Dois anos de culto para festejar os 450 anos do nascimento
- 26 de abril de 1564 – e os 400 anos da morte - 23 de abril de 1616
– lê-se no Público de 23/4/14 – e que “arrancam dois anos de comemorações”,
com indiscutível pertinência - do maior génio literário de todos os tempos – William Shakespeare – que “omnipresente”,
“está em toda a parte”, e “Seja
o que for que quisermos expressar, ele disse-o primeiro ou disse-o melhor”, defende
aquela que é uma das mais poderosas mulheres no mundo editorial, e que fez a
conferência de abertura do seminário Shakespeare - Our Contemporary?, organizado
pelo British Council em Berlim, um dos primeiros eventos destas celebrações,
que vão durar dois anos e que, no próximo sábado, levarão uma multidão a Stratford-upon-Avon,
em Inglaterra, para participar numa festa e procissão até à igreja onde está
sepultado o mais famoso poeta e dramaturgo inglês.” …. “Shakespeare
é omnipresente. Quase não se pode falar inglês sem o citar. Ele
acrescentou mais de 2000 palavras à língua inglesa.”
O artigo, de Isabel Coutinho, em Berlim, é
amplo de entusiasmo, como é entusiástica a nossa leitura, mal se agarre nas
suas peças – de um engenho, riqueza e
profundidade de efabulação, de criação de caracteres, de expressão de
conceitos, de riqueza linguística e imagística que desde sempre nos deixam “bouche
béante”.
Uma das peças que sempre me seduziu, foi
o “Mercador de Veneza”, não só por uma efabulação enternecedora, de
amores que concluem em felicidade, ou relevo de caracteres - em que contrastam a
dedicação e amizade de um tal Antonio, Mercador de Veneza, com a perfídia de um
tal Shylock, judeu usurário, ganancioso, esperto e vingativo, ou a vivacidade
de uma tal Portia, que, como advogado travesti, vai contribuir para solucionar o
problema do sacrifício imposto a Antonio e simultaneamente contribuir para a
felicidade de todos, com excepção para o Judeu, que Antonio, aliás, salvará –
mas também pela destreza discursiva e a
dimensão dos conceitos reveladores do profundo conhecimento shakespeareano da
vida e dos homens.
Trata-se de uma peça em cinco actos,
ao modo clássico, de diferentes espaços, o primeiro acto consistindo na Exposição
do conflito – com Antonio e os seus amigos, numa primeira cena, numa Rua em
Veneza, tentando justificar uma irreprimível tristeza premonitória do Mercador
de Veneza, que não resulta do facto de ter os seus barcos dispersos pelo mundo
com todas as suas riquezas neles embarcadas, com risco de se perderem, mas que
promete arranjar o dinheiro necessário, através de empréstimo, para safar o seu
amigo Bassânio uma vez mais, a quem quer como filho, numa aventura amorosa de
conquista da rica Portia; numa segunda
cena, o diálogo de Portia com Nérissa, no interior da casa de Portia, em
Belmonte, debitando sobre as suas tristezas, aquela refém da promessa feita a
seu pai, antes de este morrer, de casar com o homem que acertasse na escolha do
cofre com o seu retrato – entre os três cofrezinhos com inscrições – um de ouro
, um de prata e um de chumbo - e os respectivos pretendentes , alvos das suas
ironias, o primeiro, um príncipe napolitano “que só fala na sua égua”, o
segundo, um conde palatino “que nasceu franzindo o cenho”, um outro –“todo-o-mundo
e ninguém” – detestável – que ela jura não aceitar, à excepção de um tal Bassânio que conheceu e amou; a
terceira cena, numa Praça Pública em Veneza, o diálogo entre Bassânio e Shylock,
(e posteriormente Antonio) com aquele pedindo o empréstimo em nome de Antonio,
e que nos dá o retrato psicológico do judeu, nas suas frases repetitivas,
curtas e reticentes de astúcia, falsa humildade e ódio por Antonio que o
despreza como usurário, retrato que deve ter servido de modelo - mais
simpático, todavia - para o judeu d’ “Os
Maias “.
E o conflito vai prosseguindo, nos actos seguintes, entre
outros casos, como o dos amores de Jessica, filha de Shylock, por Lourenço, que a rapta (II Acto), as
escolhas dos cofres pelos pretendentes (II e III Actos), a informação da ruína
de Antonio, com o naufrágio dos barcos (III Acto), a cena poderosa do
julgamento de Antonio, no IV Acto com a insistência de Shylock em não querer
outro resgate da dívida que não fosse o que ele pedira – uma libra de carne de
Antonio, junto ao coração – e que o falso advogado - Portia, em travesti -
depois de um interrogatório cheio de suspense, nas tentativas de apiedar o
judeu - com a obstinação deste em não ceder a nenhum tipo de piedade ou de
chantagem a cobrir o débito de Antonio, repetindo insistentemente o slogan do
seu maquiavelismo – “je veux mon dédit”,
e considerando o falso advogado um verdadeiro Daniel, por demonstrar (inicialmente)
que a lei estava com ele, Shylock, – o advogado imperturbável pôs como condição imprescindível que a libra de carne requisitada do peito despido de Antonio não pudesse
conter nenhuma gota de sangue, nem exceder o peso proposto, sob pena de o
condenado à morte ser ele, Shylock.
