sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Um cheirinho de trágicos


Tudo, afinal, já estava programado lá no Olimpo, soube-se mais tarde, quando a irmã de Zeus, Eris de sua graça, furiosa por não ter sido convidada para os esponsais da ninfa Tétis, com o Rei Peleu – (pais de Aquiles, o tal cujo calcanhar a mãe não permitiu que recebesse o banho da imortalidade nas águas do rio Estígio, como fez com o resto do corpo do bebé, deixando o calcanhar a seco, tapado com a  sua mão distraída, sendo aí que a seta do Páris se espetou mais tarde, ao que constou, mas as histórias são como as cerejas, quanto mais se comem mais se acrescentam, infindáveis no apetite…
Retomo, pois, o meu conto, a informar que Eris, a deusa da Discórdia, lançou um pomo de ouro para o meio dos deuses convidados, destinado a ser entregue à mais bela deusa do banquete, o que logo - ou posteriormente, estas coisas do tempo, sendo, afinal, irrelevantes, sujeitas a tantas  indefinições - se traduziu como o pomo da discórdia, tal como a maçã da Eva, no aliciamento da malvada serpente, seria o pomo da ira do Jeová e, em consequência, da despedida dos nossos pais do Éden, para a Idade do Ferro, segundo a versão bíblica, nem sei se contemporânea dos mitos contados seriamente pelos gregos Homero, e  Hesíodo, e reproduzidos, já como facécias ou enfeites adjuvantes, pelos latinos Ovídio e Virgílio e outros autores latinos, e por isso nem sabemos em quem havemos de acreditar, embora o nosso Camões também tenha feito jus a esses contos, que serviram para exaltar os nossos próprios heróis, pois em questão de heroísmos não deixamos os nossos créditos por mãos alheias, tal como posteriormente tivemos o exemplo do Damasozinho Salcede, da ficção queirosiana, em todo o caso despicienda, por ser puramente caricatural, e que até acho que nos devia melindrar.
As deusas escolhidas pela sua representatividade, na questão do concurso de beleza da responsabilidade de Eris, foram Hera (Juno), Atena (Minerva) e Afrodite (Vénus), e o juiz da sentença foi Páris, filho de Anquises, o último rei de Tróia, o qual a família mandara para o monte Ida, (onde de momento vivia com a apaixonada Enone), precisamente porque o oráculo predissera que aquele filho da mãe Hécuba (e irmão de Heitor, de Cassandra, de Policena, e de outros), seria o causador da destruição de Tróia o que, com efeito, aconteceu, tendo havido até, no século XIX, um arqueólogo alemão que descobriu  a localização de fragmentos de espaços troianos.
De facto, os deuses olímpicos, que não estavam para se comprometer em diferendos de saias - o império feminino, ainda por cima de natureza divina, fatalmente mais assustador - passaram a pasta da tomada da decisão a Páris, o tal filho troiano castigado no monte, sem ter culpa, que logo foi pressionado por chantagens de diferentes dimensões, exercidas pelas três concorrentes divinas, num saber de três mil anos atrás, que nos maravilha na sua ancestralidade, provando a fraca evolução do homem e assim também da mulher, ainda hoje atreitos a esse modus operandi angariador de proveito próprio. Mas finalmente o pomo foi entregue a Afrodite, que prometera a Páris a mais bela mulher do mundo.
Estava eu no café a reviver estes pormenores, quando, ao chegar a casa, logo por minha sorte decorria o filme «Tróia», com um Aquiles lindo de morrer, desempenhado por Brad Pitt, mas a Helena do filme não me pareceu aquela figura esplendorosa de beleza que se diz que era, e que está descrita igualmente com extrema agudeza de espírito na obra ímpar de Jonh Erskine - “A vida privada de Helena de Tróia”.
Tudo se passou como fora predito, e Tróia acabou destruída e a arder, ao fim de dez anos, em que deuses e deusas estiveram metidos ao barulho, numa promiscuidade de simpatias e antipatias com os heróis, de causar espanto, embora, de facto, nem já assim tanto, habituados que estamos aos arranjinhos dos tempos de hoje, mesmo sendo diferente a mola geradora de tais envolvimentos entre uns e outros, por vezes de tão diferentes estatutos sociais.
Morto Heitor, pelo furioso Brad Pitt daquela altura, Aquiles (ao que parece, morto posteriormente pela seta de Páris orientada por Apolo precisamente para o seu calcanhar da vulnerabilidade, (por descuido da mãe Tétis, como já foi explicado), Andrómaca, de princesa que era, como esposa de Heitor, em Tróia, foi feita escrava de Neoptólemo (em Eurípedes) ou Pirro (em Racine), o filho de Aquiles, o qual, (em Eurípedes), já era casado com Hermíone, filha amada de Helena e de Menelau, este último, marido brando que fizera a guerra para reaver a esposa e assim aconteceu, apesar dos dez anos de adultério daquela, que naturalmente as más línguas das coscuvilheiras espartanas condenavam, segundo se lê também no livro do John Erskine, mais uma prova da fraca evolução do humano ser, desta vez no capítulo do preconceito social, apesar de, cá entre nós, pelo menos, as coisas parece estarem a mudar, graças às regras da democracia da nossa conquista revolucionária de cravos, os incêndios chegados posteriormente.
