quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Uma figura de topo


António Bagão Félix, numa aparência modesta, de quem quase pede desculpa para falar, é uma figura que se impõe pela firmeza de opiniões que, sem exaltação nem agressividade, constituem, todavia, autênticas pedradas no lamaçal em que nos afundamos, de vaidades e atropelos a cada passo, que ele se não inibe de desmascarar, numa voz viva e certeira, de quem não receia assumir princípios inamovíveis de respeito pelos valores humanos. Acabo de o ouvir num programa de Ecclesia, orientado por Paulo Rocha, que julgo ter ouvido, na altura, e que a Internet reproduz no You Tube – uma análise do ano 2016 através de sete palavras iniciadas por E - Esperança, Eutanásia, Ética, Exemplaridade, Exortação, Economia, Ensinamento – de uma concepção social firmada na doutrinação da Igreja e na própria ética – constituindo uma lição “topo de gama”, para usar um atributo do artigo seu que transcrevo a seguir, onde se salienta, a par da mestria da argumentação didáctica e ética, a graça de um humor crítico igualmente magistral. O mesmo direi do artigo a seguir – sobre a nossa imprevidência e inércia, a propósito de uma árvore assassina sem culpa.
Uma figura curiosa, a de Bagão Félix, no desassombro com que defende velhos princípios, no olhar vivo e voz educada com que abrange uma amplitude de saberes, a que não falta a argúcia do humor desmascarador dos atropelos.

Topos de gama e gamas de topo

António Bagão Félix

Público, 17 de Agosto de 2017,

Gama, terceira letra do alfabeto grego, mas também expressando uma série de coisas da mesma categoria, ordenadas segundo o seu valor. Topo, entre outras significações, quer dizer o grau mais elevado que se pode alcançar. Topo de gama, uma expressão recentemente lexicalizada de carácter qualificativo, que atribui a um dado objecto um lugar preferencial numa determinada escala.
O tempo de agora convive bem com esta desengonçada expressão. A obsessão topo-gamista invade tudo e enevoa cabeças. Topo de gama para automóveis, topo de gama para andares de luxo, topo de gama para equipamentos electrónicos, topo de gama para telemóveis, topo de gama para as “bimby” e respectivos ersatzes, topo de gama para canídeos, topo de gama para comida de animais de estimação, topo de gama nos lugares dos estádios, topo de gama para topos de gama …
As regras são implacáveis na “topolândia”. Quem não alinha (por não poder ou não querer) com esta bitola consumista é antiquado, parolo, rústico, pelintra ou pobretana. A marca de água neste novo reino do gastar e do trocar é o “certificado topo de gama”, adquirido algures e exibido por toda a parte. Tem a vantagem de se mostrar por símbolos exteriores, por sinal bem visíveis e assinalados. Não exige, por seu lado, atributos interiores e invisíveis que são suporte da vida fora da efemeridade dos topos e das gamas. O coleccionador de topos de gama veste bem e calça melhor. Fala de arte e cita Montesquieu. Exibe, garbosamente, um insondável kit de gadgets, incluindo o último grito da moda tecnológica segundo a revista da especialidade. Fala abundantemente com estrangeirismos e aprimora a fragrância matinal.
Evidentemente que o topo de gama pode ser mais de topo do que de gama, ainda que de gama, enquanto tempo de um verbo, se possa sempre dizer algo mais. Sobretudo, considerando a convergência, que por vezes existe, entre o topo de gama e a gama fiscalmente declarada do salário mínimo nacional, ou seja, o rendimento de menor grana, mas de maior gama.
O verbo topar é inseparável do topo de gama. Porque este só faz sentido se for topado. Quer dizer, falado, comentado, invejado, atraído, comparado. A relação com outro verbo – gamar – não é absoluta, mas a sua correlação é crescente. Quer dizer, gamar pode ser uma condição necessária para se chegar ao topo de gama, dependendo, obviamente, da gama e do gamão. Topam?
Há também os topos de gama que, recorrentemente, levam uma topada fiscal que os torna inacessíveis ao comum dos mortais, a não ser se exibirem passaporte e recursos topos de gama chineses, franceses, russos e de outras paragens.
Falando em impostos, é verdade que os há também topo de gama. Mas esses ninguém os quer exibir, embora, por vezes, topem (isto é, tropecem) nas declarações tributárias.
O certo é que o Estado Fiscal qualifica quase tudo como topo de gama. O mais recente imposto topo de gama é o adicional ao IMI. Mas também no IRS, onde um modesto ordenado paga uma taxa marginal de 42%, nos combustíveis onde o fisco mama qualquer gama, para já não falar no mamão IVA, que é o topo de gama dos tributos. Pena é que o IVA da electricidade que é de alargada gama, mas não é de topo, tenha a mesma taxa de IVA dos diamantes, carros de alto luxo ou vestuário sacado aos animais selvagens que são de restrita gama, mas de elevado topo.
Há ainda os topos de gama literários. Há quem lhes chame best-sellers, ainda que os dois conjuntos não sejam necessariamente iguais. Mas basta ir a uma livraria para apanharmos nas ventas logo à entrada os topos de gama “light” (lidos (?) agora, nas praias e arredores), enquanto nos vemos em palpos de aranha para encontrar um livro de Torga, Jorge de Sena ou Herberto Helder.

