Entre um sábio, guiado pela razão, como os Estóicos, fechado aos sentimentos naturais, como uma estátua de pedra, e um louco guiado pelas paixões, o povo elegerá como chefe não a espécie de demiurgo mas “um homem a quem nada fosse estranho”, nem mesmo os prazeres da vida, que o aproximam do vulgo. Tal é a matéria do capítulo XXX do “Elogio da Loucura”.
O problema do Mal surge no capítulo XXXI, complementado com o estranho apego à vida do homem, criando, para se atordoar, entretenimentos que lhe disfarçam a angústia das suas contingências existenciais:
XXXI – “Suponho que alguém olha do alto a vida do homem, como o Júpiter dos poetas o faz por vezes, e observa a quantidade de males que pendem sobre ele, o seu nascimento humilhado, a sua educação difícil, os perigos em torno da sua infância, os duros trabalhos impostos à sua juventude, a sua velhice penosa e a dura necessidade da morte, após tantas doenças, incomodidades que o assaltam de todos os lados, que envenenam toda a sua existência. Não falemos do mal que o homem faz ao homem: arruína-o, aprisiona-o, desonra-o, tortura-o, estende-lhe armadilhas, trai-o; enumerá-los todos, com os ultrages, os processos, as escroquerias, seria contar grãos de areia.”
As extraordinárias manigâncias hoje em dia perpetradas pelos homens contra os homens são prova de uma evolução cada vez mais ampla no significado da expressão “o homem lobo do homem” que tantos monstros a actualidade revelou, e que foram sublinhados em obras ficcionais de um simbolismo aterrador, caso de “O Processo” de Kafka, “O Estrangeiro” de Camus, “1984” de Georges Orwell, este último criador de uma sinistra figura de “Big Brother” controlador do próprio pensamento humano, num absurdo totalitarismo sem saída.
Aponta a Loucura alguns dos sábios que por desgosto de viver se suicidaram. E prossegue, elogiando os seus próprios méritos:
“Vós sentis bem, julgo, o que sucederia, se todos os homens fossem sensatos; seria necessário que um outro Prometeu moldasse outros com um novo barro. Eu, pelo contrário, ajudada pela Ignorância tanto como pela Irreflexão, ao fazer-lhes esquecer as suas misérias, esperar a felicidade, saborear por vezes o mel dos prazeres, consolo-os dos seus males de tal forma que eles deixam a vida com pena, ainda que a Parca tenha fiado toda a sua trama e que a vida os abandone.”
Assim, os velhos:
"A vida não os aborrece de maneira nenhuma. Quanto menos motivos eles têm para se lhe apegar, mais se lhe aferram. São meus clientes, esses velhos que atingiram a idade de Nestor e perderam toda a forma humana, e que vemos balbuciar, disparatar, os dentes partidos, o cabelo branco ou ausente, ou, para melhor os descrever com as palavras de Aristófanes, sujos, curvados, enrugados, calvos e desdentados, sem queixo, encarniçar-se em prezar a vida. Por isso, eles rejuvenescem, um tingindo os cabelos, outro usando peruca, este usando falsos dentes talvez arrancados a um porco, este embeiçado por uma virgem e por ela cometendo mais loucuras do que um jovem. Um moribundo, próximo a unir-se às sombras, desposa sem dote uma jovem meiguinha, que fará o prazer dos vizinhos; o caso é frequente e, por minha fé, disso se gabam.”
Sobre a apetência da vida, também La Fontaine trataria o tema, na sua fábula “La Mort et le Bûcheron”, mas o retrato dos velhos decrépitos buscando a ilusão de mocidade, tem uma actualidade permanente em cuidados capilares e odontológicos que acompanham, felizmente, o progresso.
