No seu artigo do Público de 20/7, João Miguel Tavares fornece
alguns detalhes analíticos que bem se entrelaçam nos do retrato apresentado por
Helena Matos, (Observador, 30/7). Dois bons artigos de opinião sobre
o PS. Tudo mais do mesmo. E tudo tem a ver com um sentimento de superioridade
que sempre se verificou pelos tempos fora, segundo rezam os livros e os
provérbios, sobre quem detém o poder, qualquer que ele seja, dentre os quais o
da vara para o reconhecimento do vilão. O certo é que a nossa dívida vai
aumentando, segundo informação noticiarística colhida neste preciso momento, e
outras mazelas conhecidas cá do burgo, não havia necessidade de tanto
sentimento assim, poderoso de desprezo, a menos que sirva para mascarar
complexos, ou ocultar verdades, que é disso que também se fala muito entre nós,
apesar das expressões “nada na manga” e quejandas que iniciaram um novo processo
governativo, ao que se diz, lá para os idos de setenta. Mas também o bluff é
utilizado nas manigâncias do poder, e não há grandes diferenças entre os
partidos, valha a verdade, nem sequer entre os seus chefes, tal como não
haveria se fosse outro qualquer de nós a governar, vê-se no mundo inteiro, e
sempre se viu, e bem assim na sociedade de distintos berços, embora se fale de
igualdade, o que é uma tremenda falsidade, comprovada a cada passo e não só nos
tamanhos. Também na esperteza e na desfaçatez. Na questão da vaidade, usa-se o
pavão com a sua cauda espectacular abrindo em leque para a equiparação do
homem. Mas na questão do poder, basta uma simples vara para a alegoria. Sempre protege
mais a cobardia.
Era uma aula de separação de poderes para o PS,
sff
João Miguel Tavares -–
Público, 20 jul 2017
O PS sobrevaloriza a memória histórica das suas
origens, mas tudo aquilo que aconteceu desde a segunda metade da década de 90
até aos dias de hoje parece não ter importância alguma.
Uma das coisas mais irritantes em Portugal é esta: os militantes do Partido
Socialista, desde os tempos fundadores de Mário Soares, estão efectivamente
convencidos de que são a fina-flor do regime e o depósito moral da democracia
portuguesa. Nas
suas cabeças, deve-se ao PS a liberdade e a democracia – e nesse sentido são
a muralha contra os desvarios totalitários da extrema-esquerda –, e deve-se
também ao PS a construção do Estado Social, a protecção dos mais fracos e a
resistência à ganância capitalista – e nesse sentido são a muralha contra os
desvarios neoliberais da direita. Devidamente muralhado, zona-tampão
contra os alegados “excessos ideológicos” da esquerda e da direita, munido como
nenhum outro partido de “razão” e de “coração”, o PS considera-se a si próprio
a torre cimeira do regime português, o palácio dos justos, sem dúvida o lugar
mais bem frequentado da política nacional desde 1974.
É graças a esta empáfia que o PS, os seus ministros, os seus deputados e os
seus apoiantes se permitem falar invariavelmente de cima para baixo em relação
a toda a gente que os rodeia – de adversários
ideológicos a empresas privadas, passando pelos tribunais. Só na última
semana, tivemos o primeiro-ministro a atacar no Parlamento uma empresa privada
de telecomunicações, e o presidente da Assembleia da República, mais o líder
parlamentar do PS, a criticar o Ministério Público por ter avançado com o
processo às viagens pagas pela Galp. Ferro Rodrigues: “Porque é que passado um
ano há agora esta situação de serem constituídos arguidos? É um mistério da
justiça portuguesa.” Carlos César, a propósito da Caixa Geral de Depósitos: “A
Assembleia da República fez o seu papel, o Ministério Público que faça o seu,
em vez de andar entretido com questões de lana-caprina.”
