No capítulo XXXVIII distingue a Loucura duas espécies de Demência:
XXXVIII – ...“Há uma que as Fúrias desencadeiam dos Infernos sempre que soltam as suas serpentes e instigam no coração dos mortais o ardor da guerra, a sede inextinguível do oiro, o amor desonroso e culpado, o parricídio, o incesto, o sacrilégio, e tudo o resto, ou quando elas perseguem com as suas tochas terríficas as consciências criminosas. A outra demência nada tem de semelhante; emana de mim e é a coisa mais desejável. Ela nasce de cada vez que uma doce ilusão liberta a alma das suas penosas preocupações e a entrega às diversas formas da voluptuosidade.”
É a ilusão que deseja Cícero quando escreve ao seu amigo Atticus, “como um dom supremo dos Deuses, a fim de aí encontrar o esquecimento de todas as suas desgraças”. Ou o louco citado por Horácio, que, sozinho no teatro, aplaudia o que ele julgava ser as melhores representações teatrais, de facto inexistentes, e que junto dos seus se mostrava o ser mais amável para com todos. Tratado pela família, curou-se e passou a queixar-se: “Por Pólux! Vocês mataram-me, meus amigos! Não me salvaram, ao tirarem-me a minha alegria, forçando-me a deixar a encantadora ilusão do meu espírito”.
Também Camões lembra a história de um certo Trasilau “Que perdido um grão tempo o siso teve / Por causa duma grande enfermidade; / E enquanto de si fora, doido esteve, / Tinha por teima e cria por verdade / Que eram suas as naus que navegavam / Quantas no porto Píreo ancoravam”
O irmão Crito, fraternalmente, entregou-o à eficiência da ciência médica :
“...Sisudo, Trasilau ao caro irmão / Agradece a vontade, a obra não:
“Porque, depois de ver-se no perigo
Dos trabalhos que o siso lhe obrigava
E depois de não ver o estado antigo
Que a vã opinião lhe apresentava,
- “Ó inimigo irmão com cor de amigo!
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo
Que nunca pode ter nenhum sisudo?
“Por que rei, por que duque me trocara?
Por que senhor de grande fortaleza?
Que me dava que o mundo se acabara,
Ou que a ordem mudasse a Natureza?
Agora é-me pesada a vida cara;
Sei que coisa é trabalho, e que tristeza.
Torna-me a meu estado, que eu te aviso
Que na doidice só consiste o siso....”
E a estrofe final destas oitavas ao “desconcerto do mundo”, dirigidas a um amigo, provavelmente D. António de Noronha, são bem síntese de uma das teses versadas no capítulo XXXVIII do “Elogio da Loucura”, de Erasmo, sobre a felicidade criada pela loucura da ilusão:
“Vedes aqui, Senhor, mui claramente,
Como Fortuna em todos tem poder,
Senão só no que menos sabe e sente,
Em quem nenhum desejo pode haver.
Este se pode rir da cega gente;
Neste não pode nada acontecer;
Nem estará suspenso na balança
Do temor mau, da pérfida esperança.”
Estranho mundo, de insegurança, de medo, de desesperança, de desespero, pelo caos que vamos criando, também com a nossa obesidade de fartura, assistente indiferente da gente mirrada por esse globo fora, cada vez mais mirrada, mais reduzida a insanidade que a sua ignorância favorece, ao contrário do que diz a Loucura, que considera insanes os sábios, os que se dão conta dos males, a “cega gente” de que fala o poeta português.
Não o que escreve Francisco Otaviano de Almeida Rosa, advogado, jornalista, diplomata, político e poeta brasileiro (1825/1889), em estrofe que colhemos em Elos Clube de Tavira, onde, poeticamente reivindica uma plenitude existencial de Mal e Bem, como definição para a vida humana ideal:
"Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu. "
Mas as imagens espectrais dos seres estropeados – pela fome, pela guerra, pelas monstruosidades consentidas pela Humanidade, a mesma que construiu “Declarações de Direitos Universais” – dizem-nos que esses talvez se não importassem de passar pela vida em “branca nuvem” e adormecer “em plácido repouso”, na rota de destruição em que vegetam.