Mas é sobre as velhas que Erasmo lança com mais sanha o ferrão sarcástico do seu conservadorismo provinciano, na fala cruel de uma Loucura criadora da ilusão:
“Mas o mais charmoso é ver velhas, tão velhas, tão cadavéricas que as julgaríamos retornadas dos Infernos, repetir constantemente: “A vida é bela!” Elas são quentes como cadelas ou como dizem de bom grado os Gregos, cheiram a bode. Elas seduzem a preço de ouro qualquer jovem Fáon, pintam-se continuamente, têm sempre o espelho na mão, depilam-se no sítio secreto, ostentam mamas flácidas e murchas, solicitam num queixume trémulo um desejo que enlanguesce, querem beber, dançar com as raparigas, escrever cartas de amor. Todos troçam e dizem-lhes o que elas são, arquiloucas. Entretanto elas estão contentes consigo, alimentam-se de mil delícias, saboreiam todas as doçuras e, quanto a mim, são felizes.”
Só o que me parece é que as velhas assim descritas, já eram velhas quando jovens, egocêntricas, mimalhas, revendo-se no seu espelho, qual Narciso apaixonado por si próprio, que da vida não procuraram senão as delícias do seu próprio eu. Ao contrário de Erasmo, julgo-as infelizes, condenadas a uma solidão só remediada pelo seu narcisismo cego em relação ao mundo, ou pelos meios estapafúrdios tripudiados pelo escritor.
E a Loucura, vá de concluir, bonacheironamente, num falso ataque à sensatez, atribuindo-se a si o mérito da felicidade humana:
“Peço àqueles que as acham ridículas, que verifiquem se não vale mais levar a sua doce vida nesta loucura do que procurar, como se diz, a trave para se enforcar. Bem entendido, a desonra que assenta na conduta dos meus loucos não conta para estes; nem mesmo a sentem ou não lhe dão atenção. Receber uma pedrada na cabeça é um mal que existe; a vergonha, a infâmia, o opróbio, o insulto, só são palavras para quem as sente. O mal não existe quando não é sentido. O povo inteiro assobia-te; não vale nada, se tu te aplaudes, e só a Loucura te autoriza a isso.»
É certo que as palavras podem significar pedradas. Num mundo normal. Mas como disse Cristo, ninguém está tão puro assim, para poder apedrejar com tanta autoridade. Nem mesmo os sábios.
É por isso que os nossos ministros - e aderentes - seguem tranquilos na sua caravana.
O problema do Mal surge no capítulo XXXI, complementado com o estranho apego à vida do homem, criando, para se atordoar, entretenimentos que lhe disfarçam a angústia das suas contingências existenciais:
XXXI – “Suponho que alguém olha do alto a vida do homem, como o Júpiter dos poetas o faz por vezes, e observa a quantidade de males que pendem sobre ele, o seu nascimento humilhado, a sua educação difícil, os perigos em torno da sua infância, os duros trabalhos impostos à sua juventude, a sua velhice penosa e a dura necessidade da morte, após tantas doenças, incomodidades que o assaltam de todos os lados, que envenenam toda a sua existência. Não falemos do mal que o homem faz ao homem: arruína-o, aprisiona-o, desonra-o, tortura-o, estende-lhe armadilhas, trai-o; enumerá-los todos, com os ultrages, os processos, as escroquerias, seria contar grãos de areia.”
As extraordinárias manigâncias hoje em dia perpetradas pelos homens contra os homens são prova de uma evolução cada vez mais ampla no significado da expressão “o homem lobo do homem” que tantos monstros a actualidade revelou, e que foram sublinhados em obras ficcionais de um simbolismo aterrador, caso de “O Processo” de Kafka, “O Estrangeiro” de Camus, “1984” de Georges Orwell, este último criador de uma sinistra figura de “Big Brother” controlador do próprio pensamento humano, num absurdo totalitarismo sem saída.
Aponta a Loucura alguns dos sábios que por desgosto de viver se suicidaram. E prossegue, elogiando os seus próprios méritos:
“Vós sentis bem, julgo, o que sucederia, se todos os homens fossem sensatos; seria necessário que um outro Prometeu moldasse outros com um novo barro. Eu, pelo contrário, ajudada pela Ignorância tanto como pela Irreflexão, ao fazer-lhes esquecer as suas misérias, esperar a felicidade, saborear por vezes o mel dos prazeres, consolo-os dos seus males de tal forma que eles deixam a vida com pena, ainda que a Parca tenha fiado toda a sua trama e que a vida os abandone.”
