Dois artigos de Opinião sobre
as matérias que fazem correr rios de tinta nos jornais – o nosso caso nacional,
de imprevidência e desresponsabilização, o caso internacional de
xenofobia antiturística, mas não de afastamento do terrorismo islâmico, contrariamente
aos pressupostos xenófobos. O primeiro, de João Miguel Tavares, desempoeirado
e corajoso, condenando os demagogos do antiturismo, como, paradoxalmente, apelativos dos actos
terroristas, como foi o mais recente caso de acção terrorista em Barcelona. O segundo,
de António Barreto, síntese acusatória perfeitamente burilada em
frases ondulatórias de paralelismos e antíteses, ao seu jeito argumentativo, dos
nossos desmandos políticos e sociais, que, como sublinham os seus comentadores-detractores,
o não ilibam de responsabilidades de que o próprio António Barreto se poderia
acusar, como participante governativo que foi no atamancamento deste status a
que se chegou, após a revolução dos cravos.
De todas as observações, o que
mais nos aflige na nossa euforia pelo aumento do turismo por cá, como factor
económico e talvez também cultural, são as razões que aponta J.M.T. sobre esse
aumento, não proveniente de autenticidade qualitativa das nossas estruturas
turísticas - pese embora as tentativas de aliciamento realizadas, no que toca,
sobretudo, às comezainas - mas do receio generalizado do terrorismo islâmico,
que, por enquanto, tem poupado o nosso país, mas cuja inércia cultural leva,
naturalmente, ao repúdio, apesar da tranquilidade, e que as greves dos
transportes, nos momentos-chave de partida e chegada turística, igualmente lesam
– ou antes, lesionam. Por isso os países dos milhões de turistas continuam a
ser os da vida cultural intensa, apesar do
terrorismo, e J.M.T. faz deles parte, com a família, abandonando o
nosso aos rezingões encartados como A. B, que tanto nos apraz ler.
Fazer turismo é combater o
terrorismo
Cada
um de nós – privilégio supremo – não precisa sequer de agarrar numa arma para
fazer a sua parte. Basta pôr o chapéu e os óculos escuros. Cada turista é um
combatente contra o Estado Islâmico. Não percebo como é possível não gostar
deles.
Público, 18 de agosto de
2017
João Miguel Tavares
É de uma triste ironia que tenha sido na mesma Barcelona que se
está a afirmar como capital mundial do antiturismo, com grupos organizados a
pintar autocarros — “el turismo mata los barrios”
—, a pichar paredes — “tourist go home”
—, a promover manifestações — “Barcelona no està en venda” — e a invadir
praias com cartazes xenófobos — “mon immeuble n’est pas ton
immeuble!” —, que tenha ocorrido mais um atentado, vitimando
pessoas de 35 nacionalidades diferentes em plena zona das Ramblas. Os grupos
terroristas são os melhores aliados desta gente: um camião a alta velocidade
vale por mil cartazes a dizer “tourists go home”.
Eis o que a trupe antiturista parece esquecer: a
massificação do turismo na Europa está intimamente relacionada com a
insegurança provocada pelo terrorismo. Portugal que o diga: as actuais
enchentes em Lisboa e no Porto não se devem ao génio de quem nos governa, mas
ao fracasso da Primavera Árabe, à instabilidade no Egipto e aos atentados no
Magrebe. Para quem não tem dinheiro para voar para as ilhas do Pacífico, o
planeta turístico está muito mais curto — e é por isso que as classes médias
francesas ou inglesas invadem a Espanha mediterrânica ou Portugal. São quentes,
não são caros e são seguros. Convinha que a trupe antiturista desenvolvesse
alguma sensibilidade geopolítica.
Eu acabo de
regressar a Portugal após dez dias a ser turista, que é uma coisa que acontece
a todos os que têm o privilégio de sair de vez em quando das cidades onde
vivem. Fui com a família de carro para França: rezámos a Deus em Taizé e ao
império do Rato na Disneylândia de Paris; prestámos homenagem aos mortos
americanos no cemitério de Colleville-sur-Mer; aprendemos que a guerra mata
gente, mas mistura povos, enquanto deslindávamos os segredos da tapeçaria de
Bayeux. Os meus quatro filhos desarrumaram lojas de souvenirs, tropeçaram em franceses
e foram duas ou três vezes admoestados por indígenas. Fomos tristes turistas,
com chapéus de abas largas, calções Coronel Tapioca e iPhone a disparar a cada 30
segundos.
E, no entanto,
sentimo-nos bem: o turismo é a nossa pequena forma de resistência. As
orações em Taizé são agora vigiadas por soldados franceses, equipados com
armamento de guerra. A segurança na Disneylândia está muito mais apertada. Mas
continuar a viajar pela Europa não é só um prazer — é a nossa modesta forma de
resistir a quem nos quer matar. Daí que os desprezados turistas mereçam ser
vistos com outros olhos: à sua maneira, eles são defensores de um modo de vida
de que todos nos devemos orgulhar. Como sempre acontece com as ameaças
exteriores, este terrorismo tão próximo tem, pelo menos, a grande vantagem de
nos devolver o amor genuíno pelos nossos valores. Foi isso que tentei passar
aos meus filhos: a consciência de que viver em democracia e em liberdade, numa
das melhores e mais justas sociedades que o Homem foi até hoje capaz de criar,
é um enorme privilégio.
