Um artigo de muito interesse
na nossa distracção, que de vez em quando acorda para estes temas que já
fizeram a nossa estranheza, sobretudo pela acutilância das práticas sexuais no grande
matagal em que se tornou o habitat social, de revelações à vista, tais como os
animais da mata, ou mesmo os domésticos, por alturas do cio, sem pruridos de
decência, e a quem chamamos de irracionais. Fez bem João Miguel Tavares, em se
informar e nos informar, nesta sua caricatura de uma sigla sucessivamente
acrescida de novas maiúsculas, ainda por pruridos de atavismo provinciano, mas,
simultaneamente de orgulhosa provocação da prática progressista da nossa
visibilidade elementar. Fico grata a J. M. T. por estes ensinamentos preciosos.
Breve história da
comunidade LGBTQQIAAP
Foi algures na passagem do
LGBT para o LGBTI que muita gente, como eu, começou a ter dificuldade em
acompanhar a subtileza de certas reivindicações.
João Miguel Tavares
Público, 8 de agosto de
2017
O momento fundador daquilo a que se pode chamar uma comunidade gayportuguesa
ocorreu a 13 de Maio de 1974, na última página do Diário de Lisboa, com a
publicação do manifesto “Liberdade para as minorias sexuais”. O texto foi
escrito pelo recém-formado Movimento de Acção Homossexual Revolucionária
(MAHR), que reivindicava o direito à “livre prática homossexual” e garantia orgulhosamente
ser ela a “força mais destrutiva” da “moral sexual burguesa”.
O MAHR reclamava para si “mais de 1000 militantes no Porto e em Lisboa”
(o manifesto especificava que dias antes, no 1.º de Maio do Porto, tinha
surgido um primeiro cartaz a pedir “liberdade para os homossexuais”), mas os
seus líderes optavam prudentemente pelo anonimato, “até um reconhecimento
mínimo da nossa integridade física e social”. O manifesto concluía com um
entusiástico “viva a Homossexualidade, viva a Revolução” — mas a revolução não
estava pelos ajustes. Diz a lenda que Galvão de Melo terá afirmado na RTP, em
nome da Junta de Salvação Nacional, que não tinha sido para isso que se fizera
o 25 de Abril.
Estava enganado, felizmente: também foi para isso que se fez o 25 de
Abril. Mas os direitos dos homossexuais tiveram de esperar, e muito. A
descriminalização da homossexualidade ocorreu apenas oito anos depois, em 1982,
década em que o advento da sida marca tragicamente a comunidade gay, mas
também lhe oferece a visibilidade que nunca havia tido até então. A
discriminação estava à frente de todos. No início dos anos 90, enquanto o
filme Filadélfia comovia o planeta e Tom Hanks levava o Óscar para
casa, o PSR constituía o Grupo de Trabalho Homossexual.
Foi a década em que tudo realmente começou a mudar na luta pelos
direitos dos gaysportugueses: fundação da ILGA (1996) e de outras
organizações homossexuais, primeiro Arraial Pride, que evoluiria depois para a
Marcha do Orgulho Gay, aprovação da lei das uniões de facto, contemplando
casais homossexuais (1999). Parece que foi há uma vida, mas passaram-se apenas
20 anos. Desde então, foi aprovado o casamento gay (2010), a adopção
por casais homossexuais (2016), a revisão das regras da doação de sangue.
Simplesmente, à medida que estas conquistas iam sendo alcançadas, as
reivindicações foram-se tornando cada vez mais específicas — já não se tratava
apenas de comportamentos, mas de vigiar obsessivamente a linguagem. As próprias
questões de género tornaram-se tão absurdas que a designação da comunidade
evoluiu de gay para LGB, de LGB para LGBT, de LGBT para LGBTI
(lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais), e daí para
coisas tão delirantes quanto LGBTQQIAAP (em inglês: Lesbian, Gay,
Bisexual, Transgendered, Queer, Questioning, Intersex, Asexual, Allies,
Pansexual). No site da ILGA encontrei o LGBTI+, sendo que o “+” está ali para
significar “etc.”, ou seja, todos os géneros que as pessoas sintam não estarem
devidamente contemplados nas descrições anteriores.
Foi algures na passagem do LGBT para o LGBTI que muita gente, como eu,
começou a ter dificuldade em acompanhar a subtileza de certas reivindicações.
Tristemente, a recusa da explosão alfabética e do policiamento das palavras
passou a ser razão mais do que suficiente para se ser classificado como
homofóbico. Após uma história dura, mas feliz, de luta por direitos
justíssimos, os membros mais activos da comunidade LGBTI+, e seus
simpatizantes, foram-se transformando em burocratas da indignação. No próximo texto
tentarei explicar porquê.
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