Foi
a propósito do caso de Maria de Lurdes Rodrigues, chamada a Tribunal para
justificar a “contratação de João Pedroso, irmão
do ex-ministro socialista Paulo Pedroso para determinada equipa de trabalho,
sem concurso público.” Achei que estavam a ser muito
exigentes, pois, se bem me lembrava, os concursos públicos tinham deixado de
existir, desde os idos de 75 ou 76, o meu marido tinha sido um dos que entrou
na C.G.D. em 75, em avalanche de concorrentes e pouco mais se ouvira falar de
concursos públicos, que deram lugar a escolhas por entrevistas e outros
processos, como este de que se servira Maria de Lurdes Rodrigues, que escolhera
pessoas da sua cor política, como todos fazem, afinal, neste nosso mundo de
solidariedade e amizade. Lembrei mesmo o concurso que fizera meu pai, para Fiel
de Armazém, tinha eu os meus catorze anos ou quinze, e recordo-o a fixar nomes
ou a expender noções, logo pela manhã, de um lado para o outro, na varanda da
nossa casa, depois de ter regado as sardinheiras, hábitos de um viver tranquilo
mas consciente nas ambições e responsabilidades. E a minha mãe podia repetir
com orgulho, que o meu pai ficara em primeiro lugar, com 14,3 valores, num concurso
em que entrara um concorrente com um
curso superior, que ficara em segundo lugar. Quase trinta anos depois, foi a
vez do meu marido, cá, quando o Estado Português abriu janelas aos retornados –
depois de lhes ter fechado as portas – onde alcançou o 152º lugar entre mais de
20.000 concorrentes. Outros concursos públicos haveria, mas tão raros são, que
justificam outros critérios para obter colaboradores na máquina estatal, em que
tudo se faz de esconso, como tantas vezes se tem apontado, neste nosso país da
Injustiça.
E
foi então que recordei o “Laboratório” que o rico Carlos da Maia
decidira instalar em Lisboa, onde pensava executar um papel útil como cidadão
de uma pátria necessitando gente de trabalho e perseverança. Mas Carlos da Maia
era um homem rico que vivia de rendimentos, não precisava de trabalhar, o
mestre de obras do laboratório que ele contava instalar tinha sonhos políticos,
os homens contratados para erguer o laboratório faziam-no nos vagares de uma
costumeira inércia, ao sabor langoroso do fado, o laboratório estava condenado
à partida:
«Entrava-se
por um grande pátio, onde uma bela sombra cobria um poço, e uma trepadeira se
mirrava nos ganchos de ferro que prendiam ao muro. Carlos já decidira
transformar aquele espaço em fresco jardinete inglês, e a porta do casarão
encantava-o, o ogival e nobre, resto de fachada de ermida, fazendo um acesso
venerável para o seu santuário de ciência. Mas dentro os trabalhos
arrastavam-se sem fim; sempre um vago martelar preguiçoso numa poeira alvadia;
sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um
carpinteiro esgrouviado e triste parecia estar ali desde séculos, aplainando uma
tábua eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores, que
andavam alargando a claraboia, não cessavam de assobiar, no sol de inverno,
alguma lamúria de fado.
Carlos
queixava-se ao sr. Vicente, o mestre-de-obras, que lhe asseverava
invariavelmente “como daí a dois dias havia de Sua Excelência ver a diferença”.
Era um homem de meia-idade, risonho, de falar doce, muito barbeado, muito
lavado, que morava ao pé do Ramalhete e tinha no bairro fama de republicano.
Carlos, por simpatia, como vizinho, apertava-lhe sempre a mão: e o sr. Vicente,
considerando-o por isso um “avançado”, um democrata, confiava-lhe as suas
esperanças. o que ele desejava primeiro que tudo era um 93, como em França…
-
O quê, sangue? – dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face do
demagogo.
-
Não senhor, um navio, um simples navio…
-
Um navio?
-Sim,
senhor, um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora o
rei, a família real, a “cambada” dos ministros, dos políticos, dos deputados,
dos intrigantes, etc. e etc.
