terça-feira, 22 de agosto de 2017

«Las Meninas» de Velasquez


Lembrou-me o quadro de Velasquez este artigo de José Pacheco Pereira, pois, tal como aquele, que a si mesmo se retratou de lado, observador saliente numa tela de extraordinário relevo figurativo, Pacheco Pereira começa o seu texto com a descrição dos seus sentimentos e insónias que o votam ao absoluto de uma ideia fixa sobre Donald Trump, motor indigno de um mundo em vias de desabar. Como participante desse mundo, Pacheco Pereira apõe o seu dedo acusador, tal o Velasquez da tela, de que me limito a transcrever um excerto descritivo colhido na Internet:
«En una época de oscurantismo y superstición encontramos a un pintor de cámara, arquitecto, aposentador del Rey, geómetra, astrólogo, políglota… gestando la obra que Luca Giordano denominaría “La Teología de la Pintura”. Esta “Teología” nos demuestra que testigos de una época son también los pintores, poetas, músicos… quienes, fortuita o intencionadamente, han dejado en sus obras un trocito del espíritu de aquel tiempo.
Cuando se facturó tan extraordinaria obra, España estaba inmersa en el tenebrismo de un siglo que, sin embargo, es recordado por su portentosa “luminosidad” en el aspecto artístico. Es el Siglo de Oro español, el comienzo de la pérdida de hegemonía de España en Europa y la época del reinado de Felipe IV (1621 a 1665), un rey que, ante todo, fue mecenas del arte, gracias a lo que nos ha legado un inmenso patrimonio artístico. Su pintor predilecto no fue otro que Diego Rodríguez de Silva Velázquez.»
E desse modo nos descreve também os papéis que lhe tiram o descanso, no trabalho insano que assumiu de os salvar do esquecimento, o que me levou igualmente a outra figura ímpar da nossa cultura – Sá de Miranda – cuja ânsia de perfeição, na sua imitação dos clássicos o levou a burilar continuamente os seus escritos, embora não seja esse o caso de Pacheco Pereira:
«Ando c’os meus papéis em diferenças; / são preceitos de Horácio – me dirão; / em al não posso, sigo-o em aparenças. / Quem muito pelejou como irá são? / Quantos ledores, tantas as sentenças; / c’um vento velas vêm e velas vão.»
Julgo que Pacheco Pereira merece bem o apreço e a gratidão do seu tempo, como “avis rara” de estudioso em vias de extinção, pese embora o preconceito contra quem se limita a gerir “ex cathedra”, os destinos da política, sem arrostar os ventos e marés do ofício de governar. Mas a análise sobre Donald Trump e seus parceiros é de uma lucidez que bem lembra a luz com que Velasquez consagra as personagens do seu mundo artístico.
A estação tola
Público, 29 de julho de 2017
José Pacheco Pereira
Deve ser da estação tola, mas nestes dias de Verão com temperaturas abusivas a minha cabeça útil encolhe muito e só me interessam meia dúzia de coisas. Nem sequer é escapismo ou férias, coisas que habitualmente não faço do mesmo modo que o comum dos mortais, certamente com efeitos irreparáveis na mesma cabeça encolhida que se passeia em cima dos ombros. Férias significa apenas que tenho menos obrigações secundárias (como escrever este artigo) e mais tempo para me dedicar às obrigações principais (como seja “salvar” papéis, antigos e modernos, de há cem anos e de hoje, da máquina trituradora da ceifeira dos papéis, da Destruidora da Memória, da Inimiga dos Arquivos), ou seja, uma coisa excelente.
Presumo que aquilo que nestes dias me interessa não tenha o público, nem as audiências habituais, que teria se falasse sobre os fogos, sobre as aleivosias “do Costa”, os ciganos de Loures e a sua Nemesis local, os afectos presidenciais, os crimes de ciúmes e ganância, e a perfeição seria eu escrever sobre as “preparações” das “preparações” futebolísticas, a que se agarra uma televisão com síndrome de abstinência da bola. Nada disso, resta-me aquilo que, com a cabeça reduzida a metade pelo calor, me interessa. Ou seja, Trump e o perigoso reality show à sua volta, e os papéis, revistas, jornais e livros, mas mais papéis do que tudo o resto, porque há uma surpresa inscrita nos papéis que já poucas vezes tenho nos livros. (A Coreia do Norte lançou outro míssil...)
Trump e os papéis dão-me cabo do descanso e do sono e, no caso dos papéis, que de vez em quando resolvem desabar das pilhas em que deveriam estar sossegados, até me ameaçam a integridade física. A palavra é pomposa, mas eu já fui várias vezes agredido por pilhas de livros e papéis que resolveram deslocar o seu centro de gravidade sem autorização superior. E no caso de Trump e da animada corte à sua volta, melhor do que uma grande comédia, verdadeiro Guignol, resolvem fazer coisas interessantes desde as seis horas da manhã de lá, hora em que ele começa com o Twitter, até lá mais para a noite, quando as discussões mais animadas na CNN e na Fox se fazem. E a gente, apanhada por esse ópio da política bruta, dura e pura, fica a ver televisão às três, quatro horas da manhã por culpa dos fusos horários. Depois anda o dia todo feito zombie.