Há aqui uma dupla inconsciência que é essencial denunciar, até porque não
se trata de inconsciência alguma. A primeira diz respeito à separação de
poderes. Já várias vezes elogiei António Costa pela forma como se
afastou de José Sócrates, com o argumento simples, mas essencial, de que não se
metia em temas de justiça. Infelizmente, nem Ferro Rodrigues, nem Carlos
César, se sentem obrigados a seguir a mesma regra, o que é tanto mais
incompreensível quanto o consulado de Joana Marques Vidal representa
possivelmente a primeira vez, em mais de 40 anos de democracia, que o
Ministério Público trabalha em segurança e em liberdade. Infelizmente, desde o
processo Casa Pia que o PS tem uma atribuladíssima relação com a Justiça, que
não há meio de ultrapassar.
E isso traz-nos à segunda inconsciência: a memória selectiva do PS. Eduardo
Lourenço denunciou há muito o facto de em Portugal haver um excesso de memória
mítica (milagre de Ourique, Descobrimentos, sebastianismo) para compensar a
falta de memória de curto prazo e a nossa recusa em reflectir sobre as
debilidades do presente e os erros de um passado muito próximo. O PS é hoje um
exemplo descarado disso mesmo: sobrevaloriza a memória histórica das suas
origens, mas tudo aquilo que aconteceu desde a segunda metade da década de 90
até aos dias de hoje parece não ter importância alguma. No
Parlamento, António Costa foi ao ponto de acusar Passos Coelho pela
privatização da PT. Ora, não se trata apenas de ser mentira – é uma forma
profundamente insidiosa de sujar a memória colectiva e impedir o país de
aprender com os seus piores erros. Mais sobre isto no sábado.
Uma crónica sem aproveitamento algum
OBSERVADOR,
30/7/2017
O aproveitamento
político é de facto o nosso maior problema. Falimos várias vezes, morreram
dezenas de pessoas num incêndio florestal, mas o que é isso quando comparado
com o aproveitamento político?
“Costa lamenta
aproveitamento político de mortes em Pedrógão”; “Marcelo contra aproveitamento
político das vítimas de Pedrógão”; “Pedrógão Grande: Bloco acusa PSD de
aproveitamento político” …
De repente o país
descobriu que o seu maior problema não é o falhanço da protecção civil. Muito
menos o roubo em Tancos de material que começou por ser de guerra, depois
passou a material obsoleto e agora é de guerra novamente. Nada disso mas mesmo
nada se compara com o transcendente problema do aproveitamento político.
O aproveitamento
político é de facto o nosso maior problema. Falimos várias vezes, morreram
dezenas de pessoas num incêndio florestal; o SNS gasta consigo mesmo o que
devia gastar com os utentes; a polícia é chamada às escolas públicas porque
sendo os alunos oficialmente todos iguais uns são mais iguais que os outros; o
Governo (de Portugal não o do Qatar) considera que pode estar numa situação
de pobreza severa alguém que é proprietário de uma viatura no valor de 25 mil
euros e como tal reunir as condições para receber RSI… mas
o que é isso quando comparado com o aproveitamento político?
Só por absoluta má fé
não se percebe esta evidência. Por exemplo, o que é estar cercado pelo fogo e
perceber que os bombeiros não conseguem comunicar entre si porque o SIRESP
falhou comparado com o aproveitamento político subjacente a declarar que o SIRESP
não funciona? Está bem, não funciona, mas há que falar nisso? De facto só uma
alma mal intencionada não percebe que o aproveitamento político é um problema
para não dizer um crime face à minudência de o SIRESP não funcionar.
Absolutamente
determinada a expurgar os meus textos de qualquer aproveitamento político
passei algumas horas a tentar perceber quando e como acontece o aproveitamento
político. Dada a complexidade do tema creio até que mais cedo ou mais tarde
será criado um Alto Comissariado para o Combate ao Aproveitamento Político que
obviamente elaborará um questionário-teste que rapidamente nos dirá se estamos
ou não diante de um caso de aproveitamento político.
