Um texto de Vasco
Pulido Valente, do “Público” de 27/4 - «A lógica das coisas» - que mostra, com efeito, alguém
com uma lógica superior, fundamentada no saber dos livros que, extrapolando
para a experiência própria, e fortificada por viva inteligência, apela a
imediata percepção, pela simplicidade e clareza daquilo que argumenta, espécie
de O’ Sullivan nos malabarismos do seu Snooker, que faz que pareça fácil
o que não é senão fruto de espantosa perícia resultante de inteligência e trabalho.
Pena é que as suas palavras sejam lançadas ao vento vão da indiferença acintosa
no nosso deserto ressequido, onde à meditação se sobrepôs a indolência crónica e
o ignaro alarido.
Com efeito, o seu artigo «A lógica das coisas» centra-se na incompatibilidade entre
os direitos políticos e os sociais, tendo como pano de fundo uma base de
igualdade e liberdade criada pela generosidade doutrinária dos filósofos da
Revolução Francesa, que conduziu a épocas sanguinárias, nada nem ninguém
respeitando, a coberto, sobretudo, de uma mistificatória noção de um vale tudo
anárquico, pelo menos entre os povos que não primam por uma racionalidade de cariz
cultural.
Já o nosso Sá de Miranda, em tempos em que tais doutrinas
ainda não floriam, apontava, na “Carta a D. João III”, a necessidade
da chefia entre os próprios irracionais, à imitação da ordem por que se rege a
natureza, para concluir que, à semelhança disso, também uma regência superior é
indispensável entre os homens, acentuando, contudo, a obrigatoriedade dos reis
de governarem com humanidade:
… Um rei ao reino convém.
Vemos que alumia o mundo
Um sol, um deus o sustem.
Certa a queda e o fim tem
Vemos que alumia o mundo
Um sol, um deus o sustem.
Certa a queda e o fim tem
O reino onde há rei
segundo.
Não ao sabor das ovelhas
Arenga estudada e branda;
Abastam as razões velhas.
Arenga estudada e branda;
Abastam as razões velhas.
A cabeça os membros
manda,
Seu rei seguem as abelhas.
Seu rei seguem as abelhas.
A tempo o bom rei perdoa,
A tempo o ferro é mezinha.
Forças e condição boa
Deram ao leão coroa
A tempo o ferro é mezinha.
Forças e condição boa
Deram ao leão coroa
Da sua grei
montesinha.
Às aves, tamanho bando:
D'outra liga e doutra
lei,
Por vencer todas voando,
A águia foi dada por rei;
Por vencer todas voando,
A águia foi dada por rei;
Que o sol claro atura,
olhando,
Tudo seu remédio tem
E
que assim bem o sabeis,
E ao remédio também;
Querei-los conhecer bem,
No fruto os conhecereis.
Obras, que palavras não:
Porém, senhor, somos muitos,
E entre tanta multidão
Tresmalham-se-vos os frutos,
Que não sabeis cujos são.
(...)
Sempre foi, sempre há de ser,
Que onde uma só parte fala,
Que a outra haja de gemer:
Se um jogo a todos iguala,
As leis que devem fazer?
(...)
Do vosso nome um grão rei
Neste reino lusitano,
Se pôs esta mesma lei,
Que diz o seu pelicano
Pola lei, e pola grei.
Mas, como afirma Vasco Pulido Valente, «no
Portugal de 2014, a retórica da liberdade e a retórica da igualdade estão pouco
a pouco a confluir.» E as consequências desse facto
convergem na destruição, alimentada pela
voz dos bardos. E também pela dos ex-chefes que, tendo introduzido e dissertado
monocordicamente sobre esses slogans ao longo das suas carreiras vitoriosas, sabendo
embora quanto são falsos e passíveis de egoísmos e corrupção, continuam a esbanjar esses saberes da sua e nossa irracionalidade.
Talvez porque lhes andam mexendo nos bolsos, e nos dos seus amigalhaços de
condição. Que tal facto é incontroverso:
«A lógica das coisas»
«Desde
o princípio da revolução francesa que se aprendeu uma verdade elementar: a
identificação dos direitos políticos com os direitos “sociais” leva sempre à
perda dos direitos políticos, sem promover os direitos “sociais”. Foi este o
peso que tarde ou cedo acabou por derrotar e quebrar a esperança de centenas ou
milhares de movimentos que aspiravam a mudar radicalmente o mundo.
Ou, se quiserem, para
resumir o problema por outras palavras, a liberdade não é na prática compatível
com a igualdade. A igualdade tem de ser imposta e essa imposição degenera
rapidamente em ditadura e, a seguir, a ditadura em terror. Como sucedeu aos
jacobinos de Robespierre, aos socialistas de 1848, aos bolcheviques de Lenine,
aos cubanos de Castro e a um número infindável de aprendizes de feiticeiro.
Luís XVI, conduzido
como sempre pelo espírito do tempo, fez juntar ao voto os “cadernos de
lamentos" (cahiers de doléances) das populações. O que levou, evidentemente,
as populações a presumir que os Estados Gerais se reuniam não só para fazer uma
constituição para a França mas também para pôr fim de uma vez à miséria e à
injustiça de séculos. Esta ideia, como se compreenderá, tornou impossível a
existência de qualquer governo, porque as dificuldades materiais (a falta de
géneros básicos, o preço do pão, a inflação geral) começaram a ser
compreendidas como traições à pátria e à liberdade; e os “traidores” que viviam
melhor a ser guilhotinados (aristocratas, ricos, comerciantes, merceeiros e por
aí fora). Em última análise, tudo isto trouxe o despotismo militar de Napoleão.
Sem querer dar um
grande salto do trágico para o trivial, no Portugal de 2014, a retórica da
liberdade e a retórica da igualdade estão pouco a pouco a confluir. Na esquerda, claro, e até numa certa direita
populista e cristã. Quando, por exemplo, se diz que não há um Estado
democrático, se não houver um Estado social, este postulado implica que o poder
político não é legítimo se diminuir os salários do funcionalismo, ou as pensões
dos reformados, ou se o Serviço de Saúde e a escola pública não forem
suficientemente financiados. Pior ainda: uma nova espécie de
“revolucionários” põe como seu objectivo estratégico, numa perfeita fusão da liberdade
e da igualdade, a luta contra “a ditadura da fome”, “a ditadura da austeridade”
e a “ditadura do desemprego”. Manuel Alegre, que proclamou este novo programa
da República, não sabe com certeza onde deve e pretende parar. Mas se a sua
luminosa lógica se expandir e prevalecer, a força passará a dominar a política:
a força da esquerda ou a da direita. É a lógica das coisas.
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