Convém, por
isso, valorizá-lo e defendê-lo. “No tinc por!”
— “Não tenho medo!” —, gritou-se em Barcelona. Sim, é isso, mas também é
muito mais do que isso: é um amor profundo à liberdade de cada um poder ser o
que deseja e um imenso desejo de transmitir esse amor às gerações futuras. Cada
um de nós — privilégio supremo — não precisa sequer de agarrar numa arma para
fazer a sua parte. Basta pôr o chapéu e os óculos escuros. Cada turista é um
combatente contra o Estado Islâmico. Não percebo como é possível não gostar
deles.
O Estado frágil
António Barreto
DN, 20/8/17
O Estado português é gordo, mas é fraco. É pesado, mas
não é firme. É um Estado fraco que torna vulnerável o seu povo. Entre
incêndios, assaltos e acidentes, o Estado falhou. Nas previsões e na prevenção.
Na prontidão do socorro e na rapidez da ajuda. Na humildade com que se devem
tratar as vítimas, na coragem com que se reconhecem culpas, na seriedade com
que se estudam as causas, no rigor com que se apuram as responsabilidades, na
eficiência com que se distribuem auxílios e na honestidade com que se deveriam
repartir ajudas solidárias.
São tempos de falhanço do Estado. Do Estado central e
local. Do Estado político e administrativo. Do Estado civil e militar. Pelas
vítimas, os acidentes de Pedrógão foram os mais dolorosos, mas não pela
extensão e pela intensidade. Os fogos insistem. A prevenção continua a falhar.
As comunicações permanecem erráticas e em regime de avaria. A coordenação é
deficiente, foi-o desde o primeiro dia, melhorou aqui e ali por força das
circunstâncias, está longe, muito longe, de ser satisfatória. Ou sequer de dar
um pouco de segurança.
Há uma espécie de incúria generalizada em que se
repetem os acidentes e os prejuízos. A ajuda atrasa-se. Os socorros ditos de
solidariedade chegam tarde, quando chegam. Na maior parte dos casos, as ajudas
imediatas para reconstrução e reinício de actividade, que deveriam demorar
dias, não chegaram ao fim de semanas. Toda a gente do Estado tem algo a dizer,
a garantir o que não têm e a prometer o que não podem. A culpar os outros,
sempre os outros, os de baixo, os do lado, os de cima e os da oposição.
Os autarcas procuram a reeleição e queixam-se do
governo, se forem de diferente cor política, ou dos serviços, se forem do mesmo
partido. O governo faz promessas e bate na oposição, esperando subir nas
sondagens. A oposição garante que não quer aproveitar e não faz outra coisa. Só
os bombeiros parecem estar à altura.
Preparam-se já leis magníficas, como se o problema
fosse esse. Não vão faltar os planos miríficos a longo prazo, o planeamento
integrado, o ordenamento estratégico e o equilíbrio sustentável. Vão demorar
anos a regulamentar, décadas a elaborar e eternidades a concretizar, enquanto
persiste a palha à volta das casas, o mato nos baldios e nas florestas, o
matagal nos caminhos, o restolho seco, os combustíveis vegetais prontos a
disparar, a insuficiência de sapadores, as falhas de comunicações... Culpas de
muitos a começar pelos aldeões que não tratam das suas casas e das suas
fazendas, pelos lavradores que não querem gastar, mas tão-só encaixar, dos
autarcas que preferem rotundas feitas pelos amigos artistas e pavilhões
desportivos pagos pela União Europeia...
Em Tancos, falhou a disciplina, a responsabilidade e a
noção de dever público. Falharam os militares directamente encarregados, por
preguiça, por inconsciência e não se sabe se por coisa pior. Falharam os
responsáveis por não ter acudido. Falharam os dirigentes militares e políticos
pelo espectáculo lamentável, quase indecoroso, de esquiva culpas e de redução
da importância do ocorrido.
Até uma procissão no Funchal trouxe mais de uma dezena
de vítimas mortais, esmagadas por uma árvore, em acidente impensável, a que não
falta desleixo e imprevidência, com uma polémica típica entre responsáveis, do
proprietário à câmara, passando pela freguesia. Vai discutir-se seriamente a
localização da responsabilidade entre o solo, a raiz, o tronco e os ramos ou
pernadas assassinas...
Perdidos no imprevisto, os dirigentes políticos
iniciam as suas intervenções com frases desajeitadas: "Trago uma palavra
de esperança"... "Quero deixar uma mensagem de solidariedade"...
Percebe-se logo o artificial. Sente-se a compaixão forçada do dever e do
lugar-comum. A esperança e a solidariedade não se anunciam.
Numa avenida que nos conduz à Praça da Catalunha, onde
começam as Ramblas, duas crianças esperam a sua vez para atravessar numa zebra.
Apesar de plástica, a metralhadora, de aparência perigosa, deve sair
directamente de um filme de ficção científica ou de um Rambo interestelar. Não
fora a cor amarela e estávamos diante de verdadeira ameaça. Vivemos tempos em
que as armas não só fazem parte do quotidiano como também se transformaram em
brinquedos. "Brinquedos"... não rimam muito bem com "armas"...
Nem "armas" com "crianças"... Mas são estes os costumes.
Nesta semana, um dos assassinos das Ramblas tinha 17 anos. Fotografia
de António Barreto
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