O engraçado texto de João
Miguel Tavares sobre uma alegada letra machista de Francisco Buarque de Hollanda provocou
em mim uma onda de nostalgia, ao lembrar-me de Carlos Ramos, que fui logo
escutar na Internet, para reviver as suas emoções de infidelidade conjugal,
expressas de uma forma tão delicada e abrangente que logo nos faz aderir a um
pensamento de reciprocidade na questão adulterina, e daí que se entenda o seu
fado marialvesco antes como um receituário amável de feminismo revanchista.
Transcrevo-lhe a letra, e, juntamente, um daqueles comentários de uma esquerda
assumida, nos seus punhos de renda de defesa dos bons costumes, que toda se esganiça
contra o terra-a-terra sadio de João Miguel Tavares, moço valente e bem formado
e suficientemente lúcido para não se deixar influenciar pela doutrinação
deprimente que geralmente se protege de S. Tomás: “Olha para o que ele diz, não
para o que ele faz”.
Chico Buarque, o
perigoso machista
Os estilhaços dessa literalidade
idiota chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por entender como
nenhum outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum homem está a
salvo.
João Miguel Tavares
22 de agosto de 2017
Francisco Buarque de Hollanda decidiu
apresentar o seu próximo disco com o lançamento de um tema chamado Tua
Cantiga. O que ele foi fazer. Tua Cantiga, história singela de um homem de
família perdidamente apaixonado por outra mulher, tem lá pelo meio os seguintes
versos: “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo
mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Foi o que bastou
para o artista que em tempos foi classificado como “unanimidade nacional” ser
acusado de estar a promover em 2017 o velho machismo de 1977. Escreveu
Luciano Trigo no Globo: “Chico parece preso a uma visão da mulher – e
da relação homem-mulher – dos anos 70 do século passado (…), cujo romantismo se
baseava na desigualdade e na assimetria de papéis entre homens e mulheres.”
Parece que a mulher trabalhadora
brasileira com menos de 30 anos já não vai em conversa de amores assolapados, e
que proferir frases como “na nossa casa serás rainha” (também consta da
letra) é uma ofensa para qualquer mulher devidamente empoderada. “Largar
mulher e filhos? Que cafajestada é essa?”, pergunta Luciano Trigo. A
produtora Flávia Azevedo, escrevendo no HuffPost Brasil, concorda: “Essa
mulher que ele evoca, não sou eu. Nem a que somos nem a que queremos ser. Essa
que precisa ser salva, que sonha com o reino do lar, essa que goza ao ouvir
‘largo mulher e filhos’.” A obsessão com a linguagem por parte da
esquerda mais progressista está a ter esta consequência estranhíssima: torna o
seu discurso muito próximo do da direita conservadora. Mesmo um defensor de
Chico Buarque disse que Tua Cantiga era uma “canção sobre dois
adúlteros”, expressão que já não ouvia desde os tempos em que o arcebispo de
Braga tomava posições públicas sobre O Império dos Sentidos.
Chico Buarque já respondeu à polémica,
com a inteligência e o humor que Deus lhe deu, reproduzindo no seu Facebook um
diálogo que diz ter “entreouvido na fila de um supermercado”: “Será que é
machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário.
Machismo é ficar com a família e a amante.” A piada é boa, mas não chega
a ser verdadeira. Ficar com a família e a amante não é machismo, tal como ficar
com a família e o amante não é feminismo – é apenas traição. E a traição, até
há bem pouco tempo, era algo que somente dizia respeito aos envolvidos.
Contudo, num mundo onde as palavras estão sob uma vigilância que já não se via
desde os tempos da Inquisição, não só uma simples canção ficcional passa a ser
um manifesto machista, como a argumentação alegadamente “feminista” e
“empoderada” é ridiculamente parecida com a do Catecismo da Igreja Católica.
Os grupos oprimidos e seus defensores,
SJW (Social Justice Warriors) para os amigos, estão diariamente a bombardear o
muro que separa as palavras dos actos, fazendo equivaler uns e outros. Que isto
seja típico de uma mentalidade totalitária parece não lhes passar pela
cabecinha. Os estilhaços dessa literalidade idiota chegaram agora às canções
do pobre Chico, antes amado por entender como nenhum outro a condição feminina.
Se até ele é machista, nenhum homem está a salvo. Antigamente,
eram só os cristãos que iam à missa pedir perdão por pensamentos, palavras,
actos e omissões. Os novos sacerdotes do politicamente correcto não querem
menos do que isso – exigem que nos ajoelhemos aos pés dos infinitos deuses dos
SJW e peçamos perdão não só pelo que fizemos, mas também pelo que dissemos,
pensámos e cantámos no duche.
Não Venhas Tarde
"Não
venhas tarde!",
Dizes-me tu com carinho,
Sem nunca fazer alarde
Do que me pedes, baixinho
"Não venhas tarde!",
E eu peço a Deus que no fim
Teu coração ainda guarde
Um pouco de amor por mim.
Dizes-me tu com carinho,
Sem nunca fazer alarde
Do que me pedes, baixinho
"Não venhas tarde!",
E eu peço a Deus que no fim
Teu coração ainda guarde
Um pouco de amor por mim.
Tu
sabes bem
Que eu vou p'ra outra mulher,
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer,
Tu estás sentindo
Que te minto e sou cobarde,
Mas sabes dizer, sorrindo,
"Meu amor, não venhas tarde!"
Que eu vou p'ra outra mulher,
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer,
Tu estás sentindo
Que te minto e sou cobarde,
Mas sabes dizer, sorrindo,
"Meu amor, não venhas tarde!"
"Não
venhas tarde!",
Dizes-me sem azedume,
Quando o teu coração arde
Na fogueira do ciúme.
"Não venhas tarde!",
Dizes-me tu da janela,
E eu venho sempre mais tarde,
Porque não sei fugir dela
Dizes-me sem azedume,
Quando o teu coração arde
Na fogueira do ciúme.
"Não venhas tarde!",
Dizes-me tu da janela,
E eu venho sempre mais tarde,
Porque não sei fugir dela
Tu
sabes bem,
Que eu vou p'ra outra mulher.
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer.
Que eu vou p'ra outra mulher.
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer.
Sem
alegria,
Eu confesso, tenho medo,
Que tu me digas um dia,
"Meu amor, não venhas cedo!"
Eu confesso, tenho medo,
Que tu me digas um dia,
"Meu amor, não venhas cedo!"
Por
ironia,
Pois nunca sei onde vais,
Que eu chegue cedo algum dia,
E seja tarde demais!
Pois nunca sei onde vais,
Que eu chegue cedo algum dia,
E seja tarde demais!
Comentário:
DNG
22.08.2017
Francisco Buarque de
Hollanda. Quem é este senhor? O que escreveu, o que cantou, o que viveu. Onde é
conhecido, onde foi aplaudido, quem comoveu? Quantas borgas, vinhos, desenganos
e loucuras de uma vida no palco. O palco do teatro da vida. Quantos maricas
conheceu, com quantos estabeleceu amizades apesar do preconceito? Mas há o
lixo. Lixo? Que lixo? De que não se enxerga claro. Lol. Força JMT. Atira.
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