Por isso o Damasozinho Salcede
se rasparia para Paris no caso de as coisas “se porem assim feias”, com
a invasão espanhola da previsão do Ega, para elevar o espírito nacional em reacção
de patriotismo altissonante, como é nosso hábito, hoje mais no futebol.
A verdade é que a massa humana
do Tribunal Constitucional, e dos candidatos de dezasseis partidos às eleições
europeias, tal como a massa do nosso Damasozinho, é originária da massa humana
que nos vem dos tempos em que o conde D. Henrique tomou por esposa uma tal D.
Tareja e o executor-mor do seu legado se tornou rei de um terreno à beira-mar
plantado, como gostamos de frisar no nosso vigor verbal, esplendidamente
patriótico, que nos encaminhou para o além-mar, como povo sempre de olhos e
espírito postos na conquista – de um reino, primeiro, de uma plantação
dionisíaca “de naus a haver”, a seguir, seguidas dos terrenos onde as
naus já havidas chegaram, nessa altura de olhos postos no “mar sem fim”.
Mas demos-lhe fim, modernamente, e floridamente, largando o mar e o terreno e
rumámos desta vez a uma Europa generosa que correspondeu à nossa devoção,
enchendo-nos os bolsos e criando hábitos de mândria e de irresponsabilidade.
Por isso, chegada a hora da prestações de contas, habituada a nossa massa devota
a não as prestar, essa nossa massa rebelou-se, já posta em formigueiro, às
imposições de quem o quis fazer, num clima de austeridade a que nenhuma formiga
se adaptou, continuando de olhos e devoção postos nos que ganham mais lá fora, segundo
se afirma, porque trabalham mais ou com mais inteligência. E o formigueiro
invade os campos agora maninhos, mas para combinar torná-los mais maninhos, com
as greves do protesto anti-austeridade entoando os cânticos da irmã cigarra na
designação do S. Francisco de Assis. E é esse trabalho da inteligência que se
apetece, e isso explica a razão dos 16
partidos que o Tribunal Constitucional mandatou para as eleições europeias, acautelando o futuro, o
que provocou os dizeres do azedume de Vasco Pulido Valente, no seu artigo do
Público de 9/5/2014 – «O Formigueiro»-, reforçando o de 4/5 «Nem um minuto», onde, referindo estudos superiores em universidades
superiores, acerca de Marx, exproba o retorno do formigueiro do antigo alvo
europeu, apenas com alguns laivos desses estudos, a prostrar-se diante do
formigueiro da libertação do mar sem fim, no objectivo de retomar os alvos
democráticos da liberdade obtida e do farto viver posteriormente concedido, sem
a austeridade da paga e com a expulsão dos que a promovem, os quais ignoram
soberanamente Marx, empenhados em saldar, de olhos postos no prosseguimento.
Os
textos de Vasco Pulido Valente:
O
2º de 9/5: «O Formigueiro»
O Tribunal Constitucional aceitou a
candidatura de 16 partidos à eleição de 25 de Maio. Isto não deixa de ser
curioso. Haverá 16 opiniões diferentes sobre a política que o país deve seguir
na “Europa”? Ou, mesmo admitindo que no fundo se trata de aprovar ou desaprovar
o governo, haverá 16 opiniões diferentes entre o sim e o não, incompatíveis
entre si e reconhecíveis pelo eleitor comum? É o nosso problema tão singular e
tão complexo que mereça 16 interpretações diferentes? E, ponto essencial,
existem por aí 160 teóricos (dez, no mínimo, por partido) capazes de perceber o
que se passa e descobrir de uma vez as receitas infalíveis da nossa salvação?
Ou este formigueiro foi provocado por uma fuga geral às facções que ocuparam o
poder nos últimos anos?
