Interessante este artigo de João
Miguel Tavares sobre as vítimas de uma tragédia que os governos que se
respeitam registam com respeito, quer em pedestal simbólico abrangente, de
anonimato por falta de precisão nos dados, caso do “Soldado Desconhecido”
da 1ª Guerra Mundial, quer por meio de um Memorial de gravações em
bronze de nomes identificados para celebração anual conjunta de homenagem pelos
familiares, no local – modificado - da tragédia, caso do 11 de Setembro ou das vítimas do Holocausto, de quem os
familiares sempre desejaram aflitivamente
recuperar a memória.
Não assim o caso das vítimas
de Pedrógão Grande, que foram muitas, embora não provocadas pela
crueldade insana que vitimou as outras, mas antes fruto da nossa habitual
incúria e daí que seja recusada uma idêntica possibilidade de evocação, segundo
comentário de Marisa Martins o que, naturalmente, constituiria mancha na
governação, que convém ocultar. É contra esse facto que protesta João Miguel
Tavares, jovem educado em princípios de humanismo, a que os seus
comentadores de esquerda preferem taxar de mariquice, ao jeito rebuscado das
“tias de Cascais”. Com efeito, a escassez de ideias da maioria dos
comentaristas prefere humilhar com despropósito - que nem sequer chega a
ofender, de tão inferior qualidade se revela - a construir uma qualquer justificação
de racionalidade.
O que me parece é que os nomes
dos mortos de Pedrógão não desaparecerão tão cedo da lembrança dos seus
respectivos familiares, que os chorarão em muitas outras ocasiões menos
artificiais e mais sinceras de saudade e de evocação do horror vivido, mas a
hipótese de um pedestal de homenagem serviria, entre nós, que somos rancorosos,
de revindicta propiciadora não de emoção pelos entes perdidos, mas de ímpeto menos
sereno contra os responsáveis pelo desastre.
Para além disso, são tantas as
tragédias vividas pelos humanos por causas naturais - tsunamis, ciclones,
avalanches… - tantos os mortos dos
naufrágios, tantos os desastres mortais provocados por uma natureza muitas
vezes adversa, tantas, também, as mortes cada vez mais resultantes de ataques
inesperados de semeadores especializados do terror, no mundo inteiro, que me
parece injusto privilegiar apenas alguns entre tantos, dos apanhados nas malhas
gigantescas do terror.
Outro argumento implica as
cremações cada vez mais vulgares, em vez dos enterros clássicos, de retorno à
terra, do pó que somos para em pó sermos, de que se perde tantas vezes o rasto,
nos espaços dos cemitérios, cujos túmulos, ou locais das cinzas, os familiares
vão ignorando e esquecendo, no mundo vão, tantas vezes de um sentimentalismo de
fogo de vista. Ou tão somente de recordação do passado acompanhando as vidas
ainda presentes, na grande roda do destino.
OPINIÃO
Dos mortos e da memória
Este esforço para
individualizar as vítimas de uma catástrofe, de um atentado ou de uma guerra é
comum a todas as culturas onde a preservação do passado é um valor essencial.
João Miguel Tavares
Público, 1 de Agosto de
2017
Quando visitamos o Memorial
às vítimas do 11 de Setembro, em Nova Iorque, encontramos os nomes de todas as
pessoas que morreram nos atentados inscritos nos longos parapeitos de bronze
que rodeiam as pegadas das Torres Gémeas, agora transformadas em duas enormes
piscinas. São 2996 nomes no total, entre vítimas do World Trade Center (2001 e
1993), do Pentágono e do Voo 93. Todas as manhãs, os funcionários do Memorial
colocam uma rosa branca no nome de cada pessoa que faria anos naquele dia
– birthday roses, chamam-lhes –,
convidando os visitantes a saber mais sobre ela: quem era, o que fazia, que
família tinha, quais os sonhos que ficaram por cumprir.
Este esforço para
individualizar as vítimas de uma catástrofe, de um atentado ou de uma guerra é
comum a todas as culturas onde a preservação do passado é um valor essencial.
Os muitos memoriais que prestam homenagem às vítimas do Holocausto têm a mesma
preocupação: não deixar que os mortos se percam no anonimato dos milhares e dos
milhões, por mais esmagadores que eles sejam. “As pessoas não são números”,
dizia em 1995 um destacado membro do Partido Socialista que chegou a
primeiro-ministro.
É por isso que quando ouço
Marisa Matias declarar, no seu comentário da TVI24, que a lista dos mortos de
Pedrógão não deve ser pública, “por respeito às vítimas e às famílias das
vítimas”, faço figas, por uma vez na vida, para que aquelas sejam apenas
palavras cínicas, de mera gestão de um conflito político, e que não
correspondam verdadeiramente ao seu pensamento. Seria demasiado triste,
demasiado ignorante e demasiado estalinista. “Não se ganha absolutamente nada
em ter a lista divulgada”, disse Marisa Matias, demonstrando um espectacular
desconhecimento daquilo que é um ser humano, do trabalho milenar para que cada
vida seja considerada preciosa, e de como esse trabalho passa necessariamente
por dar um nome a cada corpo e uma história a cada nome.
Há uma frase muito citada
de Mário de Carvalho que nos alerta para o perigo das generalizações: “Convém
não confundir género humano com Manuel Germano.” Mas o oposto também é
verdadeiro: as abstracções comovem pouco e não mudam um milímetro o nosso
comportamento. O mais precioso é o que nos está mais próximo – não o género
humano, mas o Manuel Germano. É por isso que já o Evangelho de Lucas nos
oferece a promessa – religiosa, mas também profundamente individualista – de
que há um Deus que traz todos os nossos fios de cabelo contados.
Eu já enjoei e já enojei de
discutir a importância cívica de conhecer as vítimas do 17/6 e as circunstâncias
em que morreram. Não vou voltar ao assunto. Faço, contudo, questão de lamentar
mais uma vez a incapacidade de tanta gente em perceber uma coisa tão óbvia.
Portugal tem um gravíssimo problema de memória. Não é por acaso que dois dos
livros de ensaios mais populares das últimas décadas – O
Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, e Portugal,
Hoje – O Medo de Existir, de José Gil – versam precisamente
sobre a conturbada relação do país com a sua memória, e sobre esta dupla
dificuldade: 1) perceber o que nos acontece; 2) inscrever os acontecimentos na
memória colectiva e evoluir a partir deles. Queda do império, Estado Novo,
Sócrates, troika, Pedrógão Grande – qualquer que seja o trauma, nós deixamos
com a maior facilidade o passado evaporar-se e as responsabilidades por apurar.
A nossa grande especialidade é mesmo essa: inalar o nevoeiro e seguir em
frente. Como, mais uma vez, se está a ver.
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