Já em tempos fizera uma apreciação ao livro «À
sombra dos dias” do mesmo autor (em “Anuário – Memórias Soltas”,
1999). A curiosidade me levou a ler este, uma boa encadernação do Círculo de
Leitores (1998). Costumava ler as poesias que Guilherme de Melo ia publicando
na “Página da Mulher” do Notícias de Lourenço Marques e lembro-me de que
gostava mais dele como poeta do que do autor das prosas que escrevia no
Notícias. Mas esta narrativa sobre uma figura de mulher feia e apagada, que
passa na vida de forma baça, no retraimento e seriedade de um destino condenado
à partida, interessou-me, como complemento céptico de uma temporalidade que
vivemos sem esperança, mas que em nada favorece a mudança para um estado de
espírito mais optimista.
Uma progressão narrativa cronológica, iniciada com a
referência à personagem central que dá o nome à obra – Elisa Antunes
– e estruturada em duas partes subentendidas – a primeira, mais curta (60
páginas), que poderíamos sublinhar como origens, percorrendo seis
capítulos pontuados com um nome – o nome
dos seres justificativos da sua existência terrena e figura física e
psicológica; a segunda parte (115 páginas), centrada na figura de Elisa e dos
comparsas da sua vivência como ser que a vida a cada passo frustrou.
Temos, pois, a trisavó Margaretha, judia holandesa
fugida com a filha Erika à monstruosa insânia nazi. Dela herdou o nariz que,
juntamente com os olhos “piscos” das muitas dioptrias e a fealdade herdada do
avô paterno, Mateus Antunes, desde a escola, lhe valeram a humilhante alcunha
de Maria Cegonha. Casara aquele com Erika, por manigâncias interesseiras da mãe
desta, sabendo aproveitar-se do enamoramento deslumbrado do beirão Mateus,
profissional cumpridor num banco em Lisboa, que vivia em casa dos padrinhos.
Falhado o casamento, por conveniência da astuciosa Margaretha – que irá
prosseguir com a filha a sua existência como donas de uma casa de passe - para
escândalo do pobre Mateus - é André, o filho abandonado por Erika e Margaretha,
educado na província, pelos avós paternos e sobretudo pela bisavó Domingas –
Maria Lua – velha “sibila” com conhecimentos primitivos, que se regia pelo
“relógio da Lua”, nos seus hábitos toscos que maravilhavam o bisneto. Feito o
liceu na província, segue André para Lisboa, para junto do pai, frequenta o
curso de Românicas, que não acaba, sonhador inveterado, procurando junto dos
colegas de estúrdia e de tendências demolidoras
do salazarismo, os complementos dos seus interesses e ausência de
responsabilidade. Casa com a colega da Faculdade, Laura, é mobilizado para
Bissau, quando regressa, a filha Elisa já tem três meses, mas Laura morre num
novo parto gorado, aos três anos da filha, e com grande dor do pai. Elisa é
criada pelo pai, e por uma namorada simpática deste – Helena – com grande
escândalo do avô Mateus. André morre de cancro, o avô recolhe a neta, que tem
quinze anos.
Inicia-se, com o capítulo “Elisa”, a segunda
parte da novela, com a descrição do espaço habitacional que se transcreve, na
curiosidade de um discurso cujo realismo tem tanto de elegante como de colorido
e despojado de condescendência disfarçadora, como, de resto, se caracteriza o estilo
sereno e frontal de Guilherme de Melo, em que o sentido crítico raramente usa
de ironia, optando pela caracterização directa, da observação objectiva, não
isenta do calão ou do termo mais próprio da oralidade grosseira, e em que o
adjectivo e o verbo são elementos estruturais do seu processo narrativo, bem longe da luminosidade
do modo impressionista, característica formal do estilo queirosiano:
«A
rua era larga e sossegada. Não uma daquelas vias de passagem, iguais entre si
em todas as grandes cidades, por onde o trânsito flui no decurso do dia como um
rio constante no seu caudal. Ali, os carros eram os carros de quem nela morava.
Ou de quem lá ia com um objectivo definido.