Carlos
sorria, às vezes argumentava com ele.
-Mas
está o sr. Vicente bem certo que apenas a “cambada”, como tão exactamente diz,
desaparecesse pela barra fora, ficavam resolvidas todas as coisas e tudo
atolado em felicidade?
Não
o sr. Vicente não era tão “burro” que assim pensasse. Mas suprimida a cambada,
não via sua Excelência? Ficava o país desatravancado; e podiam então começar a
governar os homens de saber e de progresso…
-
Sabe Vossa Excelência qual é o nosso mal? Não é má vontade dessa gente; é muita
soma de ignorância. Não sabem. Não sabem nada. Eles não são maus, mas são umas
cavalgaduras..
-Bem,
então essas obras, amigo Vicente – dizia-lhe Carlos, tirando o relógio e
despedindo-se dele com um valente shake-hands – veja se me andam. Não lho peço
como proprietário, é como correligionário.
-
Daqui a dois dias há-de Vossa Excelência ver a diferença – respondia o
mestre-de-obras, desbarretando-se.» («OS MAIAS», Eça de Queirós)
O
«Laboratório” estava condenado à partida. Só não o está o “laboratório” dos
partidos concorrenciais ao PE, para efeitos de um lugar ao sol europeu,
vergonhosa demonstração da nossa penúria, não susceptível de correcção, mas a merecer cacete. Uma vez
mais, é Vasco Pulido Valente que, no Público
de 23 de Maio, o descreve em “Exibicionistas”:
«Exibicionistas»
«Percebo quase toda gente nesta próxima eleição: os
candidatos dos cinco grandes partidos, que aspiram a passar umas férias na
“Europa”, sem responsabilidades, nem trabalho; o cidadão comum que por motivos
misteriosos vai votar e o que não vai votar; e até o voluntário que faz de povo
para os candidatos não andarem sozinhos por essas ruas.
Mas
não percebo as criaturas que inventaram um partido ou se penduraram num partido
desconhecido, pelo prazer de comunicar à pátria uma qualquer absurda maneira de
a salvar. A sua própria presença prova que não sabem o que é uma sociedade e o
que é a política. Ideias não têm. Fica a obrigação de se levantarem cedo,
apertar a mão a pseudopopulares e beberem café ou comerem petiscos por esse
desgraçado país de Deus.
Nenhum
deles parece compreender que um partido é uma necessidade profunda de uma
determinada época histórica e que não se inventa porque o sr. Presidente da
República resolveu escolher uma data particular para eleições: no caso, o dia
25 de Maio de 2014. Houve liberais como houve miguelistas, porque um lado e
outro defendiam uma versão incompatível de organizar Portugal, que ia desde o
regime da propriedade, à posição da Igreja e aos direitos do indivíduo. E houve
depois progressistas e regeneradores, porque os progressistas queriam um poder
mais forte e firme do que a Carta Constitucional lhes dava ou que os
regeneradores se dispunham a partilhar. E houve um único verdadeiro partido na
República, o Partido Democrático de Afonso Costa, porque nenhum dos que
apareceram a seguir tinha força para sustentar o regime.
Um
slogan como
“justiça” ou “unidade de esquerda” ou, mais correntemente, “renegociar a
dívida” não chega para pedir, ou esperar, o voto do próximo. O próximo, por
muito estúpido que o julgue, ouve estas coisas como quem ouve um curandeiro de
má nota e nem por um momento o leva a sério. Por delicadeza, fala com ele, mas,
no fundo, pensa que se trata de um extravagante, com meia dúzia de panfletos na
mão e uma câmara de televisão atrás, inútil para resolver o mais pequeno
problema da sua vida e com pouca vergonha de se exibir em público. Fora o raro
caso de uma ambição perversa, o exibicionismo é, de resto, a força principal
que empurra para o país dúzias de obscuros portugueses à procura de uma imagem
ou de um soundbyte. Tal
qual como quem entra num concurso de televisão: com esforço e com despesa, para
ser vexado.»
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