Claro que o que se passa na América de Trump é gravíssimo: é o esforço diário de um autocrata grosseiro, sem princípios, habituado a levar tudo à frente pelo dinheiro e pela ameaça, para subverter a governação de uma democracia, atacando as suas instituições e fazendo do bragadoccio o seu modo de vida. À sua volta mini-Trumps desavergonhados, palavra magnífica para os caracterizar, aparam-lhe todos os golpes, justificam-lhe as mais absurdas das coisas, como se o novo normal fosse aquela selvajaria. E não faltam mini-Trumps dos três sexos e uns ratinhos com medo de perder o republicano lugar, que se ele quisesse fazer uma ETAR Trump nas traseiras do Capitólio para “drenar o pântano”, justificariam de imediato o enorme alcance simbólico do acto vindo de um Presidente “não convencional”. A frase seguinte é que foi sendo assim “não convencional”, que ele ganhou as eleições, como se isso justificasse tudo o que ele faz baseado num único critério: o seu ego.
Na verdade, a América é hoje governada pelo único homem no mundo que viola as leis de Freud e só tem Ego e Super Ego, e não tem Id. Na verdade, tem, mas eu temo só de espreitar para essa caverna funda (por falar nisso, parece que a Associação dos Psiquiatras considera aceitável que se discuta publicamente o estado mental do Presidente...). A seu tempo far-se-á uma ópera sobre Trump.
Esta semana então foi mortífera, patética e ridícula, mas é mesmo assim tudo junto que as coisas se passam. O Presidente resolveu abrir uma guerra pública contra o seu mais que leal procurador-geral, membro do seu governo, apoiante da primeira hora, conservador e “trumpista” até à medula. Não foram só os insultos e as humilhações, foi a maldade pura e sem carácter de sugerir que Sessions, o primeiro senador que o apoiou, o fez por interesse eleitoral, numa altura em que não havia nada a ganhar em apoiar Trump. Depois, as aventuras de um mini-Trump, Scaramucci, com nome de uma personagem cómica da comedia dell’arte italiana, misto de criado e de vingador disfarçado, que faz um papel de palhaço. O homem que disse “amar” Trump em frase sim, frase não, Scaramouche representado por Scaramucci, fez umas declarações daquelas que a pudibunda televisão americana tem que estar sempre a fazer “piiii”, sobre o chefe do pessoal da Casa Branca a quem chamou paranóico e sobre a alma negra de Trump, habitualmente representado como Darth Vader ou como a Morte com caveira e tudo, Steve Bannon, a quem atribuiu um bizarro acto sexual muito ginasticado, ao estilo da serpente Ourobouros.
Nem tudo é mau nesta obsessão “trumpiana” que me assola. Pelo menos uma vez esta semana acordei com uma magnífica notícia, três corajosos senadores republicanos disseram a Trump que não mandava neles e votaram contra mais uma tentativa já desesperada de dar qualquer coisa ao Presidente que lhe permitisse vangloriar-se. Uma versão misteriosa de uma lei que era suposto não ser uma lei, a versão “magrinha” do “repeal”, sem “replace”, para acabar com o Obamacare não passou no Senado, apesar das ameaças directas de Trump a quem ousasse retirar-lhe um “win” da sua série de “win, win, win”. O abastardamento das instituições parlamentares, resultado das pressões de Trump que desejaria governar apenas por “ordens executivas”, e da subserviência dos republicanos que têm medo dele, é um dos aspectos mais preocupantes da pressão autocrática que Trump faz sobre o sistema democrático americano.
Depois de tudo isto, a máquina da propaganda faz as mais absurdas piruetas para o justificar e transformar a má-educação e falta de carácter, a ignorância e a grosseria numa manifestação de “inconvencionalidade”, de estilo anti-políticos tradicionais, de métodos empresariais, para agradar à “base”. Não sei o que mais me repugna, se Trump, se os gnomos republicanos, ou esta corte de empregados presidenciais escolhidos a dedo, e o Ministério da Propaganda e Espelho Narcísico que é a Fox News, por aquilo que os portugueses chamam “lata”.

Claro que com esta sucessão de malfeitorias, esta comédia que tem um drama por detrás — o drama do homem mais poderoso do mundo ser este — me tira do sério e do sono. E os papéis? Os papéis são o lenitivo para esta maldade do mundo. E como o artigo já está feito posso voltar para eles. Com a CNN ao fundo...

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