Da
«Arca de Noé, III Classe», de Aquilino Ribeiro, retiram-se várias
histórias galhofeiras, arrancadas à sua
observação simultaneamente humanista e picaresca, ou mesmo poética, que, sem
preocupação pela moral convencional, ou pela estrutura das histórias infantis, não
deixa de assentar a fantasia numa realidade animal ou humana que põe na
natureza ou nos costumes humanos os alicerces da sua existência. Tal, na
primeira história – “Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia” - o caso
da abóbora giganta, que comia, dormia e crescia, indiferente às labutas ou aos ruídos
dos insectos ou dos batráquios, ou ao chiar dos carros, mas que um dia de
tempestade, roído o seu caule pela toupeira, ei-la que vai, sempre dormindo,
rio abaixo, parar à azenha duns moleiros que depois de muitos trabalhos lá
conseguiram içá-la para o seu caldo. Quanto aos donos – José Barnabé Pé de Jacaré
e sua esposa, Feliciana Lauriana - que tantas esperanças depositavam naquele
exemplar de abóbora, e se disputavam entre o telhado e a panelinha para ela,
ficaram a ver navios, com o cri-cri-cri do grilo, a contar a história para
cigarras, ralos, rãs, sapos, da catástrofe num dia de verão: “Cri-cri-cri!
Muito me eu ri! Cri-cri-cri!”
São
seis as histórias que compõem o livro infantil, que os crescidos saboreiam
também, no seu universo fantasioso e realista, de intenção humorística, mas foi
o conto “O Filho da Felícia ou a
Inocência recompensada” que os textos do Público , de Vasco
Pulido Valente - «Aventuras do coronel Lourenço», de 2/5, e «E nós?», de 3/5 - me
fizeram acudir aos retratos aquilinianos implícitos ou explícitos do nosso
quotidiano popular, tão bem interpretados pelos coronéis ao estilo de Vasco Lourenço, e as suas trapalhadas
verbais, olvidadas as aventuras “bélicas” de quarenta anos antes, contra tudo o
que representasse fartura, rimando com
ditadura, menos democráticas e mais determinadas no vilipêndio ontem do que
hoje, que entretanto lhes foi entrando na cabeça o termo democracia, passaporte
para as manigâncias verbais actuais, as mesmas dos chefes dos partidos de hoje
e de ontem, também de eloquência vãmente deslumbrada e inepta. Disso dão conta
os magníficos retratos de Vasco Pulido Valente, que me fizeram evocar o retrato
do pobre de espírito Pedro, que, tal o 31 que o sargento baralhou a respeito da
viragem à esquerda ou à direita, na canção de Max, também se baralhou, embora
por orgulho viril de não seguir rebanhos. Muito passou o pobre do Pedro, mas a
fortuna também lhe sorriu, milagrosamente e inesperadamente mais do que uma
vez. E tudo isso por ser filho da mãe Felícia, como esta declarava enlevadamente
atenta no filho.
Não
sei o que se passa com o estado da fortuna de Lourenço, mas desconfio que Soares encontrou tesouro, tal como o
inocente Pedro, e Seguro idem aspas, pois veste bem, como Sócrates vestia, preparando-se
para assumir, como o Pedro também fazia, mesmo na sua desgraça, forcejando por
concretizar as suas ambições.
Era
o filho de Felícia um pedaço de homem que vale a pena registar, à laia de
apresentação, na prosa vernácula de Aquilino:
«Com
a sua bolsinha de amostras às costas, tamancos ferrados trrape-trrape, carapuça
na cabeça e quatro vinténs na algibeira, foi Pedro assentar praça. No quartel,
depois de lhe darem o número 27, mandaram-no formar na parada. Botava uma boa
mão travessa acima dos mais altos. Embora mirolho, o sargento Viriato Sacatrapo
não pôde deixar de reparar nele e exclamou com os ares superiores, próprios da
sua patente, para um galucho que não é nada neste mundo:
-
Cáspite, que bela estampa de animal!
-
Animal será ele – replicou Pedro. – Sou cristão e baptizado, Pedro da Felícia,
para servir a quem se der ao respeito.»
Quando
a ordem, na formatura, é para volver à esquerda, Pedro volve à direita “contente
que se não dissesse: um carneiro vai com os outros.” E esse jeito nos
ficou, como já disse, também entoado por Max, como traço de idiossincrasia que
nos chega na arte de Pulido Valente.