O desenlace, no V Acto, far-se-á com o final feliz dos
dois casais Portia/Bassiano, Nérissa/Gratiano, festejando com o corajoso e
saudado Antonio, após terem deslindado o caso gracioso dos anéis antes oferecidos
pelas donzelas aos noivos, com a promessa de nunca os tirarem dos dedos, o que
não aconteceu, pois que por gratidão os ofereceram aos travestis Portia e
Nérissa, que os exigiram, como paga por terem salvo Antonio, o que criará
graciosos e maliciosos quiproquós nos diálogos finais. O Mercador de Veneza recuperará os
seus barcos, além da vida que deveu a Portia. Uma história de amor, uma
história de amizade, história de suspense, de sustos, de riscos vários e de
cenas burlescas, de aversão pelo judeu mas também de defesa do ponto de vista
do judeu, com ataque aos cristãos, de conceitos de relatividade anti-segregacionista – caso do pretendente Maroc,
cujo sangue é tanto ou mais vermelho que o do homem do Norte – numa linguagem sentenciosa, por vezes de sátira irónica ou burlesca, e sempre
reveladora de uma extraordinária mestria, que se lê e se relê com encanto e
espanto crescentes.
O caso de um Mercador riquíssimo em fortuna e amizade,
cuja nobreza de carácter mereceu a dedicação e a luta dos seus amigos para o
seu final feliz. Hoje também se encontram amigos assim. Não propriamente nos mercadores,
mas nos seus advogados de defesa, embora aqueles nem careçam ser de
Veneza.
Leiamos as cenas dos pretendentes na escolha dos
cofres, plenas de mensagem crítica:
Acto II: Cena VII: Portia a Nérissa:
Afastai a cortina para mostrar os cofres ao príncipe. Ao príncipe:
Agora escolhei.
Maroc : O primeiro, em ouro. E tem uma
inscrição: «Aquele que me escolher ganha o que muitos homens desejam.» O
segundo, de prata. Com uma promessa: «O que me escolher obterá o que merece.» O
terceiro, em chumbo vulgar: Com uma ameaça brutal: «Aquele que me escolher deve
dar e arriscar tudo o que tem». Como saberei eu que escolhi bem?
Portia: O meu retrato está encerrado num dos
cofrezinhos. Se o encontrar, serei sua mulher.
Maroc: Que Deus guie a minha escolha!
“Dar e arriscar tudo o que tem?.”Dar? E contra o quê? Contra chumbo. Tudo arriscar
por chumbo? Arriscamos na esperança de boas vantagens. Uma bela alma não se
baixa por exteriores tão míseros. Eu não darei nem arriscarei nada por chumbo.
Que diz o cofre de prata?. “O que me escolher obterá tudo o que merece» O que
merece! O que valho eu? Muito, se me reporto à minha fama. É bastante para obter
a mão de Portia? Duvidar do meu mérito, seria duvidar de mim próprio. Mereço a
minha reputação pelo nascimento, as minhas qualidades, o meu amor sobretudo. … “O
que me escolher ganha o que muitos homens desejam” O mundo inteiro a deseja…. É
preciso um escrínio em ouro para uma pérola tão rara. Dê-me a chave: escolho o
ouro. ….
Maroc abre o cofre de ouro: Danação! O que há aqui?
Uma cabeça de morto trocista, e um bilhete:
…«Nem tudo o que brilha é ouro; muitas vezes o ouviste
dizer. Por isso não te deixes seduzir, só para obteres o meu exterior.
Tivesses tu um coração menos fogoso e mais
sensato, ou um espírito mais maduro do que o da tua idade, não receberias esta fria mensagem: Assim te recusam. Boa viagem!»
Acto II , Cena IX.
O Príncipe de Aragão: … E desejo que a sorte
favoreça o meu coração. Ouro, prata e chumbo vil. Não, não arriscarei nada nem
darei nada por coisa tão feia. Que diz o cofre de ouro? « O que me
escolher ganha o que muitos homens desejam” Eu não escolherei o que todos
desejam; não me confundirei com o comum nem me colocarei ao nível da multidão
bárbara que escolhe segundo as aparências. Vejamos a prata: «O que me escolher
obterá o que merece.» Bem dito, palavra de honra! Porque se poderá aceder à fortuna e à honra sem o selo do
mérito? Se os lugares e as dignidades se obtivessem pelo mérito em vez de se
comprarem pela corrupção, mais de um obedeceria em vez de comandar e
achar-se-ia muita honra perdida na sujidade do século. “Quem me escolher obtém
o que merece”. Fico-me pelo mérito…..
Que é isto? O retrato de um parvo que me pisca o
olho e me estende um bilhete? Não mereço mais do que uma cabeça de parvo?
Lê o bilhete: “Mais de um louco não é de prata
senão dum lado. Seja qual for a tua desposada, tu servirás sempre de risada.”
Acto III, Cena II:
Bassanio: É assim que os exteriores
brilhantes se logram entre si. E sempre o mundo sucumbe às aparências. Em
justiça, qual é a causa tão desacreditada e negra que uma voz graciosa não
baste para a dissimular? Em religião, qual é a heresia danável que um ar de
gravidade não baste para abençoar e que não se possa justificar com um texto da
Escritura, cobrindo a grosseria com uma
veste de prestígio? O vício mais abjecto, reveste o rosto da virtude. O poltrão toma ares de
bravura. Mesmo a beleza se mede ao peso, e, milagre da natureza, quanto mais uma
mulher se carrega dela mais leviana é. O adorno não é mais que a margem pérfida
dum perigoso mar, o véu prestigioso cobrindo o rosto da fealdade, os falsos
pareceres de que se reveste um século enganador para fascinar o sensato. Eu
recuso o ouro, como igualmente a prata, pálido e vulgar tentador dos homens. A
pobreza do chumbo que ameaça mais do que promete, comove-me mais do que o artifício
das belas palavras. Escolho o chumbo. (Encontra o retrato de Portia).
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