. O mais é a subserviência infame ao interesse do momento. O mais é impor como politicamente correcta uma visão ideológica que já foi testada e falhou. Assim vamos, em meu sentir, no prólogo de mais um ano escolar, sob o policiamento disfarçado do pensamento livre, rumo a uma pedagogia totalitária. 
Começou o disfarce com uma revisão curricular que, oficial e centralmente, não existe. Com efeito, são algumas escolas que poderão alterar 25% do currículo, sem que, centralmente, os programas tenham sido alterados e embora os professores só devam cumprir, desses programas, o que as “aprendizagens essenciais” fixaram, em híbrida convivência com as metas de Crato, que não foram explicitamente revogadas. Esta circulatura do quadrado será operada por artistas das 236 escolas que se alistaram na experiência pedagógica da “flexibilidade curricular”. E continuou o disfarce com o secretismo que envolve a coisa: os pais não tiveram o direito de saber se a escola onde iriam matricular os filhos estava ou não envolvida na experiência; e agora, depois da lista publicada, não se sabe que turmas virão a estar envolvidas, muito menos os critérios que ditam a escolha; todos os pormenores operacionais pertencem ao obediente e venerador corpo de directores e aos comissários da modernidade do século XXI, enquanto, como convém, a generalidade dos professores do século XX está de férias
Este processo de mudança, recorde-se, estava inicialmente programado para ser imposto a todo o sistema, sem qualquer tipo de testagem. Foram o Presidente da República e o Primeiro-Ministro que travaram essa lógica. Mas a intenção dos promotores subjaz ao disfarce da experimentação. Com efeito, uma experiência séria não se faz com a envolvência de mais de 20% do universo a que, eventualmente, se virá a aplicar o que se testa. Porque torna muito mais complexo o processo de acompanhamento e avaliação, cujo rigor é vital para a tomada da decisão final. Uma experiência séria não assenta na determinação de uma amostra cujo critério único é o voluntarismo das escolas candidatas. Uma experiência séria planeia com tempo e de modo transparente a formação dos agentes envolvidos, a mobilização dos recursos necessários e o desenho da estrutura de monitorização. 
Tudo visto, a “experiência” é, antes, uma primeira fase de uma alteração que Marcelo e Costa atrasaram para depois das autárquicas. Trará sobressaltos e instabilidade. E, no fim, a responsabilidade da balbúrdia ficará a débito dos professores do século XX, que alguns dizem avessos à inovação.

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«O coração de muitos políticos parece reduzir-se a um código legal, que interpretam a seu modo. O meu é feito de matéria diferente e por isso dói e sangra como nunca. Foram muitas as situações ao longo da minha vida em que a minha lei foi ser contra a lei. Contra a lei iníqua. Contra a lei astuta que protege os poderosos e ignora os que nada podem. Contra a lei que despreza a moral e a ética. Contra o direito que não serve a justiça.»

Assim se define o homem que é conhecido, sobretudo, pelas crónicas que publica no jornal Público: textos imperdíveis que, de 15 em 15 dias, vêm agitar as águas turvas da torpe política nacional, nomeada e principalmente a referente às coisas da educação.
O estilo contundente dos seus artigos é um tiro certeiro na generalizada apatia, uma pedrada neste charco onde o país se afunda. A clarividência das suas análises, a sua prosa empolgante, cheia de garra, lucidez, inteligência, desassombro, são uma bênção - sempre!- , e uma inspiração, para aqueles poucos a quem a raiva ainda cresce nos dentes e nos dedos, professores ou não. Lê-lo é um bálsamo e um incitamento, saber-lhe o pensamento, uma força reposta.

O que o move: a persistência e uma vontade férrea, um humanismo que cada dia se vai tornando mais raro, uma absoluta urgência de transformar o mundo:

«Não desisto de convocar políticos e cidadãos comuns para o debate das ideias e para o exercício de informar com seriedade e verdade. Sem informação e discussão não há vida democrática.»

Manuel Henrique Santana Castilho nasceu em Beja. A simpatia e devoção que nutre pela classe docente terá despertado logo quando era aluno do liceu desta cidade, em resultado da muita admiração e estima que lhe mereceram alguns dos professores que aí lhe ensinaram coisas dos livros e da vida e a quem, ainda hoje, rende sentida homenagem. 


É, de resto, por influência de um desses professores que Santana Castilho decide licenciar-se em Educação Física. Frequenta o ISEF, em Lisboa, entre --- e --- . Inicia a sua vida profissional como professor desta disciplina e outras afins (Saúde, por exemplo) em escolas Secundárias e noutras que agora se chamariam de EB 2,3.

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