XXXVIII – ...“Há uma que as Fúrias desencadeiam dos Infernos sempre que soltam as suas serpentes e instigam no coração dos mortais o ardor da guerra, a sede inextinguível do oiro, o amor desonroso e culpado, o parricídio, o incesto, o sacrilégio, e tudo o resto, ou quando elas perseguem com as suas tochas terríficas as consciências criminosas. A outra demência nada tem de semelhante; emana de mim e é a coisa mais desejável. Ela nasce de cada vez que uma doce ilusão liberta a alma das suas penosas preocupações e a entrega às diversas formas da voluptuosidade.”
É a ilusão que deseja Cícero quando escreve ao seu amigo Atticus, “como um dom supremo dos Deuses, a fim de aí encontrar o esquecimento de todas as suas desgraças”. Ou o louco citado por Horácio, que, sozinho no teatro, aplaudia o que ele julgava ser as melhores representações teatrais, de facto inexistentes, e que junto dos seus se mostrava o ser mais amável para com todos. Tratado pela família, curou-se e passou a queixar-se: “Por Pólux! Vocês mataram-me, meus amigos! Não me salvaram, ao tirarem-me a minha alegria, forçando-me a deixar a encantadora ilusão do meu espírito”.
Também Camões lembra a história de um certo Trasilau “Que perdido um grão tempo o siso teve / Por causa duma grande enfermidade; / E enquanto de si fora, doido esteve, / Tinha por teima e cria por verdade / Que eram suas as naus que navegavam / Quantas no porto Píreo ancoravam”
O irmão Crito, fraternalmente, entregou-o à eficiência da ciência médica :
“...Sisudo, Trasilau ao caro irmão / Agradece a vontade, a obra não:
“Porque, depois de ver-se no perigo
Dos trabalhos que o siso lhe obrigava
E depois de não ver o estado antigo
Que a vã opinião lhe apresentava,
- “Ó inimigo irmão com cor de amigo!
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo
Que nunca pode ter nenhum sisudo?
“Por que rei, por que duque me trocara?
Por que senhor de grande fortaleza?
Que me dava que o mundo se acabara,
Ou que a ordem mudasse a Natureza?
Agora é-me pesada a vida cara;
Sei que coisa é trabalho, e que tristeza.
Torna-me a meu estado, que eu te aviso
Que na doidice só consiste o siso....”
E a estrofe final destas oitavas ao “desconcerto do mundo”, dirigidas a um amigo, provavelmente D. António de Noronha, são bem síntese de uma das teses versadas no capítulo XXXVIII do “Elogio da Loucura”, de Erasmo, sobre a felicidade criada pela loucura da ilusão:
“Vedes aqui, Senhor, mui claramente,
Como Fortuna em todos tem poder,
Senão só no que menos sabe e sente,
Em quem nenhum desejo pode haver.
Este se pode rir da cega gente;
Neste não pode nada acontecer;
Nem estará suspenso na balança
Do temor mau, da pérfida esperança.”
Estranho mundo, de insegurança, de medo, de desesperança, de desespero, pelo caos que vamos criando, também com a nossa obesidade de fartura, assistente indiferente da gente mirrada por esse globo fora, cada vez mais mirrada, mais reduzida a insanidade que a sua ignorância favorece, ao contrário do que diz a Loucura, que considera insanes os sábios, os que se dão conta dos males, a “cega gente” de que fala o poeta português.
Não o que escreve Francisco Otaviano de Almeida Rosa, advogado, jornalista, diplomata, político e poeta brasileiro (1825/1889), em estrofe que colhemos em Elos Clube de Tavira, onde, poeticamente reivindica uma plenitude existencial de Mal e Bem, como definição para a vida humana ideal:
"Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu. "
Mas as imagens espectrais dos seres estropeados – pela fome, pela guerra, pelas monstruosidades consentidas pela Humanidade, a mesma que construiu “Declarações de Direitos Universais” – dizem-nos que esses talvez se não importassem de passar pela vida em “branca nuvem” e adormecer “em plácido repouso”, na rota de destruição em que vegetam.
E os outros, aqueles que foram criados no espírito do Mal, apenas para matarem e se imolarem simultaneamente, submissos a um big brother manipulador das suas vidas e consciências, alguma vez terão sonhado com a liberdade, com outra realidade, no pesadelo das suas vidas de autómatos reféns, até sem culpa? Não, esses nem sequer a Trasilaus insanes podem aspirar.
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