Tudo, afinal, já estava
programado lá no Olimpo, soube-se mais tarde, quando a irmã de Zeus, Eris
de sua graça, furiosa por não ter sido convidada para os esponsais da ninfa
Tétis, com o Rei Peleu – (pais de Aquiles, o tal cujo
calcanhar a mãe não permitiu que recebesse o banho da imortalidade nas águas do
rio Estígio, como fez com o resto do corpo do bebé, deixando o calcanhar
a seco, tapado com a sua mão distraída, sendo
aí que a seta do Páris se espetou mais tarde, ao que constou, mas as
histórias são como as cerejas, quanto mais se comem mais se acrescentam,
infindáveis no apetite…
Retomo, pois, o meu conto, a
informar que Eris, a deusa da Discórdia, lançou um pomo de
ouro para o meio dos deuses convidados, destinado a ser entregue à mais
bela deusa do banquete, o que logo - ou posteriormente, estas coisas do tempo,
sendo, afinal, irrelevantes, sujeitas a tantas indefinições - se traduziu como o pomo da
discórdia, tal como a maçã da Eva, no aliciamento da malvada serpente, seria o pomo da ira do Jeová e, em consequência, da despedida dos
nossos pais do Éden, para a Idade do Ferro, segundo a versão
bíblica, nem sei se contemporânea dos mitos contados seriamente pelos gregos Homero,
e Hesíodo, e reproduzidos, já
como facécias ou enfeites adjuvantes, pelos latinos Ovídio e Virgílio
e outros autores latinos, e por isso nem sabemos em quem havemos de acreditar, embora
o nosso Camões também tenha feito jus a esses contos, que serviram para exaltar
os nossos próprios heróis, pois em questão de heroísmos não deixamos os nossos
créditos por mãos alheias, tal como posteriormente tivemos o exemplo do
Damasozinho Salcede, da ficção queirosiana, em todo o caso despicienda, por ser
puramente caricatural, e que até acho que nos devia melindrar.
As deusas escolhidas pela sua representatividade,
na questão do concurso de beleza da responsabilidade de Eris, foram Hera
(Juno), Atena (Minerva) e Afrodite (Vénus), e o juiz da sentença
foi Páris, filho de Anquises, o último rei de Tróia, o qual a
família mandara para o monte Ida, (onde de momento vivia com a
apaixonada Enone), precisamente porque o oráculo predissera que aquele
filho da mãe Hécuba (e irmão de Heitor, de Cassandra, de Policena,
e de outros), seria o causador da destruição de Tróia o que, com efeito,
aconteceu, tendo havido até, no século XIX, um arqueólogo alemão que descobriu a localização de fragmentos de espaços
troianos.
De facto, os deuses olímpicos,
que não estavam para se comprometer em diferendos de saias - o império
feminino, ainda por cima de natureza divina, fatalmente mais assustador - passaram
a pasta da tomada da decisão a Páris, o tal filho troiano castigado no
monte, sem ter culpa, que logo foi pressionado por chantagens de diferentes
dimensões, exercidas pelas três concorrentes divinas, num saber de três mil anos atrás,
que nos maravilha na sua ancestralidade, provando a fraca evolução do homem e
assim também da mulher, ainda hoje atreitos a esse modus operandi angariador
de proveito próprio. Mas finalmente o pomo foi entregue a Afrodite, que prometera
a Páris a mais bela mulher do mundo.
Estava eu no café a reviver
estes pormenores, quando, ao chegar a casa, logo por minha sorte decorria o
filme «Tróia», com um Aquiles lindo de morrer, desempenhado por Brad Pitt,
mas a Helena do filme não me pareceu aquela figura esplendorosa de
beleza que se diz que era, e que está descrita igualmente com extrema agudeza
de espírito na obra ímpar de Jonh Erskine - “A vida privada de Helena de
Tróia”.
Tudo se passou como fora
predito, e Tróia acabou destruída e a arder, ao fim de dez anos, em que deuses
e deusas estiveram metidos ao barulho, numa promiscuidade de simpatias e
antipatias com os heróis, de causar espanto, embora, de facto, nem já assim
tanto, habituados que estamos aos arranjinhos dos tempos de hoje, mesmo sendo
diferente a mola geradora de tais envolvimentos entre uns e outros, por vezes
de tão diferentes estatutos sociais.
Morto Heitor, pelo
furioso Brad Pitt daquela altura, Aquiles (ao que parece, morto posteriormente
pela seta de Páris orientada por Apolo precisamente para o seu
calcanhar da vulnerabilidade, (por descuido da mãe Tétis, como já foi explicado),
Andrómaca, de princesa que era, como esposa de Heitor, em Tróia,
foi feita escrava de Neoptólemo (em Eurípedes) ou Pirro
(em Racine), o filho de Aquiles, o qual, (em Eurípedes),
já era casado com Hermíone, filha amada de Helena e de Menelau,
este último, marido brando que fizera a guerra para reaver a esposa e assim
aconteceu, apesar dos dez anos de adultério daquela, que naturalmente as más
línguas das coscuvilheiras espartanas condenavam, segundo se lê também no livro
do John Erskine, mais uma prova da fraca evolução do humano ser, desta vez no
capítulo do preconceito social, apesar de, cá entre nós, pelo menos, as coisas
parece estarem a mudar, graças às regras da democracia da nossa conquista revolucionária
de cravos, os incêndios chegados posteriormente.