As árvores (nem sempre) morrem de pé
21 de Agosto de 2017
Depois da tragédia no Funchal, o passa-culpas. O costume. Antes de tragédias quase anunciadas, o “queixa-andar”. Também o costume. No meio, conferências de imprensa para defesa própria. Ainda o costume. A saga do debate entre o “nada fazia prever”, o “já havia relatórios” ou, ainda, o “estava prevista a intervenção, mas não havia dinheiro” (entre fontanários e rotundas). Assim vamos andando, até que a erosão da memória quase tudo anestesie e pouco se aprenda.
Na tragédia humana do Funchal, discute-se, agora, de quem é o terreno da árvore mortífera. Ou se o carvalho sucumbiu por fungos ou de morte natural. Ou se ele se despenhou no meio das pessoas por causa de um ramo do plátano seu vizinho. Ou se a responsabilidade é da Junta de Freguesia, da Câmara Municipal de agora, da Câmara Municipal de antes, dos serviços regionais, da República, de mim ou de si, caro leitor… Também o costume, em Portugal apenas mudando os protagonistas e as evidências. E, ali, por azar não havia sequer um qualquer “Siresp” ou um operador de telecomunicações para apanhar no lombo todas as responsabilidades.
A árvore tombou desalmadamente, matando e ferindo. Embora não devamos generalizar o que não é generalizável, esta situação alerta para a falta de atenção para com as chamadas árvores  urbanas. Apesar da denúncia cívica de organizações da sociedade que lutam por uma acrescida consciência para o bom tratamento das árvores, infelizmente, pouco se lhes liga. Tomam-se medidas que agravam este estado de descuido e de incúria (ou, pelo menos, de ignorância ou incompetência). Por exemplo, em Lisboa, entre muitos aspectos positivos, como o de haver mais árvores por toda a cidade e parques, a responsabilidade da sua manutenção passou para as juntas de freguesia. Assim se perdeu a eficaz e sábia ideia de escala. Agora, cada qual faz como quer, e há sinais evidentes de que há quem não perceba patavina de cuidados com árvores (basta olhar para podas quase assassinas que se vêem aqui ou acolá ou para a secura extrema a que, não raro, estão sujeitas), como também não se substituem árvores mortas que jazem nos passeios. E os jardins botânicos estão sujeitos a uma penúria que faz dó. Há por todo o Portugal árvores classificadas de interesse público ou património nacional que sofrem tratos de polé, quase abandonadas à sua sorte.
Mas a responsabilidade não é apenas das entidades públicas. É também nossa. Não me refiro apenas aos maus-tratos que recebem de alguma gente que as olha (?) como de pedregulhos se tratasse, estorvando a manobra de um qualquer carro ou camião. Falo, também, da insensibilidade generalizada de quem nem sequer dá pela árvore que está junto de casa e para quem tanto faz como deixa de fazer a tal espécie. Não há cultura comportamental que lhes dê a devida importância e ninguém quer saber dos benefícios das espécies arbóreas em termos ambientais. Nem sabem, nem querem saber. Um desprezo absoluto.
Na atenção que as árvores merecem está, obviamente, o cuidado a ter com as que estão doentes fazendo perigar pessoas ou bens e as que vão morrer segundo a sua natureza e a lei da vida. Também importa erradicar más práticas de escolha de espécies completamente desajustadas da nossa tradição arbórea. Um caso evidente foi a invasão aparolada de palmeiras das Canárias (Phoenix canariensis) por todo o lado, para as quais um escaravelho vermelho (Rinchoforus ferrugineus) se tem encarregado de contribuir para repor a “normalidade arbórea” no Continente.

E se costumamos dizer que as árvores morrem de pé, ou seja, com dignidade, impõe a prevenção de acontecimentos danosos para as pessoas que algumas árvores também se abatam. No momento certo, antes que nos abatam a nós.

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