Lembrou-me o quadro de Velasquez este artigo
de José Pacheco Pereira, pois, tal como aquele, que a si mesmo se
retratou de lado, observador saliente numa tela de extraordinário relevo
figurativo, Pacheco Pereira começa o seu texto com a descrição dos seus
sentimentos e insónias que o votam ao absoluto de uma ideia fixa sobre Donald
Trump, motor indigno de um mundo em vias de desabar. Como participante desse
mundo, Pacheco Pereira apõe o seu dedo acusador, tal o Velasquez da tela, de
que me limito a transcrever um excerto descritivo colhido na Internet:
«En
una época de oscurantismo y superstición encontramos a un pintor de cámara,
arquitecto, aposentador del Rey, geómetra, astrólogo, políglota… gestando la
obra que Luca Giordano denominaría “La Teología de la Pintura”. Esta “Teología”
nos demuestra que testigos de una época son también los pintores, poetas,
músicos… quienes, fortuita o intencionadamente, han dejado en sus obras un
trocito del espíritu de aquel tiempo.
Cuando
se facturó tan extraordinaria obra, España estaba inmersa en el tenebrismo de
un siglo que, sin embargo, es recordado por su portentosa “luminosidad” en el
aspecto artístico. Es el Siglo de Oro español, el comienzo de la pérdida de
hegemonía de España en Europa y la época del reinado de Felipe IV (1621 a
1665), un rey que, ante todo, fue mecenas del arte, gracias a lo que nos ha
legado un inmenso patrimonio artístico. Su pintor predilecto no fue otro que
Diego Rodríguez de Silva Velázquez.»
E desse modo nos descreve
também os papéis que lhe tiram o descanso, no trabalho insano que assumiu de os
salvar do esquecimento, o que me levou igualmente a outra figura ímpar da nossa
cultura – Sá de Miranda – cuja ânsia de perfeição, na sua imitação
dos clássicos o levou a burilar continuamente os seus escritos, embora não seja
esse o caso de Pacheco Pereira:
«Ando c’os meus papéis em
diferenças; / são preceitos de Horácio – me dirão; / em al não posso, sigo-o em
aparenças. / Quem muito pelejou como irá são? / Quantos ledores, tantas as
sentenças; / c’um vento velas vêm e velas vão.»
Julgo que Pacheco Pereira
merece bem o apreço e a gratidão do seu tempo, como “avis rara” de
estudioso em vias de extinção, pese embora o preconceito contra quem se limita
a gerir “ex cathedra”, os destinos da política, sem arrostar os ventos e
marés do ofício de governar. Mas a análise sobre Donald Trump e seus parceiros é
de uma lucidez que bem lembra a luz com que Velasquez consagra as personagens
do seu mundo artístico.
A
estação tola
Público, 29
de julho de 2017
José Pacheco
Pereira
Deve ser da estação tola, mas
nestes dias de Verão com temperaturas abusivas a minha cabeça útil encolhe
muito e só me interessam meia dúzia de coisas. Nem sequer é escapismo ou
férias, coisas que habitualmente não faço do mesmo modo que o comum dos
mortais, certamente com efeitos irreparáveis na mesma cabeça encolhida que se
passeia em cima dos ombros. Férias significa apenas que tenho menos obrigações
secundárias (como escrever este artigo) e mais tempo para me dedicar às obrigações
principais (como seja “salvar” papéis, antigos e modernos, de há cem anos e de
hoje, da máquina trituradora da ceifeira dos papéis, da Destruidora da Memória,
da Inimiga dos Arquivos), ou seja, uma coisa excelente.
Presumo que aquilo que nestes dias
me interessa não tenha o público, nem as audiências habituais, que teria se
falasse sobre os fogos, sobre as aleivosias “do Costa”, os ciganos de Loures e
a sua Nemesis local, os afectos presidenciais, os crimes de ciúmes e ganância,
e a perfeição seria eu escrever sobre as “preparações” das “preparações”
futebolísticas, a que se agarra uma televisão com síndrome de abstinência da
bola. Nada disso, resta-me aquilo que, com a cabeça reduzida a metade pelo
calor, me interessa. Ou seja, Trump e o perigoso reality show à
sua volta, e os papéis, revistas, jornais e livros, mas mais papéis do que
tudo o resto, porque há uma surpresa inscrita nos papéis que já poucas vezes
tenho nos livros. (A Coreia do Norte lançou outro míssil...)
Trump e os papéis dão-me cabo do descanso
e do sono e, no caso dos papéis, que de vez em quando resolvem desabar das
pilhas em que deveriam estar sossegados, até me ameaçam a integridade física. A palavra é
pomposa, mas eu já fui várias vezes agredido por pilhas de livros e papéis que
resolveram deslocar o seu centro de gravidade sem autorização superior. E no
caso de Trump e da animada corte à sua volta, melhor do que uma grande comédia,
verdadeiro Guignol, resolvem fazer coisas interessantes desde as seis horas da
manhã de lá, hora em que ele começa com o Twitter, até lá mais para a noite,
quando as discussões mais animadas na CNN e na Fox se fazem. E a gente,
apanhada por esse ópio da política bruta, dura e pura, fica a ver televisão às
três, quatro horas da manhã por culpa dos fusos horários. Depois anda o dia
todo feito zombie.
