Na minha memória. Mas, com efeito, parece que anda alguém no PSD a querer
substituí-lo, o que me parece mais um desacerto do nosso despudor e parolice. O
retrato que dele faz Maria João Avillez é justo. Bem como da sua descrição do
PPD, daqueles tempos de muita aplicação, em que eu apostava no CDS, como mais
próximo do sentido da “pátria” em que eu me revia. Para mim, pesem embora as
centenas de mensagens que o artigo de M.J.A. provocou no OBSERVADOR, na sua
maioria cavalheirescamente irónicas ou severas com a autora, lembrando outros
dados das suas próprias memórias e convicções de bombardeiros à cata de melhor
refúgio aquando da revolução vermelha (na cor dos cravos, tão somente, a
prestação ideológica menos vistosa, tenho a certeza), mas sobretudo
raivosamente irónicos com Passos Coelho, o destruidor das famílias. M. J.
Avillez o defende bem, não preciso de lembrar. Só lembro que foi no tempo de
Passos Coelho que finalmente me senti mais orgulhosa de nós, pesem
embora os cortes que tive no vencimento, para pagar dívidas que o Estado fizera
de muitas e variadas maneiras, sem que ninguém assumisse a nossa
irresponsabilidade e falcatrua. E, pelos comentários irónicos a M.J.A., parece
que não assumem ainda, cientes só dos seus direitos, mesmo que estes
implicassem assustadora dívida. Passos Coelho assumiu e pagámos, com o
sacrifício de todos, na rigidez do seu ressarcimento. E por isso é odiado por
muitos, que só se revêem nos seus problemas, sem a hombridade precisa. Sinto pena
e vergonha. Felizmente que há muitos ainda que estimam Passos Coelho,
precisamente pela a sua integridade. Nos comentários irónicos a Maria João Avillez,
houve quem respondesse ironicamente à sua pergunta do título. A minha resposta é não. Sem
ironia. Com veneração.
Já “se” desistiu de Passos Coelho?
OBSERVADOR, 1/8/2017
O país não precisa de
dois primeiros ministros a digladiarem-se mas de um líder da oposição a marcar,
como no futebol – e no caso vigente, a marcar impiedosamente – o
primeiro-ministro.
1. É bom recordar estas coisas e eu lembro-me bem delas. Nos idos de 1974 o
PPD começou por ser uma resposta. Dada por aquele corpo intermédio da sociedade
que na altura exista em Portugal e começara a ganhar consciência cívica e
política com a Ala Liberal, a Sedes, a JOC e a JUC, encontrando diversos
espaços de intervenção. Pessoas que não se reviam numa solução marxista nem em
projectos comunistas ou socialistas. Profissionais liberais, médicos,
advogados, economistas (retive o brilho de muitos deles quando, já deputados,
se sentaram no hemiciclo de S. Bento) mas também pequenos proprietários,
pequenos comerciantes. Uma malha forte de gente já com uma independência
material ou profissional e vontade de intervir. O PSD começou por isto e por se
implantar nacionalmente, primeiro no norte, depois, país fora. E quando
procedeu à sua própria exteriorização, ao contrário dos outros partidos que iam
nascendo de dentro para fora, ela ocorreu de fora para dentro e sem uma
ideologia pré-existente. Doutrinariamente nasceu assim uma impressão digital
originada pelo cruzamento do que fora o pensamento da Sedes, do que era a doutrina
social da Igreja, do que significara a Ala Liberal, à mistura com tresmalhados
do antigo regime, sem expressão, nem influência. Foi essencialmente esta mescla
— e não um ideário, uma ideologia, uma cartilha — que alimentou, e mobilou, o
pensamento político dos primeiros homens do PSD.
E
havia Francisco Sá Carneiro. Ou melhor, havia sobretudo – ou muito — Sá
Carneiro. Teve a mestria de ir tecendo e
levantando o que hoje poderíamos apelidar de social-democracia portuguesa, na
altura muito marcada pelo humanismo, o personalismo, pelo primado da pessoa.
Se de um ponto de vista ideológico isto pode surgir como uma síntese
relativamente modesta, ela não é porém senão um razoável resumo daquilo que era
o genuíno pulsar desse vasto grupo que as circunstâncias e o tempo
transformariam num bravo, robusto e bem sucedido partido político. Uma boa
parte dos portugueses revia-se nessa “resposta” e identificava-se com esse
espírito. E rendiam-se — quando se rendiam — a Sá Carneiro, que interpretou o
que de bom ou muito bom havia no país, amalgamando, Portugal fora, energias e
vontades. E dividindo, bom sinal.