Mas é a figura de Andrómaca
que sobressai nas tragédias de Eurípedes e na de Racine - na
primeira, no seu dilema de salvar o filho (Molossos, que, como escrava,
tivera de Neoptólemo) à custa da sua vida (que Tétis salvará no
final, “dea ex machina”, ao apelo do torturado Peleu, a quem
morreram o filho Aquiles e o neto Neoptólemo, este último morto
por Orestes, a pedido de Hermíone, sua prima e amada de longa data); na peça
de Racine, na dor de Andrómaca, no seu dilema entre salvar
o seu filho e de Heitor – Astyanax – casando com Pirro, ou deixando-o morrer às mãos gregas, por fidelidade incontornável à memória de Heitor.
Orestes, (o matricida, filho
de Agamémnon e de Clitemnestra - esta última irmã de Helena, (e
assassina do marido, chefe da empresa de Tróia, no regresso deste, e com bastas
razões para o ter feito, pois lhe matara uma sua filha, Ifigénia, à
traição, para obter ventos propícios, antes da partida para Tróia, dez anos
antes)… Orestes, pois, amante fervoroso de Hermíona, sua prima, que,
sobretudo na peça de Racine, se serve dele com astúcia para chegar aos seus
fins - obter novamente as boas graças de Pirro ou, no falhanço desse
plano, dar-lhe a morte e, em seguida, enlouquecer de dor - Orestes tem
um excelente papel também de amante frustrado, joguete das astúcias de Hermíone
e do próprio Pirro, desejoso este de se ver livre de Hermíone
para poder usufruir da viúva de Heitor, Andrómaca, como já foi
dito, impecável na fidelidade ao marido morto, figura bem trágica em ambas as
peças – severa e implorativa para com a altiva Hermíone e o pai desta, Menelau,
na peça de Eurípedes, suplicante e firme na de Racine, o filho – Astyanax
- sendo a razão do seu desespero no dilema entre salvar o filho ou casar
com Pirro.
Transcrevo um excerto da fala
de Andrómaca, de Eurípedes, apenas para mostrar quanto era severa,
corajosa e amante do seu filho, na sua resposta a Menelau (2º
Episódio) em que Menelau lhe apresenta o filho que, diz, será
sacrificado se Andrómaca não sair do altar da deusa Tétis, onde
se refugiara, dando a sua vida pelo filho, chantagem de homem cobarde, como lho
revelará a intrépida Andrómaca, simultaneamente figura frágil de vítima
traída, a lembrar as falas de Inês de Castro na peça de António
Ferreira:
ANDRÓMACA: Ai de mim!
Cruel sorteio e escolha de vida me apresentas: se me toca em sorte viver, sou
miserável; se me não toca, sou infeliz. Ó tu, que graves acções praticas por
pequenos motivos, crê-me: Porque me
matas? Qual a causa? Que cidade hei traído? Qual dos teus filhos matei? E que
casa incendiei? Partilhei, forçada, o leito com o meu senhor; e então não é a
ele, que é o culpado disto, mas a mim que dás a morte? Deixas ficar a causa, e
voltas-te para o efeito, que lhe é posterior. Ai que desgraças, minha
infortunada Pátria! Como sofro horrivelmente! Porque havia eu de dar à luz e a
este meu fardo juntar uma carga dobrada? Mas porque choro assim e não seco as
lágrimas e penso nos males presentes? Eu que, do alto das muralhas, vi morrer
Heitor, atrelado ao carro, e Troia lamentavelmente incendiada, eu que, como
escrava, embarquei nas naus argivas, arrastada pelos cabelos; e quando cheguei
à Ftia, vi-me unida ao assassino de Heitor! Que prazer tenho, pois, em viver?
Para onde devo olhar? Para as desgraças presentes, ou para as passadas? Só este
filho me restava, como luz da minha vida; vão-no matar aqueles a quem tal
parece conveniente. Mas, por certo, não o será, pela minha miserável vida;
nele, de facto, reside a minha esperança, se me salvar, e será desonra para mim
não morrer pelo meu filho...
A “Andromaque” de
Racine é toda ela uma explosão de paixões, numa análise psicológica de
extraordinário relevo, em que imperam os alexandrinos cheios de ritmo e organização
do pensamento, em que cada personagem vai desbravando a sua caminhada e a sua
causa amorosa ou as suas razões de súplica. Apenas um breve exemplo desse
exercício literário de paralelismo frásico, com ORESTE dirigindo-se a PYRRHUS,
no objectivo de o fazer entregar o filho de Heitor à ira grega: “Et qu’à vos yeux, Seigneur, je montre quelque joie / De
voir le fils d’Achille et le vainqueur de Troie. / Oui, comme ses exploits nous
admirons vos coups: / Hector tomba sous lui, Troie expira sous vous.» ...
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