sábado, 26 de agosto de 2017

Portugal insular


Não quero perder a crónica. Pelo rigor do descritivo, pela sua subjectividade, não caprichosa mas sincera, pela beleza paisagística que descobre, pelas informações mais prosaicas referentes a produtividade e trabalho, pela pincelada crítica mas certeira na política, um texto de Maria João Avillez para guardar, não como crónica feminina como refere um ou outro seu comentarista, com aversão machista às Páginas Femininas dos jornais dos apagados tempos reaccionários, ou por repúdio pela corajosa frontalidade de uma jornalista política que não desdenha de enveredar pela descrição colorida, manobrando a “pena” - (salvo seja!, que as tecnologias são tais hoje, de teclado real mas de letra virtual, que só temos acesso físico a esta quando a gravamos no papel) - com extrema perícia.

O despertar da bela adormecida? (terceira crónica estival)
OBSERVADOR, 23/8/2017
E sobre isso, um véu de melancolia tão pesado e uma solidão tão desolada que moldaram os poetas, políticos e pintores que os Açores nos deram.
1. A bela adormecida desperta do seu longo sono. Não há bela como ela. Por breves dias que valeram por mil, pude ver o seu acordar. Num berço verde, rodeada de mar e envolta de hidranjias que é como aqui na ilha de S.Miguel se chama ás hortenses.
Já se sabe – e quantos o disseram, cantaram ou escreveram antes de mim? – que não deve haver muitos mais lugares no mundo como as ilhas açorianas. Onde quer que o olhar pare, tem de ficar. Com demora. Dando tempo ao tempo para absorver a estonteante exuberância das espécies botânicas que compõem a paisagem; a incrível amplitude dos verdes (quantos contei?), a rara e rica sinfonia cromática das hidranjas (este ano vi pela primeira vez na minha vida cachos delas, cor de vinho, muito tinto); a arquitectura da ilha, aconchegada entre cumes e montanhas, o debrum azul do mar, a alva pedra branca, o negro basalto. Névoas brancas e um silêncio puríssimo que em certos lugares tudo parece suspender. E por sobre tudo isso, um véu de melancolia tão pesado e uma solidão tão desolada que moldaram a alma açoriana e lhe “construíram” uma identidade própria e exclusiva.
2. Aqui não há Agosto. A ilha como que o suprime, dispensando naturalmente multidões, ruído, suor e azáfamas. Não lhe caiem bem. Há o Agosto deles. Festas populares, vilas com a noite iluminada, cantorias nos coretos, bailes nas praças e adros. E claro, alguns festivais de música que a “Bela” desperta. Do Brasil este ano veio Seu Jorge e dizem que foi um êxito.
E… (por uma vez a lenda é verdadeira) há, quase sempre, as quatro estações num só dia, o que amplia até ao infinito a fortuna da viagem: com o ar ainda fresco, a caminhada pelo começo da manhã; se o tempo aquece, o inesperado mergulho numa piscina natural que não se conhecia ou um desvio meio secreto até uma lagoa escondida; a mais saborosa morcela se subitamente chuvisca; o mais exaltante banho de mar quando o sol, de repente, se abre como um leque e se queda, estampado sobre areais irresistíveis como por exemplo o de Santa Bárbara. Ou enfim, a mais adequada guarida para quando a chuva se zanga que é o “Arquipélago”, antiga fabrica de açúcar transformada num centro de artes com arquitectura de primeira água (Francisco Vieira de Campos, Cristina Guedes, João Mendes Ribeiro).
Em que outro lugar é que tudo isto é possível num mesmo dia, embalado pelas quatro estações e amparado em tão pródiga natureza?