1º Artigo: «Aventuras do coronel Lourenço», 2/5/14
«Numa prosa atrapalhada e pouco gramatical, o coronel
Vasco Lourenço veio agora dizer que a Associação 25 de Abril, a que preside, e
os capitães de 1974 “não se querem arvorar em solução” ou “abrir expectativas a
que não se pudesse dar resposta”. Melhor ainda, e avisando o público, o coronel
Lourenço afasta a fantasia de uma nova revolução e declara o seu amor aos
“meios democráticos”. A Associação é “espaço de intervenção cívica e
cultural”, que vai “lutando contra aqueles que nos querem calar a voz e prender
as mãos com slogans”. Os pobres capitães de Abril, afinal de contas,
só se recusam a abdicar de “ser cidadãos de corpo inteiro e (de) usufruir a
liberdade que (ajudaram) o povo português a conquistar”. Não se podia pedir
nada de mais cívico e de mais cordato.
Nada impede o coronel Lourenço de servir estas
piedades, porque de certeza o país já esqueceu o que ele andou a fazer nas
semanas que precederam o “25 de Abril” e o que disse no comício do Largo do
Carmo, em si próprio um insulto e um desafio à Assembleia da República. Ou, se calhar, ao contrário do país, que está
atordoado, o coronel Lourenço não esqueceu uma única ameaça velada ou
explícita que dirigiu em pessoa ou pela televisão ao Governo legitimamente
constituído e é por isso que aparece agora a deitar um bocadinho de água na
fervura, com a pele do proverbial carneiro manso. Seja como for, o gesto
presume a completa impunidade dos políticos que por aí se apresentam com
direito de incitar os portugueses a remover de cena os “neoliberais” de Passos
Coelho e Companhia.
Os festejos do “25 de Abril” deviam servir para
duas coisas. Primeiro, para reforçar o radicalismo na esquerda (e em
particular a posição de Soares no Partido Socialista). Segundo, para
intimidar a direita perante a putativa força do povo “organizado”. O plano
falhou de fio a pavio. O coronel Lourenço e os seus companheiros não viram a
lamentável figura que exibiam a um público em desespero, farto de retórica
e ansioso por alguma lógica e bom senso. Presumo que essa inconsciência lhes lembrou
os bons tempos de 1974-1975. De qualquer maneira, não ganhou um voto à direita
para o próximo 25 de Maio, e afastou muita gente, que não se arranja dinheiro
com demagogia política, sobretudo quando a demagogia põe em causa os
fundamentos do Estado.»
2º Artigo:« E nós?» de 03/05/2014
A UGT conseguiu juntar algumas
centenas de pessoas à volta da Torre de Belém e a CGTP juntou um milhar ou dois
na Alameda Afonso Henriques, o resto de Lisboa ou ficou em casa, ou foi para a
praia: achava o 1.º de Maio um feriado como qualquer outro e o que
verdadeiramente lhe apetecia era espairecer da crise. Os partidos, apesar do ralhete
de Cavaco no dia 25, continuaram a debicar entre si sobre pormenores que
neste naufrágio colectivo não interessam a ninguém. O que não os coíbe
de lamentar num tom de sacristão servil o desinteresse dos portugueses pela
vida pública; ou de fingirem uma indignação teatral para consumo de um putativo
eleitorado que os despreza. Se julgam, e talvez julguem, que daqui a três
semanas os votos sairão espontaneamente de um buraco, estão enganados.
Há uma estranha atmosfera na política que hoje se faz. No
PS, apareceu uma confusa franja “revolucionária”, que Seguro não contraria,
critica ou sequer limita. À primeira vista, a ideia é a de atrair a
esquerda a um grande saco, que o PS levaria depois para o governo, oficial ou
oficiosamente, para salvar a Pátria. Daí que a direcção socialista não possa
abrir a boca sobre questões de substância, porque elas se arriscam a irritar
uma das partes dessa “unidade” imaginária de que ambiciona ser o centro.
Entretanto, o PC já declarou o PS “um risco para a democracia”. A extrema-esquerda
não lhe tocará com um pau. E Soares quer levar o seu novo radicalismo para
caminhos de ilegalidade e violência, que o eleitor médio da seita certamente
não aceitaria. Sobra o quê? Uma trapalhada inútil.
Informado ao pormenor sobre os malefícios de Pedro Passos
Coelho, de Paulo Portas, da sra. ministra das Finanças e de mais meia dúzia de
“notabilidades” sem consequência, o cidadão comum não percebe os propósitos do
Governo ou da oposição. As futilidades que os chefes trocam na rua, na televisão
e no Parlamento não lhe servem de nada. Mas, pelo menos, Coelho e Companhia são
obrigados a mostrar a sombra de uma lógica pela acção que tomam. Dispensado
da acção, o PS acabou por se tornar um puro mistério. Em princípio, é
sempre contra tudo o que vem do Governo: palavras, decretos, previsões,
desculpas. Só que se guarda cuidadosamente de explicar a razão desses
contaminados frutos. A origem chega para os condenar. E nós, ainda com um
vestígio de racionalidade, que havemos de pensar?»
Que precisamos urgentemente de “um milagre à Pedro”
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