Hoje fui eu que fiz um vistão junto da minha amiga, ao perguntar-lhe o que pensava do caso da Sakineh Mohammadi Ashtiani, nome que levei escrito para soletrar melhor. A minha amiga ignorava o caso e eu esclareci, em glória, que se tratava da pena capital por lapidação, comutada não se sabe bem para que outra pena, da iraniana adúltera que a Internet, em movimento comprovativo de uma solidariedade à escala mundial, ajudou, talvez, a minorar, mas não a erradicar, embora num país de Sorayas e Farah Dibas que pareciam mulheres de mentes esclarecidas, tal como o seu Xá. Antes dos Ayatollahs, é certo, que esses repuseram os bons princípios fundamentais e fundamentalistas, entre os quais se conta o decoro das casadas, ressalvada amistosamente a liberdade indecorosa dos casados.
- Foi uma coisa boa. A Internet salvou-a.
- Não sei se na totalidade, esclareci, ainda receosa das pedradas de que escapara a iraniana Sakineh, não fosse a moda pegar por cá, que a moda tem grande alcance. Mas o que acha?
- Eu, primeiro, matava à pedrada as pessoas que lhe dão a pena. Esses tinham que desaparecer. Depois mandava as mulheres do Irão – todas! - enganar os maridos. Não ficava nenhum de fora. O que é que se pode fazer a um povo com essa mentalidade? Isso aí ainda se usa? No Irão? É do tempo da Maria Madalena, vejam bem! Esses julgamentos fazem-se em público! Tanta mulher a estudar fora! Então essas mulheres do Irão não se levantam contra tal estado de coisas? O ser humano é horroroso! Santa Bárbara!
Eu admirei a forma profundamente contundente com que a minha amiga despeja as suas indignações, e lembrei, a propósito, que por cá também se fez, de castigos inquisitoriais, espectáculo topo de gama, seguido vibrantemente pelo nosso povo e até pela nossa nobreza e pelo nosso clero, sempre com enorme prazer das mentes mais ou menos ilustradas, todas exaltadamente aderentes. “Felizmente há Luar”, do Sttau Monteiro já o indiciara, mas sobretudo “O Judeu” de Bernardo Santareno o demonstrara, e ultimamente o nosso romancista-mor José Saramago, perito em descodificar as violências e animalidades de um povo – nas suas três classes sociais – deglutindo alvarmente os seus prazeres proporcionados pelas classes superiores, matando, nem tanto à pedrada, senão com torturas e incêndios punidores. Aliás, superstições, bruxedos, sacanices, hipocrisias, beatices, Garrett, Herculano, Júlio Dinis, Eça, e outros mais – e lembro “Mário" de Silva Gaio, tão expressivo da prepotência de figuras sinistras das lutas fratricidas liberais - já nos tinham deixado descritos em páginas de tanta elegância visualista.
Mas referências do género já Erasmo nos deixara em tantos expressivos retratos, e especificamente no capítulo XXXIX, da continuidade da nossa tradução do “Elogio da Loucura”.
Aí repete a Loucura, no seu aforismo da dependência da felicidade humana do vasto domínio dessa mesma loucura, que entre tantos outros desmandos, faz que o marido de uma mulher adúltera considere a sua mulher mais fiel do que Penélope, ou que o caçador se entregue de alma e coração aos sons horrendos da trompa ou aos latidos dos cães:
XXIX: “Aposto que o excremento dos cães lhes cheira a canela. E quanto êxtase em esquartejar o animal! Esquartejar vacas e carneiros é trabalho do campónio; ao fidalgo cabe o trinchar a fera. Ei-lo, de cabeça descoberta, de joelhos, com o cutelo especial que nenhum outro pode substituir; ele faz certos gestos, numa certa ordem, para cortar certos órgãos como um rito. À volta dele a multidão, de boca escancarada, admira sempre como um espectáculo novo o que ela já viu mil vezes, e o feliz mortal admitido a provar do animal, não tira daí parca honra. À força de perseguir os animais ferozes e deles se alimentar, os caçadores acabam por se lhes equiparar; eles não acham a sua vida menos digna que a dos reis.”
Hoje, alimentamos os nossos anseios de carnificina e sangue, com touradas, lutas de galos, futebóis quando viram desconchavo, e os profusos noticiários da nossa sensibilidade, atreita aos escândalos das doenças físicas e morais de que enfermamos, que eles tão morbidamente exploram, além da vacuidade dos questionários feitos pelos jornalistas das emoções fortes, às personagens importantes da nossa galeria governativa e afins. Com eles vibramos, às vezes nos envergonhamos, às vezes desligamos, incapazes de fruir.