3. Havia quem vituperasse o sono sem fim da bela adormecida: que estava para ali, pasmada e parada, como quem diz sem préstimo nem serventia, afora a beleza (o que já não seria pouco, tão assombrosa ela é…). Há agora quem deplore, em jornais ou salões, o seu acordar: que há turistas a mais, estradas entupidas e acessos congestionados aos bilhetes postais do costume, Sete Cidades e por aí. Eu, o que lá vi neste feliz regresso a S. Miguel – e só posso falar pelo que vi – foi um acordar de vida e para a vida. Impulsionado ou produzido quer por açorianos, quer por continentais, quase sempre jovens, bom sinal. Novos lugares de encontro, novos arranjos do espaço público, novas esplanadas, novos lugares de cultura, novas moradas gastronómicas, novas iniciativas. E surpreendentes hotéis que mais apetece chamar de abrigos: o pequeno “White” que lembra Santorini, de tão branco e de tão azul; o delicioso Furnas Boutique hotel, entre o ímpar verde das Furnas e as suas fontes termais a 40 graus e onde tão bem se conversa sobre esta coisa da vida; o agora tão bem “revisto” Bahía Praia, aberto sobre a quase negra areia da Praia de Agua d’Alto e que se conhecia de outras e piores encarnações. E claro, o Eco-Resort de Santa Bárbara, um poiso na improvável costa norte, ou de como o trabalho, a persistência, a imaginação, estão imutavelmente, invariavelmente, gloriosamente, na origem do que nos surge levianamente como um “êxito”.
(Não, não sou uma agente turística, sou uma jornalista dando boas notícias sobre o que é nosso e viajo exclusivamente por minha conta).
Nada nesta desenvoltura micaelense me chocou, pelo contrário, não regressarei assustada. Apenas um pouco assustada pela possibilidade de que uma fractura provocada pelos omnipresentes “interesses” subverta a ancestral harmonia de um conjunto de características tão, como dizer? privativas. Claro que os “interesses” e o seu tentacular poder económico (a natureza humana é o que é), podem ser nefastos mas parece quase impossível “alguém” ousar interferir com este milagre da natureza e com o que Deus aqui fez. Tão abençoado que me parece não haver outro igual em todo o território nacional. (sim, talvez o Douro tenha o mesmo o fôlego). O que também explica os poetas, pintores, políticos, jornalistas, que esta terra nos deu e foram “primeiros” nos seus misteres. (e escolho dois da minha particular estimação: um de ontem, Antero; outro de hoje, Jaime Gama).
4. Um território que se descobre ou redescobre e por onde se passeia e vagabundeia como se fosse por um imenso parque e nisto residirá indiscutivelmente o maior encanto e a mais assombrosa sedução desta ilha. Apercebi-me e não pela primeira vez, que os concelhos dispõem de brigadas de jardineiros, limpadores e cuidadores que jardinam, limpam e cuidam a paisagem. É vê-los, trabalhando com afinco e afã por essas freguesias fora. Não vi um jardim público desmazelado, uma berma mal cuidada, um canteiro esmorecido, um tufo de hortenses mal amanhado, uma árvore mal podada.
Maravilhando quem chega, quem passa, quem fica, quem parte.
Como esses vários solares, casas ou “Montes” que se abrem pelos verões acolhendo, com a prata da casa e uma simplicidade alegre, quem vem. Em S. Miguel convive-se, há essa arte e esse gosto, valorizando com isso a paisagem natural e emprestando-lhe o interesse e a curiosidade dos bons encontros e das boas conversas. Passado e presente confundem-se numa teia infindável de parentescos, memórias, famílias, por onde perpassa toda a nossa História.
5. Já aqui vim incontáveis vezes. Também já percorri com vagar outras ilhas deste arquipélago português. Mas deve haver poucos sítios neste vasto mundo onde a cada regresso se murmure para si mesmo que “desta vez” a vertigem da beleza tomou conta de nós. Que agora tudo foi ainda maior, ainda melhor, e que, sim, vai ser preciso voltar. Outra vez, todas as vezes.
6. Quase me sinto envergonhada deste ilusório efeito de “distância” onde me embalei sobre o que – a todos os níveis – se passa na “República”. Desde um país que arde há dois meses até às missas em Barcelona onde o Estado português se faz representar ao mais alto nível (porquê?), passando pelas causas ainda não apuradas da tragédia de Pedrogão, ou aquilo que se ouve aos políticos, vive-se em sessões contínuas de estranheza.
Para usar um substantivo delicado.


Nenhum comentário: