quarta-feira, 14 de julho de 2010

Encomium Moriae, 19 - “Eu também sabia essa!”

- Ele descobriu essa!
- Quê? Quando? Onde? Como? Porquê? – larguei, de jorro, os advérbios das minhas dúvidas, na distracção do meu queque, sem reparar que a minha amiga, que estava embrenhada no Destak, conscienciosamente extraído do escaparate do Pingo Doce, de repente se punha a arremedar a voz séria, suave e surda do nosso suspiroso PR:
- O quê? Que devíamos exportar mais! “E esta hein?”, diria o coiso.
- Fernando Pessa, esclareci severamente, incomodada com a designação pejorativa, mais adequada à nossa infância escassamente informada.
- Ó pá! Isto mete-me tanta raiva! - E imita a voz, que apelida de salazarista: “Há muito tempo que eu ando a insistir que é preciso criar riqueza! Temos que exportar mais!”. Sabia essa?
- Mas foi isso quando?
- Creio que foi ontem.
- Onde?
- Num dos canais. Talvez na Sic!
- Como?
- Nem sei se num dos apontamentos de rua, junto dos jornalistas curiosos. Ou do povo alarmado.
- Então porquê?
- Ora porquê! Trata-se da conjuntura. Hoje toda a gente fala no desaire económico, em entrevistas a torto e a direito. Vem agora o PR falar em exportação! Eu tenho o costume, no supermercado, de ver donde vêm as coisas. Até as agulhas e as linhas vêm de fora! Mas a estas pessoas a comida aparece-lhes na mesa. Não vêem as embalagens!
- É! O PR tem essa mania de se dizer preocupado com o status quo. Mas nada faz para o melhorar. Não se mete nas coisas do Governo, pois tem que defender cuidadosamente o seu governo próprio, as suas três reformas. Não mostra interesse em exigir menos corrupção, não mexe uma palha para equilibrar os desequilíbrios sociais e económicos, ele próprio pertencente aos que ajudam a balança a pender.
- Sim, a ele não lhe convém entrar em fricção. Se quer continuar no lugar...
- Ah! Pois quer! E vai! Que ele sabe que não há outro!
- Mesmo assim, suspiroso!...
- Pois é! Os presidentes! E os príncipes! E os reis! Também o Erasmo acerca destes escreveu, no capítulo LV do seu “Elogio da Loucura”, depois de ter percorrido ironicamente, os tolos que se entretêm com histórias de milagres (XL), os santos (XLI), os titulares vaidosos (XLII), as nações e as cidades levados pela Filáucia(XLIII), os que se deixam levar pela Lisonja, porque é mais fácil aceitar a mentira do que a verdade (XLIV, XLV). Nos capítulos XLVI – LIV, reivindica a Loucura as vantagens da sua actuação entre os homens que lhe não prestam culto suficiente, e exemplifica com os Poetas, os Gramáticos, os Escritores, os Jurisconsultos, os Filósofos, os Teólogos, os Religiosos, os Monges... em páginas plenas de informação e de sentido crítico de sabor já anti-clerical:

LIV: «Vejam, penso eu, quanto me devem estas gentes, que, pelas suas momices, as suas ridículas necedades e a sua vozearia, exercem uma espécie de tirania entre os homens e se julgam Paulo (São), e António (Santo do Egipto, não o de Pádua).”

Mas, porque nos debruçamos sobre o nosso PR e seu séquito governativo, eis o que expende a Loucura, em discurso tão cheio de actualidade e acutilância:

LV- «Sinto-me feliz agora por deixar histriões, cuja ingratidão dissimula os meus benefícios e cuja hipocrisia simula a piedade.
Há muito tempo que eu desejava falar-vos dos Reis e dos Príncipes da corte; eles, pelo menos, com a franqueza própria dos homens livres, prestam-me um culto sincero.
Em verdade, se eles tivessem o menor bom senso, que vida seria mais triste e mais para abandonar do que a deles? Ninguém gostaria de pagar a coroa com o preço de um perjúrio ou dum parricídio, se se pensasse no peso do fardo que a si se impõe aquele que quer mesmo governar. Logo que toma o poder, não pode pensar senão nas questões políticas e não nas suas, visar unicamente o bem geral, não se afastar uma polegada da observação das leis que ele promulgou e mandou executar, exigir a integridade de cada um na administração e na magistratura. Todos os olhares se voltam para ele, porque ele pode ser, pelas suas virtudes, o astro benfeitor que assegura a salvação dos homens ou o cometa mortal que lhes leva a catástrofe. Os vícios dos outros não têm tanta importância e a sua importância não se estende tão longe; mas o Príncipe ocupa um tal lugar, que as suas ínfimas falhas espalham um mau exemplo universal. Favorecido pela Sorte, ele é rodeado de todas as seduções; por entre os prazeres, a independência, a adulação, o luxo, tem muitos esforços a fazer, muitos cuidados a tomar, para não se enganar sobre o seu dever e nunca a ele falhar. Enfim, vivendo no meio de ciladas, de ódios, de perigos e sempre com receio, ele sente, por cima da sua cabeça, o Rei verdadeiro, que não tardará a a pedir-lhe contas do mais pequeno erro, e será tanto mais severo para ele quanto maior for o seu poder.
Na verdade, se os príncipes se vissem nesta situação - o que eles fariam se fossem sensatos - não poderiam, penso, saborear em paz nem o sono, nem a mesa. É então que eu lhes trago o meu benefício: eles deixam aos Deuses a resolução das questões, levam uma vida de moleza e não querem escutar senão aqueles que lhes sabem falar agradavelmente e afastar-lhes a preocupação do espírito. Eles julgam cumprir escrupulosamente a função real, se forem assiduamente à caça, mantêm belos cavalos, traficam a seu gosto magistraturas e leis, inventam cada dia novas formas de fazer absorver pelo fisco a fortuna dos cidadãos, descobrem hábeis esquemas que cobrirão de um arremedo de justiça a pior iniquidade. Acrescentam, para as seduzir, algumas lisonjas às massas populares.
Imaginai, por aqui, o Príncipe tal como é frequentemente. Ele ignora as leis, é bastante hostil ao bem geral, porque não encara senão o seu; entrega-se aos prazeres, odeia o saber, a independência e a verdade, troça da saúde pública, e não tem outras regras a não ser as suas cupidícias e o seu egoísmo. Dai-lhe um colar de ouro, símbolo da junção de todas as virtudes, a coroa ornada de pedras preciosas para o advertir a superiorizar-se a todos num conjunto de virtudes heróicas; acrescentai-lhe o ceptro, emblema da justiça e duma alma incorruptível, enfim a púrpura, que significa a perfeita dedicação ao Estado. Um príncipe que soubesse comparar a sua conduta a estas insígnias da sua função, enrubesceria, parece-me, por com elas estar revestido, e recearia que um malicioso intérprete viesse pôr a ridículo todos estes apetrechos de teatro.»

Concluímos, a minha amiga e eu, depois de admirar o rigor, a exactidão e a perenidade do retrato feito, que a diferença, de então para cá, entre o chefe de Estado antigo e o moderno, está no rubor. Hoje, inexistente.

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