A
esquerda ainda se compreende. O ódio fraterno em que sempre viveu de igrejinha
para igrejinha e o seu impulso atávico para descobrir heréticos e os queimar na
praça pública não diminuiu e nunca diminuirá. Até no PS andam dezenas de
pequenos Estalines pelos cantos, imaginando as sevícias que irão fazer aos seus
queridos camaradas, quando chegar o dia glorioso da sua elevação. Na
extrema-esquerda, não faltam os velhos bandos das origens, como o POUS, Partido
Operário de Unidade Socialista, da inefável e sempre memorável Carmelinda
Pereira; nem os “dissidentes” do Bloco, já de si um agregado de dissidências,
que se resolveram tornar independentes, como o MAS e o Livre. Nessa
descoroçoante trapalhada, o melhor seria talvez fundar um partido para cada
militante, para evitar querelas e lutas pelo poder.
À
direita, as coisas são mais complicadas. Muitas vezes não se consegue perceber,
ou imaginar, o que significam as letras das siglas: PND, PAN, PPV, PDA e por aí
fora. Muito menos distinguir os objectivos dessas simpáticas agremiações.
Presumo que só os íntimos sabem ao certo se querem defender o mar, o planeta, a
vida, Portugal ou a Europa ou se querem simplesmente ir preopinar para
Bruxelas, sem se preocupar com os sarilhos domésticos. De qualquer maneira,
custa a ver as razões por que um dia se lhes meteu na cabeça esmagar (cada um
segundo a sua vocação) a iniquidade do homem e pôr na ordem a sua parte do
universo. Uma única pergunta ao Tribunal Constitucional: verificaram os srs.
conselheiros se estes partidos ainda têm os 5000 inscritos, necessários à sua
legalização? Ou essa formalidade, uma vez cumprida, é dispensada para sempre?
O
1º, de 4/5: «Nem um Minuto»
«Foi
em Oxford, nesse egrégio lugar do saber, que comecei a estudar Marx. Nesse
tempo a ortodoxia de esquerda já se tinha infiltrado por toda a parte. Líamos
de fio a pavio a obra do cavalheiro e frequentávamos seminários em que se
discutiam linha a linha os livros canónicos, principalmente, claro está, O
Capital . O objectivo principal do exercício era descobrir onde exactamente
acabava o Marx “idealista” e onde começava o Marx “materialista”. Havia grandes
querelas sobre o assunto, tanto mais que não faltava nunca no consórcio meia
dúzia de indivíduos que viviam do odium theologicum na sua versão mais cega e
refinada. Felizmente, lá consegui apresentar a tese e vim para Lisboa. Para
minha surpresa, o ambiente da universidade não me aliviou e fui obrigado a
continuar imerso nessa modesta seita, que se preparava para conquistar o mundo.
Agora
não se lia Marx, ou muito pouco. Mas não se podiam perder as revelações que
constantemente nos chegavam do marxismo francês e se ramificavam até aos mais
pequenos pormenores da vida. Não me peçam para dizer os nomes das
“notabilidades” da “escola de Paris”. Só me lembro de uma, Louis Althusser,
que, certamente levado pelo materialismo dialéctico, estrangulou a mulher. De
qualquer maneira, passei anos a decorar, sem consciência, nem vergonha, os
comentaristas do Mestre, que o tratavam como os comentaristas do século XIV
tratavam o mistério da Santíssima Trindade: com asco pela experiência e uma fé
inamovível de fanáticos. Não rezavam, porque não calhava.
O
melancólico espectáculo do PREC, a derrota do PC e da extrema-esquerda (a que
Sartre e Beauvoir vieram assistir) e o estabelecimento de uma democracia
burguesa (embora sob tutela militar) pelo voto popular arrefeceram o marxismo
nas suas mil encarnações. Uma recaída aqui e ali pouco mudava a sociedade ou a
política. Devagarinho e com prudência, pensei que o velho universo intelectual
da esquerda desparecera. Não desaparecera nada. De pequenino se torce o pepino
e bastou a crise da dívida para ressuscitar, em septuagenários e octogenários,
a mesma turvação de espírito, o mesmo ódio à realidade das coisas, a mesma
irremovível devoção aos santinhos (os “capitães de Abril”, por exemplo) e,
logicamente, a mesma intolerância. Mas desta vez sei o que me espera e não
tenciono perder um minuto com a costumada vociferação do beatério.»
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