domingo, 11 de maio de 2014

Todas as cautelas são poucas




Por isso o Damasozinho Salcede se rasparia para Paris no caso de as coisas “se porem assim feias”, com a invasão espanhola da previsão do Ega, para elevar o espírito nacional em reacção de patriotismo altissonante, como é nosso hábito, hoje mais no futebol.
A verdade é que a massa humana do Tribunal Constitucional, e dos candidatos de dezasseis partidos às eleições europeias, tal como a massa do nosso Damasozinho, é originária da massa humana que nos vem dos tempos em que o conde D. Henrique tomou por esposa uma tal D. Tareja e o executor-mor do seu legado se tornou rei de um terreno à beira-mar plantado, como gostamos de frisar no nosso vigor verbal, esplendidamente patriótico, que nos encaminhou para o além-mar, como povo sempre de olhos e espírito postos na conquista – de um reino, primeiro, de uma plantação dionisíaca “de naus a haver”, a seguir, seguidas dos terrenos onde as naus já havidas chegaram, nessa altura de olhos postos no “mar sem fim”. Mas demos-lhe fim, modernamente, e floridamente, largando o mar e o terreno e rumámos desta vez a uma Europa generosa que correspondeu à nossa devoção, enchendo-nos os bolsos e criando hábitos de mândria e de irresponsabilidade. Por isso, chegada a hora da prestações de contas, habituada a nossa massa devota a não as prestar, essa nossa massa rebelou-se, já posta em formigueiro, às imposições de quem o quis fazer, num clima de austeridade a que nenhuma formiga se adaptou, continuando de olhos e devoção postos nos que ganham mais lá fora, segundo se afirma, porque trabalham mais ou com mais inteligência. E o formigueiro invade os campos agora maninhos, mas para combinar torná-los mais maninhos, com as greves do protesto anti-austeridade entoando os cânticos da irmã cigarra na designação do S. Francisco de Assis. E é esse trabalho da inteligência que se apetece, e isso explica a  razão dos 16 partidos que o Tribunal Constitucional mandatou para as eleições europeias, acautelando o futuro, o que provocou os dizeres do azedume de Vasco Pulido Valente, no seu artigo do Público de 9/5/2014 – «O Formigueiro»-, reforçando o de 4/5 «Nem um minuto», onde, referindo estudos superiores em universidades superiores, acerca de Marx, exproba o retorno do formigueiro do antigo alvo europeu, apenas com alguns laivos desses estudos, a prostrar-se diante do formigueiro da libertação do mar sem fim, no objectivo de retomar os alvos democráticos da liberdade obtida e do farto viver posteriormente concedido, sem a austeridade da paga e com a expulsão dos que a promovem, os quais ignoram soberanamente Marx, empenhados em saldar, de olhos postos no prosseguimento.
Os textos de Vasco Pulido Valente:
                                        