Claro que o que se passa na
América de Trump é gravíssimo: é o esforço diário de um autocrata grosseiro,
sem princípios, habituado a levar tudo à frente pelo dinheiro e pela ameaça,
para subverter a governação de uma democracia, atacando as suas instituições e
fazendo do bragadoccio o seu modo de vida. À sua volta
mini-Trumps desavergonhados, palavra magnífica para os caracterizar, aparam-lhe
todos os golpes, justificam-lhe as mais absurdas das coisas, como se o novo
normal fosse aquela selvajaria. E não faltam mini-Trumps dos três sexos e uns
ratinhos com medo de perder o republicano lugar, que se ele quisesse fazer uma
ETAR Trump nas traseiras do Capitólio para “drenar o pântano”, justificariam de
imediato o enorme alcance simbólico do acto vindo de um Presidente “não
convencional”. A frase seguinte é que foi sendo assim “não convencional”, que
ele ganhou as eleições, como se isso justificasse tudo o que ele faz baseado
num único critério: o seu ego.
Na verdade, a
América é hoje governada pelo único homem no mundo que viola as leis de Freud e
só tem Ego e Super Ego, e não tem Id. Na verdade, tem, mas eu temo só de
espreitar para essa caverna funda (por falar nisso, parece que a Associação dos
Psiquiatras considera aceitável que se discuta publicamente o estado mental do
Presidente...). A seu tempo far-se-á uma ópera sobre Trump.
Esta semana então foi mortífera,
patética e ridícula, mas é mesmo assim tudo junto que as coisas se passam. O
Presidente resolveu abrir uma guerra pública contra o seu mais que leal
procurador-geral, membro do seu governo, apoiante da primeira hora, conservador
e “trumpista” até à medula. Não foram só os insultos e as humilhações, foi a
maldade pura e sem carácter de sugerir que Sessions, o primeiro senador que o
apoiou, o fez por interesse eleitoral, numa altura em que não havia nada a
ganhar em apoiar Trump. Depois, as aventuras de um mini-Trump, Scaramucci, com
nome de uma personagem cómica da comedia dell’arte italiana, misto de criado e de
vingador disfarçado, que faz um papel de palhaço. O homem que disse “amar”
Trump em frase sim, frase não, Scaramouche representado por Scaramucci, fez
umas declarações daquelas que a pudibunda televisão americana tem que estar
sempre a fazer “piiii”, sobre o chefe do pessoal da Casa Branca a quem chamou
paranóico e sobre a alma negra de Trump, habitualmente representado como Darth
Vader ou como a Morte com caveira e tudo, Steve Bannon, a quem atribuiu um
bizarro acto sexual muito ginasticado, ao estilo da serpente Ourobouros.
Nem tudo é mau nesta obsessão
“trumpiana” que me assola. Pelo menos uma vez esta semana acordei com uma
magnífica notícia, três corajosos senadores republicanos disseram a Trump que
não mandava neles e votaram contra mais uma tentativa já desesperada de dar
qualquer coisa ao Presidente que lhe permitisse vangloriar-se. Uma versão
misteriosa de uma lei que era suposto não ser uma lei, a versão “magrinha” do “repeal”,
sem “replace”,
para acabar com o Obamacare não passou no Senado, apesar das ameaças directas
de Trump a quem ousasse retirar-lhe um “win” da sua série de “win, win, win”. O
abastardamento das instituições parlamentares, resultado das pressões de Trump
que desejaria governar apenas por “ordens executivas”, e da subserviência dos
republicanos que têm medo dele, é um dos aspectos mais preocupantes da pressão
autocrática que Trump faz sobre o sistema democrático americano.
Depois de tudo isto, a máquina da
propaganda faz as mais absurdas piruetas para o justificar e transformar a
má-educação e falta de carácter, a ignorância e a grosseria numa manifestação
de “inconvencionalidade”, de estilo anti-políticos tradicionais, de métodos
empresariais, para agradar à “base”. Não sei o que mais me repugna, se Trump,
se os gnomos republicanos, ou esta corte de empregados presidenciais escolhidos
a dedo, e o Ministério da Propaganda e Espelho Narcísico que é a Fox News, por
aquilo que os portugueses chamam “lata”.
Claro que com
esta sucessão de malfeitorias, esta comédia que tem um drama por detrás — o
drama do homem mais poderoso do mundo ser este — me tira do sério e do sono. E
os papéis? Os papéis são o lenitivo para esta maldade do mundo. E como o artigo
já está feito posso voltar para eles. Com a CNN ao fundo...
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