Esta espécie de teste é
urgente porque de modo algum se pode deixar ao arbítrio de cada um decidir
nesta matéria. Por exemplo, uma pessoa mal informada sobre a natureza
transcendente do aproveitamento político pode fazer um juízo de valor menos
abonatório da eurodeputada Marisa Matias. Considera a eurodeputada Marisa
Matias que no caso das vítimas de Pedrogão a
lista dos mortos não deve ser pública “por respeito às vítimas”. Ora
uma pessoa não devidamente esclarecida sobre os meandros do aproveitamento
político até podia pensar que a eurodeputada quer é respeito pelo seu sossego
pois não é para todos (e todas, como diria a senhora eurodeputada) apoiar um
governo que se confronte com tal lista. Para mais a senhora eurodeputada faz
campanha (política, claro) por essa Europa fora ao lado do espanhol Pablo
Iglesias cujo Podemos transformou a Lei da Memória Histórica numa agência de
desenterramentos dos mortos da Guerra Civil. Em que ficamos – perguntará o tal
mal informado – os mortos afinal são para ser assinalados ou escondidos? E o
que é respeito em Portugal – a omissão – é crime em Espanha? Como se percebe
isto do aproveitamento político tem muito que se lhe diga.
A mesma ambivalência por
assim dizer geo-política caracteriza o nosso Presidente da República. Por
exemplo, o mesmo Marcelo Rebelo de Sousa que agora declara que a prioridade é
combater os fogos e que tanto teme o “aproveitamento político das vítimas de
Pedrógão”, prontamente declarou em 2005 que a administração Bush se tinha
mostrado incapaz de prevenir os efeitos devastadores da passagem do furacão
Katrina nos EUA e que as autoridades norte-americanas tinham falhado no apoio
às populações. É certo que houve quem fosse mais longe e até acusasse o então
presidente dos EUA de ser responsável pelo furação em si mesmo e até por ter
congeminado a ruptura dos diques, mas perante tão assombrosa diferença de
atitude, cabe perguntar: para Marcelo Rebelo de Sousa onde começa e acaba o
aproveitamento político?
O mistério do aproveitamento
político dos mortos de Pedrogão é tão mais espantoso quanto as
mesmas pessoas que agora consideram ser aproveitamento político querer saber
quantos e porquê morreram em Pedrogão, levaram o período entre 2011 e 2015 a
denunciar os mortos da austeridade. Eram as pessoas que morriam com fome, os
que se suicidavam, os que desistiam de viver
… Curiosamente nunca então se colocou a questão do aproveitamento político.
Nestas matérias do
aproveitamento político há que contar até cem antes de responder. Caso
contrário a melhor intencionada das respostas transforma-se num enredo. Por
exemplo, manda a cartilha que manifestemos a nossa preocupação com a forma como
o governo da Polónia trata ou gostaria de tratar os juízes polacos. Não há
nessa atitude vestígio de aproveitamento político. Curiosamente portas adentro
manifestar solidariedade com um juiz que foi e continua a ser ameaçado – o juiz
Carlos Alexandre – não só é mal visto como incorre no terrível âmbito do
aproveitamento político.
Na verdade nada disto
devia surpreender: Portugal é o país em que denunciar e condenar politica e
moralmente o primeiro-ministro José Sócrates foi visto como um óbvio caso de
aproveitamento político. Portugal é também o país em que se pode condenar a
pedofilia se praticada em instituições católicas. Outro caso bem diverso foi
quando se descobriu que esses crimes tinham lugar na Casa Pia. O facto de entre
os suspeitos se contar também gente dita republicana e laica logo fez surgir o
espectro do aproveitamento político.
Em resumo, o
aproveitamento político é aquilo que um homem quiser. Ou mais precisamente em
Portugal o aproveitamento político é aquilo que certos homens quiserem. Donde
resulta que não fazer nada que se aproveite não é defeito mas sim seguro de
vida.
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