Assim, os velhos:
"A vida não os aborrece de maneira nenhuma. Quanto menos motivos eles têm para se lhe apegar, mais se lhe aferram. São meus clientes, esses velhos que atingiram a idade de Nestor e perderam toda a forma humana, e que vemos balbuciar, disparatar, os dentes partidos, o cabelo branco ou ausente, ou, para melhor os descrever com as palavras de Aristófanes, sujos, curvados, enrugados, calvos e desdentados, sem queixo, encarniçar-se em prezar a vida. Por isso, eles rejuvenescem, um tingindo os cabelos, outro usando peruca, este usando falsos dentes talvez arrancados a um porco, este embeiçado por uma virgem e por ela cometendo mais loucuras do que um jovem. Um moribundo, próximo a unir-se às sombras, desposa sem dote uma jovem meiguinha, que fará o prazer dos vizinhos; o caso é frequente e, por minha fé, disso se gabam.”
Sobre a apetência da vida, também La Fontaine trataria o tema, na sua fábula “La Mort et le Bûcheron”, mas o retrato dos velhos decrépitos buscando a ilusão de mocidade, tem uma actualidade permanente em cuidados capilares e odontológicos que acompanham, felizmente, o progresso.
Mas é sobre as velhas que Erasmo lança com mais sanha o ferrão sarcástico do seu conservadorismo provinciano, na fala cruel de uma Loucura criadora da ilusão:
“Mas o mais charmoso é ver velhas, tão velhas, tão cadavéricas que as julgaríamos retornadas dos Infernos, repetir constantemente: “A vida é bela!” Elas são quentes como cadelas ou como dizem de bom grado os Gregos, cheiram a bode. Elas seduzem a preço de ouro qualquer jovem Fáon, pintam-se continuamente, têm sempre o espelho na mão, depilam-se no sítio secreto, ostentam mamas flácidas e murchas, solicitam num queixume trémulo um desejo que enlanguesce, querem beber, dançar com as raparigas, escrever cartas de amor. Todos troçam e dizem-lhes o que elas são, arquiloucas. Entretanto elas estão contentes consigo, alimentam-se de mil delícias, saboreiam todas as doçuras e, quanto a mim, são felizes.”
Só o que me parece é que as velhas assim descritas, já eram velhas quando jovens, egocêntricas, mimalhas, revendo-se no seu espelho, qual Narciso apaixonado por si próprio, que da vida não procuraram senão as delícias do seu próprio eu. Ao contrário de Erasmo, julgo-as infelizes, condenadas a uma solidão só remediada pelo seu narcisismo cego em relação ao mundo, ou pelos meios estapafúrdios tripudiados pelo escritor.
E a Loucura, vá de concluir, bonacheironamente, num falso ataque à sensatez, atribuindo-se a si o mérito da felicidade humana:
“Peço àqueles que as acham ridículas, que verifiquem se não vale mais levar a sua doce vida nesta loucura do que procurar, como se diz, a trave para se enforcar. Bem entendido, a desonra que assenta na conduta dos meus loucos não conta para estes; nem mesmo a sentem ou não lhe dão atenção. Receber uma pedrada na cabeça é um mal que existe; a vergonha, a infâmia, o opróbio, o insulto, só são palavras para quem as sente. O mal não existe quando não é sentido. O povo inteiro assobia-te; não vale nada, se tu te aplaudes, e só a Loucura te autoriza a isso.»
É certo que as palavras podem significar pedradas. Num mundo normal. Mas como disse Cristo, ninguém está tão puro assim, para poder apedrejar com tanta autoridade. Nem mesmo os sábios.
É por isso que os nossos ministros - e aderentes - seguem tranquilos na sua caravana.
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