A minha amiga, que não é para graças, sobretudo quando se sente atingida nos seus pruridos de grande dama, de rectidão, pontualidade, respeito pelas passadeiras, em que eu sou muito mais flexível, para não ter que dar uma volta maior quando posso encurtá-la, atravessando fora da passadeira, às vezes tendo mesmo que alargar o passo ou até dar uma corrida, por conta dos automobilistas céleres a marcar posição nos seus espadas, assustando de propósito os infractores peões do código rodoviário, embora eu possa inferir, dado o gosto do atropelo permitido na lei portuguesa, que não se importem tanto com outras infracções mais obscuras e mais rentáveis, muito comuns entre nós, em que eles próprios poderão estar implicados mais a coberto - é o que eu penso, porque o pensamento é livre, penso - a minha amiga, dizia eu, enxofrou-se com as afirmações que leu ontem do Erasmo, cheirando a ranço machista, sobre as velhas mulheres desocupadas e coquettes.
- “Esse seu Erasmo ainda estava muito cru quando escreveu isso, ele pouco percebia de mulheres” – abespinhou-se ela, e eu confirmei que tinha pouco mais de quarenta anos, tendo nascido não se sabe bem se em 1466 ou 67, e que redigira o vasto retrato social “Elogio da Loucura” em uma semana de Agosto de 1508, em casa do seu amigo Thomas Morus, tendo-o, é certo, concebido umas semanas antes enquanto cavalgava na sua mula.
- “Então deve ter-se inspirado na mula” continuou, ressabiada, e eu lembrei, a propósito - quando a minha amiga se escama eu apresso-me a dizer amen com ela – lembrei a “mula da cooperativa” do nosso doce Max, aquela que deu dois coices no telhado só por causa do Zé da Adega não saber cantar o fado, considerando que, como a mente humanista de Erasmo colheu proveito em muitas fontes, podia ser que a sua mula lhe tivesse servido também de inspiração.
Mas são águas passadas, que o que temos, de facto notado, é a sua capacidade gritante de coligir, nas suas experiências e nas suas leituras, tantas reflexões, ora sérias ora mais jocosas, sobre a natureza humana, recheadas de exemplos clássicos vastíssimos.
Vejamos o capítulo XXXII, sobre o facto de os filósofos reclamarem da desgraça que é esse domínio da Loucura na manutenção “da ilusão, do erro e da ignorância” humanos. Responde esta:
XXXII: “Mas não, é ser-se homem, muito simplesmente. Não vejo porque eles chamam desgraça ter nascido assim, ser-se educado e formado segundo a comum condição. Não é desgraça nenhuma ser-se o que se é, a menos que um homem ache lamentável não poder voar como os pássaros, caminhar a quatro patas como o resto dos animais, ou ter cornos como o touro. Considerar-se-ia infeliz um belo cavalo, porque não sabe a gramática e não come bolos, ou um touro porque não pode fazer ginástica? Da mesma forma que a sua ignorância gramatical não poderia tornar infeliz o cavalo, a Loucura não faz a desgraça do homem, porque é conforme à sua natureza.»
Contra a observação dos filósofos de que o conhecimento das Ciências resulta de uma compensação da inteligência relativamente a uma natureza humana escassa, contrapõe a Loucura com uma afirmação de recusa dessa tolice, vista a generosidade da mesma natureza com os mosquitos e as plantas, incompatível com a “sonolência” em relação ao género humano, impondo-lhe o recurso às Ciências, inventadas em seu prejuízo:
“As Ciências irromperam na humanidade com o resto dos seus flagelos” .
“ De nenhuma ciência estava provida a idade de ouro. Só a guiava o instinto da Natureza.”
“Que necessidade tinham de gramática, visto que a língua então era a mesma para todos e a palavra servia apenas para se fazerem entender? Que necessidade havia da dialéctica, já que nenhum combate se travava entre opiniões rivais? Que fazer da retórica, se não existiam processos? Para quê a jurisprudência, quando não haviam começado os maus costumes, donde nasceram sem dúvida as boas leis? (“Leges bonae ex malis moribus procreantur” – in “Saturnales” de Macrobius). Os homens eram demasiado religiosos para ousarem mostrar uma curiosidade ímpia aos mistérios da Natureza, medir os astros, os seus movimentos, as suas influências, perscrutar o secreto mecanismo do mundo. Eles achavam criminoso que se procurasse saber mais do que um simples mortal. Era demência olhar para além do céu e esse pensamento não acudia a ninguém. Mas à medida que diminuiu esta pureza da idade de ouro, os maus génios inventaram as Ciências. Elas foram primeiro pouco numerosas com poucos iniciados. Mais tarde, a superstição dos Caldeus e a vã frivolidade dos Gregos sobrecarregou-as de torturas inumeráveis para a inteligência, a tal ponto que só a gramática pode fazer o suplício de uma vida inteira.”
Foi neste ponto que acordámos para a compreensão da nossa realidade de simplificação da escrita e mesmo do significado do “Projecto Erasmus”, feito de intercomunicação comunitária e de redução teórica em abono do conhecimento prático, como pontos educativos charneira das políticas do nosso PM.
