terça-feira, 27 de julho de 2010

Veraneios devaneios

Foi La Fontaine um fabulista
Muito machista.
Só, com efeito, um machista
Ou, mais modernamente,
Um anti-feminista,
Mesmo que não fosse fabulista
E apenas contador de anedotas,
- De tretas -
Poderia tirar a seguinte ilação
Por ocasião
Do afogamento, por acidente
Inconveniente
De uma mulher,
De que, só para contrariar
As leis do deslizamento,
Ou da precipitação,
O seu corpo afogado iria aparecer
Não a jusante mas a montante
Do rio,
E com isso se divertir,
Mais os papalvos da margem,
Vazios de coragem
Para a salvarem,
E só plenos de bobagem
Para lhe prejudicarem
A reputação.
Ora vejamos de seguida
A fábula que poderia
Também hoje ser vivida,
Tanto mais que estamos no verão,
Ocasião
De trágicos afogamentos,
Como já os havia
Quando La Fontaine vivia
E se divertia,
No fio do rio,
Embora ninguém se lembre hoje de troçar
Com os inúmeros afogamentos
De que constantemente
E implacavelmente
Somos informados.
Antes, ficamos arrepiados:

De La Fontaine: “A mulher afogada”

«Eu não sou daqueles que dizem: “Não é nada,
É uma mulher afogada.”
Eu digo que é muito; e que este sexo bem valeria
Que o lamentássemos, visto que faz a nossa alegria.
O que acabo de dizer não é desrazoável
Visto que se trata, nesta fábula,
De uma mulher que nas águas dum rio
Tinha acabado os seus dias
Num destino deplorável.
O esposo o corpo procurou
Para lhe prestar, nesta aventura,
As honras da sepultura.
Aconteceu
Que nas margens do rio,
Autor da sua desgraça,
Umas pessoas passeavam
Que ignoravam
O acidente.
Este marido, por isso, tendo-lhes perguntado
Se da sua mulher nenhum rasto haviam encontrado,
Um lhe respondeu:
“Nenhum, mas mais abaixo a procurai;
Segui do rio o fio.”
Um outro redarguiu:
“Não, não o sigais;
Mas, pelo contrário, atrás voltai.
Qualquer que seja o declive e a inclinação
Com que a água, pela sua corrente a vai levar,
O espírito de contradição
A fará doutra sorte flutuar.”

Este homem zombava com inconveniência
Sobre o humor de contradição
Da mulher.
Não sei se ele tinha razão
No seu parecer;
Mas este humor, quer seja ou não
Defeito do sexo e da tendência,
Quem com ele nascer,
Sem falta com ele irá morrer,
E até ao fim irá vivendo a contradizer,
Mesmo, talvez, para além,
No Além.»


Só quero com a minha conclusão,
Considerar
Quanto a mulher foi sempre menosprezada
Mesmo por La Fontaine que lhe justifica o ser
Ironicamente
Como uma espécie de bobo para o homem alegrar.
Mas hoje, mais do que nunca ela é maltratada,
Não pela troça mas pelo ódio,
Apesar das lutas feministas
Que a libertaram e lhe trouxeram
Uma aparência de igualdade,
O que não é verdade
Tendo em conta os crimes que se cometem
Quase diariamente
Na nossa sociedade,
Crimes cometidos por maridos
Que não aceitam a liberdade
Que as suas mulheres assumiram
Quando os deixaram,
Crimes de estarrecer
A provar que, mais que de compreensão e bondade
O homem, na sua paixão,
Se serve daquilo que tem mais à mão:
A força física como arma fatal
Ou a pistola que lhe deixaram ter.

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