E a Internet, foco de tanta sensaboria, é um mundo de valores tão espantosamente decisivos.
Às vezes salva. Assim seja, para Sakineh Mohammadi Ashtiani.
- Foi uma coisa boa. A Internet salvou-a.
- Não sei se na totalidade, esclareci, ainda receosa das pedradas de que escapara a iraniana Sakineh, não fosse a moda pegar por cá, que a moda tem grande alcance. Mas o que acha?
- Eu, primeiro, matava à pedrada as pessoas que lhe dão a pena. Esses tinham que desaparecer. Depois mandava as mulheres do Irão – todas! - enganar os maridos. Não ficava nenhum de fora. O que é que se pode fazer a um povo com essa mentalidade? Isso aí ainda se usa? No Irão? É do tempo da Maria Madalena, vejam bem! Esses julgamentos fazem-se em público! Tanta mulher a estudar fora! Então essas mulheres do Irão não se levantam contra tal estado de coisas? O ser humano é horroroso! Santa Bárbara!
Eu admirei a forma profundamente contundente com que a minha amiga despeja as suas indignações, e lembrei, a propósito, que por cá também se fez, de castigos inquisitoriais, espectáculo topo de gama, seguido vibrantemente pelo nosso povo e até pela nossa nobreza e pelo nosso clero, sempre com enorme prazer das mentes mais ou menos ilustradas, todas exaltadamente aderentes. “Felizmente há Luar”, do Sttau Monteiro já o indiciara, mas sobretudo “O Judeu” de Bernardo Santareno o demonstrara, e ultimamente o nosso romancista-mor José Saramago, perito em descodificar as violências e animalidades de um povo – nas suas três classes sociais – deglutindo alvarmente os seus prazeres proporcionados pelas classes superiores, matando, nem tanto à pedrada, senão com torturas e incêndios punidores. Aliás, superstições, bruxedos, sacanices, hipocrisias, beatices, Garrett, Herculano, Júlio Dinis, Eça, e outros mais – e lembro “Mário" de Silva Gaio, tão expressivo da prepotência de figuras sinistras das lutas fratricidas liberais - já nos tinham deixado descritos em páginas de tanta elegância visualista.
Mas referências do género já Erasmo nos deixara em tantos expressivos retratos, e especificamente no capítulo XXXIX, da continuidade da nossa tradução do “Elogio da Loucura”.
Aí repete a Loucura, no seu aforismo da dependência da felicidade humana do vasto domínio dessa mesma loucura, que entre tantos outros desmandos, faz que o marido de uma mulher adúltera considere a sua mulher mais fiel do que Penélope, ou que o caçador se entregue de alma e coração aos sons horrendos da trompa ou aos latidos dos cães:
XXIX: “Aposto que o excremento dos cães lhes cheira a canela. E quanto êxtase em esquartejar o animal! Esquartejar vacas e carneiros é trabalho do campónio; ao fidalgo cabe o trinchar a fera. Ei-lo, de cabeça descoberta, de joelhos, com o cutelo especial que nenhum outro pode substituir; ele faz certos gestos, numa certa ordem, para cortar certos órgãos como um rito. À volta dele a multidão, de boca escancarada, admira sempre como um espectáculo novo o que ela já viu mil vezes, e o feliz mortal admitido a provar do animal, não tira daí parca honra. À força de perseguir os animais ferozes e deles se alimentar, os caçadores acabam por se lhes equiparar; eles não acham a sua vida menos digna que a dos reis.”
Hoje, alimentamos os nossos anseios de carnificina e sangue, com touradas, lutas de galos, futebóis quando viram desconchavo, e os profusos noticiários da nossa sensibilidade, atreita aos escândalos das doenças físicas e morais de que enfermamos, que eles tão morbidamente exploram, além da vacuidade dos questionários feitos pelos jornalistas das emoções fortes, às personagens importantes da nossa galeria governativa e afins. Com eles vibramos, às vezes nos envergonhamos, às vezes desligamos, incapazes de fruir.
E a Internet, foco de tanta sensaboria, é um mundo de valores tão espantosamente decisivos.
Às vezes salva. Assim seja, para Sakineh Mohammadi Ashtiani.
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