Certinhos,
alinhados ao longo dos passeios, os prédios não ultrapassavam o terceiro andar
e quase todos tinham águas furtadas. Num ou noutro, havia vasos com flores
aligeirando as fachadas austeras. Sem serem prédios de estilo moderno, tinham,
porém, um ar limpo e cuidado. Alguns ostentavam mesmo um revestimento em
azulejos de tons esbatidos que lhes imprimia uma certa dignidade.
Mas
era Lisboa e, naturalmente, na modorra das janelas que deitavam para a rua,
havia estendais onde as toalhas e os lençóis, as saias, as cuecas, as calças de
ganga e os aventais de cozinha secavam ao sol como pendões de romaria
drapejando ao vento. E havia também as gaiolas dos canários e dos periquitos
dependuradas de grandes pregos cravados junto às sacadas. Nelas, as aves
chilreavam, sonhando com o azul que avistavam para lá das grades.
Por
detrás dos vidros dormitavam gatos gordos e castrados, enquanto aqui e ali as
portas se entreabriam, pela manhã e ao cair da tarde, a deixar passar os cães
para virem defecar ao passeio. Nos beirais, bandos de pombos aguardavam a hora
exacta em que as velhas do costume assomassem à varanda para lhes lançar as
carcaças da véspera desfeitas em água e uma ou duas mancheias de milho.
A
rua era, como tantas outras ruas de Lisboa mais desviada do bulício, um pedaço
de aldeia esquecido no coração da cidade. Com o talho do senhor Custódio logo
ao voltar da esquina, a leitaria da dona Rosa com a meia dúzia de mesinhas
habituais e as empadas, os folhados e os queques na vitrina do balcão, e a
mercearia do senhor Nunes e da mulher, a dona Leocádia, com as alfaces, os
tomates, as laranjas e as clementinas colorindo a manhã nos escaparates que
ladeavam a entrada.
Este
o pequeno mundo, feito de cheiros e de sons familiares, olhos espiando por
detrás das vidraças e pombos descendo em revoada dos telhados, onde Elisa
Antunes iria entrar, pela mão do avô Mateus, com a timidez e a cautela
características dos seres que aprenderam a crescer sem vontade própria e desde
sempre se deixaram conduzir pela vontade dos outros. Mas também com a insegurança
da adolescente que começa a tornar-se mulher e que desde criança procurou, em
vão, referências femininas num mundo estruturalmente masculino, como foi aquele
em que aprendeu a movimentar-se.»
A história, pois, de uma “pobre rapariga feia” tímida
e recalcada e receosa do mundo, embora possuindo bens herdados do avô, e
competente no seu trabalho, tal como fora boa estudante, forma de se elevar
perante si e os outros, e que tendo sofrido a desilusão da falsa paixão e
grosseria de um colega sabido e interesseiro – Filipe - se enamora por um jovem
de uma fotografia encontrada por acaso e para esse – a quem chamará Ricardo -
constrói o seu romance, que a transfigura. O encontro ocasional com o rapaz da
foto, que reconhece - João, como se apresenta, sob a farda de polícia - causará
a sua morte por atropelamento, tal o alvoroço sentido.
Um funeral concorrido, ao descobrir-se, em sua casa,
roupas masculinas, a dedicatória do rapaz à sua amada, outros traços de
ternura, causando o escândalo entre a vizinhança, para quem fora a Elisinha, e
cuja família há muito deixara de existir.
E a lição final ocorre no diálogo entre dois colegas
de regresso do funeral:
«E,
com solenidade:
-
Ao fim e ao cabo, quantas vidas terá cada um de nós? A que na realidade vivemos?
A que fantasiamos para nós mesmos? A que outros imaginam que é, de facto, a
nossa vida? Hum… E qual é a verdadeira, já pensaste nisso, Justino?
O
colega soltou uma gargalhada:
-
Ó Saraiva, poupa-me!
E
apressaram o passo, direitos ao carro. É que, de repente, a chuva voltara a
cair.»
O paralelo desta com a cena final dos dois amigos Carlos
e Ega, correndo para apanhar o americano
enquanto iam filosofando sobre a vacuidade dos desígnios humanos que os
não faria alargar o passo para nada – teoria logo desfeita para o jantar com os
amigos no Bragança que os forçava a correr, é evidente, retirado o efeito
cómico do contraste entre desígnio e acção n’Os Maias, que se transforma nesta
novela em banal teoria finalizadora sobre a existência humana, encarada sob
vários ângulos.
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