O 2º de 9/5: «O Formigueiro»
O Tribunal Constitucional aceitou a candidatura de 16 partidos à eleição de 25 de Maio. Isto não deixa de ser curioso. Haverá 16 opiniões diferentes sobre a política que o país deve seguir na “Europa”? Ou, mesmo admitindo que no fundo se trata de aprovar ou desaprovar o governo, haverá 16 opiniões diferentes entre o sim e o não, incompatíveis entre si e reconhecíveis pelo eleitor comum? É o nosso problema tão singular e tão complexo que mereça 16 interpretações diferentes? E, ponto essencial, existem por aí 160 teóricos (dez, no mínimo, por partido) capazes de perceber o que se passa e descobrir de uma vez as receitas infalíveis da nossa salvação? Ou este formigueiro foi provocado por uma fuga geral às facções que ocuparam o poder nos últimos anos?
A esquerda ainda se compreende. O ódio fraterno em que sempre viveu de igrejinha para igrejinha e o seu impulso atávico para descobrir heréticos e os queimar na praça pública não diminuiu e nunca diminuirá. Até no PS andam dezenas de pequenos Estalines pelos cantos, imaginando as sevícias que irão fazer aos seus queridos camaradas, quando chegar o dia glorioso da sua elevação. Na extrema-esquerda, não faltam os velhos bandos das origens, como o POUS, Partido Operário de Unidade Socialista, da inefável e sempre memorável Carmelinda Pereira; nem os “dissidentes” do Bloco, já de si um agregado de dissidências, que se resolveram tornar independentes, como o MAS e o Livre. Nessa descoroçoante trapalhada, o melhor seria talvez fundar um partido para cada militante, para evitar querelas e lutas pelo poder.
À direita, as coisas são mais complicadas. Muitas vezes não se consegue perceber, ou imaginar, o que significam as letras das siglas: PND, PAN, PPV, PDA e por aí fora. Muito menos distinguir os objectivos dessas simpáticas agremiações. Presumo que só os íntimos sabem ao certo se querem defender o mar, o planeta, a vida, Portugal ou a Europa ou se querem simplesmente ir preopinar para Bruxelas, sem se preocupar com os sarilhos domésticos. De qualquer maneira, custa a ver as razões por que um dia se lhes meteu na cabeça esmagar (cada um segundo a sua vocação) a iniquidade do homem e pôr na ordem a sua parte do universo. Uma única pergunta ao Tribunal Constitucional: verificaram os srs. conselheiros se estes partidos ainda têm os 5000 inscritos, necessários à sua legalização? Ou essa formalidade, uma vez cumprida, é dispensada para sempre?
O 1º, de 4/5: «Nem um Minuto»
«Foi em Oxford, nesse egrégio lugar do saber, que comecei a estudar Marx. Nesse tempo a ortodoxia de esquerda já se tinha infiltrado por toda a parte. Líamos de fio a pavio a obra do cavalheiro e frequentávamos seminários em que se discutiam linha a linha os livros canónicos, principalmente, claro está, O Capital . O objectivo principal do exercício era descobrir onde exactamente acabava o Marx “idealista” e onde começava o Marx “materialista”. Havia grandes querelas sobre o assunto, tanto mais que não faltava nunca no consórcio meia dúzia de indivíduos que viviam do odium theologicum na sua versão mais cega e refinada. Felizmente, lá consegui apresentar a tese e vim para Lisboa. Para minha surpresa, o ambiente da universidade não me aliviou e fui obrigado a continuar imerso nessa modesta seita, que se preparava para conquistar o mundo.
Agora não se lia Marx, ou muito pouco. Mas não se podiam perder as revelações que constantemente nos chegavam do marxismo francês e se ramificavam até aos mais pequenos pormenores da vida. Não me peçam para dizer os nomes das “notabilidades” da “escola de Paris”. Só me lembro de uma, Louis Althusser, que, certamente levado pelo materialismo dialéctico, estrangulou a mulher. De qualquer maneira, passei anos a decorar, sem consciência, nem vergonha, os comentaristas do Mestre, que o tratavam como os comentaristas do século XIV tratavam o mistério da Santíssima Trindade: com asco pela experiência e uma fé inamovível de fanáticos. Não rezavam, porque não calhava.
O melancólico espectáculo do PREC, a derrota do PC e da extrema-esquerda (a que Sartre e Beauvoir vieram assistir) e o estabelecimento de uma democracia burguesa (embora sob tutela militar) pelo voto popular arrefeceram o marxismo nas suas mil encarnações. Uma recaída aqui e ali pouco mudava a sociedade ou a política. Devagarinho e com prudência, pensei que o velho universo intelectual da esquerda desparecera. Não desaparecera nada. De pequenino se torce o pepino e bastou a crise da dívida para ressuscitar, em septuagenários e octogenários, a mesma turvação de espírito, o mesmo ódio à realidade das coisas, a mesma irremovível devoção aos santinhos (os “capitães de Abril”, por exemplo) e, logicamente, a mesma intolerância. Mas desta vez sei o que me espera e não tenciono perder um minuto com a costumada vociferação do beatério.»

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