Mas é a figura de Andrómaca que sobressai nas tragédias de Eurípedes e na de Racine - na primeira, no seu dilema de salvar o filho (Molossos, que, como escrava, tivera de Neoptólemo) à custa da sua vida (que Tétis salvará no final, “dea ex machina”, ao apelo do torturado Peleu, a quem morreram o filho Aquiles e o neto Neoptólemo, este último morto por Orestes, a pedido de Hermíone, sua prima e amada de longa data); na peça de Racine, na dor de Andrómaca, no seu dilema entre salvar o seu filho e de HeitorAstyanax – casando com Pirro, ou deixando-o morrer às mãos gregas, por fidelidade incontornável à memória de Heitor.
Orestes, (o matricida, filho de Agamémnon e de Clitemnestra - esta última irmã de Helena, (e assassina do marido, chefe da empresa de Tróia, no regresso deste, e com bastas razões para o ter feito, pois lhe matara uma sua filha, Ifigénia, à traição, para obter ventos propícios, antes da partida para Tróia, dez anos antes)… Orestes, pois, amante fervoroso de Hermíona, sua prima, que, sobretudo na peça de Racine, se serve dele com astúcia para chegar aos seus fins - obter novamente as boas graças de Pirro ou, no falhanço desse plano, dar-lhe a morte e, em seguida, enlouquecer de dor - Orestes tem um excelente papel também de amante frustrado, joguete das astúcias de Hermíone e do próprio Pirro, desejoso este de se ver livre de Hermíone para poder usufruir da viúva de Heitor, Andrómaca, como já foi dito, impecável na fidelidade ao marido morto, figura bem trágica em ambas as peças – severa e implorativa para com a altiva Hermíone e o pai desta, Menelau, na peça de Eurípedes, suplicante e firme na de Racine, o filho – Astyanax - sendo a razão do seu desespero no dilema entre salvar o filho ou casar com Pirro.
Transcrevo um excerto da fala de Andrómaca, de Eurípedes, apenas para mostrar quanto era severa, corajosa e amante do seu filho, na sua resposta a Menelau (2º Episódio) em que Menelau lhe apresenta o filho que, diz, será sacrificado se Andrómaca não sair do altar da deusa Tétis, onde se refugiara, dando a sua vida pelo filho, chantagem de homem cobarde, como lho revelará a intrépida Andrómaca, simultaneamente figura frágil de vítima traída, a lembrar as falas de Inês de Castro na peça de António Ferreira:
ANDRÓMACA: Ai de mim! Cruel sorteio e escolha de vida me apresentas: se me toca em sorte viver, sou miserável; se me não toca, sou infeliz. Ó tu, que graves acções praticas por pequenos motivos, crê-me:  Porque me matas? Qual a causa? Que cidade hei traído? Qual dos teus filhos matei? E que casa incendiei? Partilhei, forçada, o leito com o meu senhor; e então não é a ele, que é o culpado disto, mas a mim que dás a morte? Deixas ficar a causa, e voltas-te para o efeito, que lhe é posterior. Ai que desgraças, minha infortunada Pátria! Como sofro horrivelmente! Porque havia eu de dar à luz e a este meu fardo juntar uma carga dobrada? Mas porque choro assim e não seco as lágrimas e penso nos males presentes? Eu que, do alto das muralhas, vi morrer Heitor, atrelado ao carro, e Troia lamentavelmente incendiada, eu que, como escrava, embarquei nas naus argivas, arrastada pelos cabelos; e quando cheguei à Ftia, vi-me unida ao assassino de Heitor! Que prazer tenho, pois, em viver? Para onde devo olhar? Para as desgraças presentes, ou para as passadas? Só este filho me restava, como luz da minha vida; vão-no matar aqueles a quem tal parece conveniente. Mas, por certo, não o será, pela minha miserável vida; nele, de facto, reside a minha esperança, se me salvar, e será desonra para mim não morrer pelo meu filho...

A “Andromaque de Racine é toda ela uma explosão de paixões, numa análise psicológica de extraordinário relevo, em que imperam os alexandrinos cheios de ritmo e organização do pensamento, em que cada personagem vai desbravando a sua caminhada e a sua causa amorosa ou as suas razões de súplica. Apenas um breve exemplo desse exercício literário de paralelismo frásico, com ORESTE dirigindo-se a PYRRHUS, no objectivo de o fazer entregar o filho de Heitor à ira grega: “Et qu’à vos yeux, Seigneur, je montre quelque joie / De voir le fils d’Achille et le vainqueur de Troie. / Oui, comme ses exploits nous admirons vos coups: / Hector tomba sous lui, Troie expira sous vous.» ...

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