Além de outras realidades que pretendem fazer-nos retornar à Idade de Ouro erasmiana, prova de que eu tinha bué de razão, quando resolvi traduzir ou sintetizar paulatinamente o seu livro “Encomium Moriae” segundo etimologia grega ou “Laus Stultitiae”, na versão latina.
Que a “mula da cooperativa” do nosso doce Max é uma fonte de inspiração para nós, que vamos cada vez mais escouceando. E relinchando.
- “Esse seu Erasmo ainda estava muito cru quando escreveu isso, ele pouco percebia de mulheres” – abespinhou-se ela, e eu confirmei que tinha pouco mais de quarenta anos, tendo nascido não se sabe bem se em 1466 ou 67, e que redigira o vasto retrato social “Elogio da Loucura” em uma semana de Agosto de 1508, em casa do seu amigo Thomas Morus, tendo-o, é certo, concebido umas semanas antes enquanto cavalgava na sua mula.
- “Então deve ter-se inspirado na mula” continuou, ressabiada, e eu lembrei, a propósito - quando a minha amiga se escama eu apresso-me a dizer amen com ela – lembrei a “mula da cooperativa” do nosso doce Max, aquela que deu dois coices no telhado só por causa do Zé da Adega não saber cantar o fado, considerando que, como a mente humanista de Erasmo colheu proveito em muitas fontes, podia ser que a sua mula lhe tivesse servido também de inspiração.
Mas são águas passadas, que o que temos, de facto notado, é a sua capacidade gritante de coligir, nas suas experiências e nas suas leituras, tantas reflexões, ora sérias ora mais jocosas, sobre a natureza humana, recheadas de exemplos clássicos vastíssimos.
Vejamos o capítulo XXXII, sobre o facto de os filósofos reclamarem da desgraça que é esse domínio da Loucura na manutenção “da ilusão, do erro e da ignorância” humanos. Responde esta:
XXXII: “Mas não, é ser-se homem, muito simplesmente. Não vejo porque eles chamam desgraça ter nascido assim, ser-se educado e formado segundo a comum condição. Não é desgraça nenhuma ser-se o que se é, a menos que um homem ache lamentável não poder voar como os pássaros, caminhar a quatro patas como o resto dos animais, ou ter cornos como o touro. Considerar-se-ia infeliz um belo cavalo, porque não sabe a gramática e não come bolos, ou um touro porque não pode fazer ginástica? Da mesma forma que a sua ignorância gramatical não poderia tornar infeliz o cavalo, a Loucura não faz a desgraça do homem, porque é conforme à sua natureza.»
Contra a observação dos filósofos de que o conhecimento das Ciências resulta de uma compensação da inteligência relativamente a uma natureza humana escassa, contrapõe a Loucura com uma afirmação de recusa dessa tolice, vista a generosidade da mesma natureza com os mosquitos e as plantas, incompatível com a “sonolência” em relação ao género humano, impondo-lhe o recurso às Ciências, inventadas em seu prejuízo:
“As Ciências irromperam na humanidade com o resto dos seus flagelos” .
“ De nenhuma ciência estava provida a idade de ouro. Só a guiava o instinto da Natureza.”
“Que necessidade tinham de gramática, visto que a língua então era a mesma para todos e a palavra servia apenas para se fazerem entender? Que necessidade havia da dialéctica, já que nenhum combate se travava entre opiniões rivais? Que fazer da retórica, se não existiam processos? Para quê a jurisprudência, quando não haviam começado os maus costumes, donde nasceram sem dúvida as boas leis? (“Leges bonae ex malis moribus procreantur” – in “Saturnales” de Macrobius). Os homens eram demasiado religiosos para ousarem mostrar uma curiosidade ímpia aos mistérios da Natureza, medir os astros, os seus movimentos, as suas influências, perscrutar o secreto mecanismo do mundo. Eles achavam criminoso que se procurasse saber mais do que um simples mortal. Era demência olhar para além do céu e esse pensamento não acudia a ninguém. Mas à medida que diminuiu esta pureza da idade de ouro, os maus génios inventaram as Ciências. Elas foram primeiro pouco numerosas com poucos iniciados. Mais tarde, a superstição dos Caldeus e a vã frivolidade dos Gregos sobrecarregou-as de torturas inumeráveis para a inteligência, a tal ponto que só a gramática pode fazer o suplício de uma vida inteira.”
Foi neste ponto que acordámos para a compreensão da nossa realidade de simplificação da escrita e mesmo do significado do “Projecto Erasmus”, feito de intercomunicação comunitária e de redução teórica em abono do conhecimento prático, como pontos educativos charneira das políticas do nosso PM.
Além de outras realidades que pretendem fazer-nos retornar à Idade de Ouro erasmiana, prova de que eu tinha bué de razão, quando resolvi traduzir ou sintetizar paulatinamente o seu livro “Encomium Moriae” segundo etimologia grega ou “Laus Stultitiae”, na versão latina.
Que a “mula da cooperativa” do nosso doce Max é uma fonte de inspiração para nós, que vamos cada vez mais escouceando. E relinchando.
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