Assisti
a tudo com a sorte dos meus postos de observação serem particularmente férteis:
redações dos jornais, Parlamento, rua, sedes partidárias, entrevistas. E o “terreno”, claro, que nada substituía porque o “terreno” era de
onde olhávamos o “povo” a olhar os políticos. Em campanhas, discursos,
caravanas, comícios, por aí fora. Era tudo novo, parecia-nos tudo exaltante
mesmo que não fosse, como não foi. Mas também me lembro que, durante muitos
anos, a qualidade dos dirigentes do PSD, a fibra da sua militância, o carácter
de Francisco Sá Carneiro e a explícita preferência pela reforma em vez da
revolução e pela ruptura como instrumento político, conferiram um invejável
estatuto ao PSD. Nascia uma marca. Nada (lhe) foi fácil, a
começar por não ser um partido de esquerda (ainda hoje, que vergonha, o
maior pecado que alguém pode cometer nesta desgraçada pátria) e a rematar
na índole tumultuosa do próprio PSD, factor distintivo que sendo real, a
natureza humana por si só não explica. A verdade é que pouco me lembro de um
PSD sereno e muito me recordo de aparatosas vicissitudes numa caminhada quase
sempre acidentada: crises, doenças graves, bater de portas, dissidências, zangas,
amuos, saídas e regressos, saídas sem regresso, mudanças de liderança, mudanças
de rumo.
Mas o
PSD convencia, mas o PSD reformava, mas o PSD ganhava. Ganhou, obteve maiorias absolutas, fosse coligado — como ocorreu com a
primeira AD de Sá Carneiro em 1979 — ou aventurando-se sozinho, como em 1987 e
1991 com Cavaco e as duas maiores maiorias absolutas destas quatro décadas.
Não é
dizer pouco: alguma coisa de forte teria que estar ancorada nas vontades do
militante e do eleitor, explicando esta concreta escolha eleitoral; algo se
cruzaria entre o que o PSD propunha e representava e aquilo que grande parte do
eleitorado entendia ser melhor para o país.
2. Não sei que terá sido feito de tudo isso, mas escusado será dizer que hoje
se vive um ocaso. Triste como todos os ocasos, mas não o único pois não
se pode desligá-lo da actual mediocridade da classe política; da representação
parlamentar que a reflecte e amplia; da perda gradual de poder de convocatória
dos partidos, da sua falta de atractivo; da falta de qualidade da nossa
democracia, anquilosada e doente, incapaz de se regenerar, ao menos de se
auto-analisar. Não, não é só o PSD, mas julgo ser particularmente o PSD.
Gastou-se? Desgastou-se? Deixou-se capturar pela sua natureza de “partido
tradicional” quando os ventos reclamam outra vida? Houve um deslizamento da sua
capacidade de comunicar como aqueles deslizamentos de terras? Dificuldade em
criar um discurso com uma arquitectura que traduza a complexidade dos tempos?
Tornou-se politicamente incredível ao ponto da direcção política não ter
conseguido um candidato presidencial a seu gosto? De não ter “achado”
candidatos a Lisboa e ao Porto (para só citar estes dois casos de falhanço
convocatório)? De ter sido“obrigado” a escolher Hugo Soares porque o que aí
vinha era “bem pior”?
O PSD
perdeu o fôlego, a fibra, o norte? O PSD perdeu o quê, mesmo tendo ganho as últimas eleições?
3. Os anos de chumbo que Pedro
Passos Coelho levou às costas, com os cofres vazios e cercado por vários graus
e géneros de manipulação, tiveram dois efeitos antagónicos: por um lado
levaram-no a ele, Passos, e ao país, a bom porto — o primeiro ganhou as
eleições e o segundo ganhou contas certas e credibilidade interna e externa;
por outro lado, deixaram um travo assaz amargo nos bolsos e nas memórias que
António Costa e a extraordinária geringonça aproveitaram como se fosse o último
gesto político que lhes restasse: com volúpia, mentira e vertigem.
Recorrendo
à mais voraz das manipulações, fizeram crer que havia má e boa austeridade e que
o PSD, aplicando e impondo “intencionalmente” (as aspas são minhas) a má,
causara sacrifícios desnecessários aos portugueses por culpa do seu líder.
Resta que o PS, o seu chefe, o seu governo e os seus joviais companheiros de
estrada, vivem hoje em grande parte amparados nos frutos da aplicação dessa
austeridade. Respirando pela folga de oxigénio que ela deixou, permitindo
reversões, aumentos e outros brindes que os nossos netos pagarão.
Mas o
certo é que algum anátema da governação PSD/CDS fez caminho: por mais básico
que também pareça, há gente que acredita que Costa faz bem e Passos fez mal. Tão simples e linear quanto isto. Acredita até que foi o PSD ou a
“direita” quem chamou a troika e escolheu a dieta, mas tem de se continuar a dizer
e escrever, cem vezes, mil vezes, desmentindo a conveniente mentira. Pelo menos
quem ainda não se tiver demitido de alguma decência e guardar um resto de
seriedade na distinção entre a verdade e a mentira.
Não
sei como acabará a geringonça nem é isso que agora me interessa — para olhar e
zelar por ela, lá está um omnipresente Presidente. E mesmo que agora
pareça menos afeiçoado (à geringonça), ainda a mima o suficiente para ela
continuar a sentir-se incólume (a tudo).
Também
não me interessam aqui hoje as trafulhices miseráveis do PSD e dos seus
caciques, que muito envergonham qualquer um, mas de tal modo porém pisadas,
repisadas e ampliadas que se julgariam exemplo único na vida partidária. Hélas,
não são. (Não é desculpa para a feia miséria, mas basta atentar no eloquente
silêncio socialista a respeito das “facilidades” caciqueiras na caça aos votos
para se perceber que só as formas de caciquismo variam.)
Quanto
às autárquicas sigo-as por obrigação profissional. Serão o que forem. E como
cidadã distanciei-me de Lisboa a partir do momento em que percebi que as
direitas, não tendo compreendido que Fernando Medina era derrotável, nem
discorriam, nem agiam como tal. Ter-se-ia precisado de uma vitória. Ela teria
sido possível. Foi um erro. E uma pena.
4. Interessa-me Passos Coelho, uma espécie de mistério, embora – reconheço — a
palavra seja grandiloquente. Não se
percebe nem se justifica o (aparente) desbaratamento do seu invejável capital
político, acumulado pelo que foi capaz de fazer no país e pelo país. Sem
lhe ocorrerem estados de alma , desistências ou tentações eleitoralistas para
alterar o acerto e o rumo da governação, o que não lhe impediu nova vitória no
fim do pesadelo troikiano. Só isso bastaria para uma assinatura.
Mas
agora há, como dizer?, uma teimosia, uma persistência que já não cabem na
definição do “ele é assim e não muda”; ou foi “assim” que ganhou sempre.
Talvez. Mas o mandamento já não parece servir o tempo presente que não é de
governação mas de oposição. O discurso deixou-se espartilhar no permanente anúncio
da desgraça, o combate baseia-se em certezas que não provaram sobre medidas
políticas alheias; a visão toldou-se de previsões arriscadas de fins
prematuros. Há como que um desacerto: Passos Coelho age como
ex-primeiro-ministro no palco da oposição onde deveria ser o seu actor
principal. Quem aí tem estado é muito o ex-chefe do governo e pouco o líder da
oposição. Não é nada a mesma coisa. O primeiro deveria resguardar-se, o
segundo, vestir a pele apropriada.
O
país não precisa de dois primeiros ministros a digladiarem-se mas de um líder
da oposição a marcar, como no futebol — e no caso vigente, a marcar
impiedosamente – o primeiro-ministro. Precisaria, na oposição, de outra
postura, iniciativas que surpreendam, bons temas, mentes com a percepção do
estado do mundo, gente mais nova, inovação, janelas abertas. Deixando em
pousio e bem preservadas as qualidades e características específicas que
fizeram de Pedro Passos Coelho um chefe de governo que fará história, para o
caso de voltarem a ser de novo precisas.
Pode
ser que eu me engane, pode ser que “ser sempre igual a si mesmo” compense
largamente; pode ser que a estratégia dê frutos quando for tempo de colheita.
E
pode ser até que por de trás da montra da media e do verbo saturante de comentadores
e comentários, haja uma parte do país que continue a rever-se na constância,
sentido de Estado e seriedade de Passos Coelho e não tenha desistido dele,
apesar da sua prestação ser hoje quase inversamente proporcional aos anos de
S.Bento. (Aliás a pergunta mais interessante
a fazer seria a de tentar perceber se já “se” desistiu de Passos Coelho.
Perceber mesmo: furando a muralha dos ecrãs, passando a floresta do comentário
saindo do perímetro da geringonça, ignorando a desinformação, ouvindo o país e
não quem os vigilantes da geringonça consentem que se ouça.)
E
pode também ser que o PSD não se ressinta deste tipo de oposição. Refiro-me ao
PSD de Passos Coelho. Há outros PSDs, sim, mas deles apenas se sabe que
conspiram. Ignorando-se de momento aquilo que exactamente eles propõem — e
nesse caso aconselharia a troca de quem está, por quem conspira. Sabe-se
apenas que cultivam a ilusão pueril mas pronta a servir de que, com eles “lá”,
tudo mudaria. Ou que quando as coisas vão “mal” basta apear a liderança para
logo a seguir o partido cavalgar dez pontos nas sondagens.
Parece
mentira mas é verdade.
5. Seja como for, ocorra o que ocorra, teria sido muito bom poder vir a contar
em Outubro com algumas notícias políticas. Boas notícias. Fortes como vitórias.
Vinham a calhar à direcção do PSD e ao próprio PSD; ao CDS e à sua actual
liderança; às direitas que não militam em partidos mas se interessam pela
política ao serviço do país; aos portugueses que não se revêm na ficção
socialista mesmo que as sondagens digam que eles não existem. Tudo isto
contabilizado, não seria pouca gente.
Por
isso se estranha tanto, que tão pouco se tenha pensado nela.
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